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Proc. n.º 818/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Na presente acção de reconhecimento do direito de propriedade sobre um imóvel que a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de A. moveu contra a Fábrica da Igreja Paroquial da Freguesia de B., o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 12 de Dezembro de 2002 (fls. 2167 e seguintes), concedeu provimento ao agravo interposto pela autora da decisão do juiz do Tribunal Judicial da Comarca de ---------------- que, por falta de autorização do Ordinário Diocesano para propor a acção, suspendera a instância para que a autora obtivesse tal autorização, sob pena de absolvição da ré da instância.
2. Inconformada com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, a B., ré na acção, dele interpôs recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento na violação das regras de competência internacional e em razão da matéria (fls. 2183). Nas alegações respectivas (fls. 2199 e seguintes), concluiu do seguinte modo:
“[...]
5. Ao decidir que «é indiscutível a competência do tribunal português para conhecer da acção – art. 65°-A a) e d) do Código de Processo Civil», o acórdão recorrido violou o art° III da Concordata entre o Estado Português e a Santa Sé, que diz que a Igreja em Portugal se organiza livremente de harmonia com as normas de direito canónico;
6. De harmonia com as normas do direito canónico, a Igreja Católica em Portugal dispõe de uma organização judiciária própria, a dos tribunais eclesiásticos;
7. O julgamento das acções de reivindicação de propriedades da Igreja Católica propostas por uma pessoa jurídica da Igreja contra outra pessoa da mesma Igreja
[é] da competência dos tribunais eclesiásticos, nos termos dos cânones 1400, §
1, n° 1, 1401, n° 2, 1410 e 1419, § 2, do Código de Direito Canónico, e não dos tribunais do Estado Português;
8. O art° III da Concordata, como direito internacional convencional que é, tem primazia sobre o art° 65°-A do Código de Processo Civil e afasta a aplicação deste, nos termos do art° 8°, nº 2, da Constituição da República;
9. A tutela da autoridade eclesiástica sobre as misericórdias, como instituições da Igreja Católica que são, pertence ao ordinário diocesano, nos termos do art°
48° do Estatuto das IPSS, aprovado pelo Decreto-Lei n° 119/83, de 25 de Fevereiro, com exclusão da tutela jurisdicional dos tribunais do Estado Português, que são incompetentes para julgar conflitos das misericórdias dentro da própria Igreja Católica (conflitos internos);
10. Os tribunais do Estado Português são apenas competentes para julgar as questões previstas no art° 7° do Decreto-Lei n° 519-G2/79, de 29 de Dezembro, mantido em vigor pelo art° 98°, al. b), do Estatuto das IPSS, mas não abrangendo as causas das misericórdias, de harmonia com o acórdão do STJ de 11.7.1985, Procº 72 890;
11. Se se interpretar o art° 65°-A, als. a) e b) do Código de Processo Civil no sentido de este preceito atribuir competência exclusiva aos tribunais portugueses para julgarem acções de reivindicação de bens patrimoniais da Igreja Católica propostas por uma pessoa jurídica da Igreja Católica contra outra pessoa jurídica da mesma Igreja, então essa interpretação normativa é inconstitucional por violação do disposto no art° 41°, nº 4, da Constituição da República (princípios da separação do Estado da Igreja Católica e da não confessionalidade do Estado).
[...].”
A recorrida A. contra-alegou (fls. 2215 e seguintes), tendo, entre o mais, concluído que “[a]o contrário do [...] invocado pela ora Recorrente, seria a não aplicação do disposto nas als. a) e d) do art. 65º-A do CPC nos presentes autos – as quais, em função dos pedidos neles formulado, consagra a competência exclusiva do Tribunal Português –, que violaria a Constituição Portuguesa” (fls.
2225).
O representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, no parecer que emitiu (fls. 2331 e seguintes), sustentou, entre o mais, que “[...] parece manifesto que a competência dos tribunais portugueses para decidir de pedido sobre questões patrimoniais e registrais não confronta, em qualquer dimensão, o princípio da não ingerência do Estado na organização das Igrejas e no exercício das suas funções e do culto, garantido na segunda parte do n.º 4 do art. 41º da Constituição” (fls. 2332).
A recorrente B. respondeu a este parecer (fls. 2340 e seguintes).
3. Por acórdão de 30 de Setembro de 2003 (fls. 2347 e seguintes), o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao agravo, podendo ler-se no texto respectivo, para o que aqui releva, o seguinte:
“[...] São vários os interesses que podem ser ponderados na consagração legislativa da competência exclusiva. A análise do art. 65°-A mostra que, para o legislador português, relevou fortemente a protecção dos interesses económicos nacionais. São estes que justificam a competência exclusiva dos tribunais portugueses para as acções relativas a direitos reais sobre imóveis (propriedade fundiária e bens de produção, nomeadamente) sitos em território português (art. 65°-A, al. a))
[...].
[...]. Além de na Concordata, único instrumento jurídico vinculante de ambos os Estados, a Igreja ter reservado aos tribunais e repartições eclesiásticas competentes, apenas, o conhecimento das causas concernentes à nulidade do casamento católico e dispensa do casamento rato e não consumado – artigo XXV – não se referindo às questões de foro misto, o questionado cânone 1288 confirma esta doutrina da competência dos tribunais do Estado quando dispõe que os administradores não proponham nem contestem nenhuma acção no foro civil em nome da pessoa jurídica pública sem licença prévia do Ordinário próprio, dada por escrito. Em suma: a Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa não afasta a regra da competência exclusiva dos tribunais portugueses nas matérias a que se refere o art. 65°-A do CPC. Sob a epígrafe Liberdade de consciência, de religião e de culto dispõe o nº 4 do art. 41º da Constituição: As Igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício. das suas funções, e do culto. Este nº 4 dá expressão ao princípio da separação entre o Estado e as Igrejas, princípio de que são corolários o princípio da não confessionalidade do Estado e o da liberdade de organização e independência das Igrejas e confissões religiosas. O segundo princípio, em contrapartida, garante a não ingerência do Estado na organização das igrejas e no exercício das suas funções e do culto (nº 1, in fine), não podendo os poderes públicos intervir nessas áreas, a não ser na medida em que, por via normativa, regula a liberdade de organização e associação privada e o direito de reunião e manifestação, e outros direitos instrumentais da liberdade de cultos. Não se vê onde a reserva de competência aos Tribunais do Estado de matérias como o direito de propriedade sobre imóveis sitos em território português, ainda que igrejas destinadas ao culto católico, ou a validade de inscrições registrais, possa ofender o princípio da liberdade de organização e independência da Igreja. Bem ao contrário, o que já se julgou inconstitucional foi a reserva aos Tribunais Eclesiásticos das matérias referentes ao casamento católico, conforme artigo XXV da Concordata. Mormente quando é certo que a própria Igreja renunciou ao tradicional privilégio do foro nestas questões de foro misto, em que as coisas temporais se misturam com as espirituais. A reserva de competência dos tribunais portugueses, expressa no art. 65°-A do CPC, não afronta o princípio da separação entre o Estado e a Igreja Católica nem o da liberdade de organização e independência das Igrejas, como estabelecido no art. 41º, nº 4, da Constituição.
[...].”
4. Deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça interpôs a B. recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 2356 e seguintes), ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação das normas constantes do artigo 65º-A, alíneas a) e d), do Código de Processo Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, interpretadas no sentido de tais preceitos atribuírem competência exclusiva aos tribunais portugueses para julgarem acções de reivindicação de bens patrimoniais da Igreja Católica propostas por uma pessoa jurídica da Igreja Católica contra outra pessoa jurídica da mesma Igreja Católica, com preterição da competência dos Tribunais eclesiásticos competentes e da aplicação ao caso das regras do Direito Canónico.
Segundo a recorrente, nessa interpretação, as normas em causa violam o princípio da primazia do direito internacional convencional sobre o direito interno ordinário, consagrado no artigo 8º, n.º 2, da Constituição, bem como os princípios da separação do Estado das igrejas e da não confessionalidade do Estado, consagrados no artigo 41º, n.º 4, da Constituição.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 2435.
5. Nas alegações (fls. 2440 e seguintes), concluiu assim a recorrente:
“A) Ao interpretar o art. III da Concordata com o sentido de que o mesmo se limita a tratar das associações e organizações da Igreja Católica e não contém a regra geral de que a Igreja Católica se pode organizar livremente de harmonia com as normas do Direito Canónico, o STJ procedeu a uma interpretação revogatória dessa norma, que é uma regra de direito internacional público convencional e tem primazia sobre o direito ordinário português. B) A interpretação que o STJ deu ao art. 65-A, alíneas a) e d), do CPC, viola o art. III da Concordata, privando os tribunais eclesiásticos do conhecimento de uma causa anexa ou conexa com uma coisa espiritual. C) Ao privar os tribunais eclesiásticos do conhecimento de uma causa da sua competência exclusiva e ao atribuir essa competência aos tribunais do Estado Português, o Acórdão recorrido fez uma interpretação normativa do art. 65-A, alíneas a) e d) do CPC, que o põe em conflito com os cânones 1401 n° 1 e 1410 do Código de Direito Canónico; D) Havendo conflito de jurisdições, prevalece a jurisdição ancorada numa norma de direito internacional convencional, como é o caso da Concordata entre Portugal e a Santa Sé (art. 8° n° 2 da CRP). E) Se se interpretar o art. 65-A, alíneas a) e d) do CPC no sentido de este preceito atribuir competência exclusiva aos tribunais portugueses para julgarem acções de reivindicação de bens patrimoniais da Igreja Católica propostas por uma pessoa jurídica da Igreja (conflitos de foro doméstico), então essa interpretação normativa é inconstitucional por violação do disposto no art. 41°, n° 4 da CRP (princípios da separação do Estado e da Igreja Católica e da não confessionalidade do Estado). F) Tal interpretação normativa vai contra os princípios da congruência estrutural das ordens jurídicas e o da pluralidade dos ordenamentos jurídicos. G) Sendo o ordenamento canónico um ordenamento religioso aprovado por um soberano estrangeiro (o Papa), não podem os tribunais portugueses privar de eficácia esse ordenamento sob pena de violarem o princípio da não confessionalidade do Estado Português (art. 41° n° 4 da CRP). H) A nova redacção dada ao art. 65-A do CPC pelo DL 38/2003 de 8 de Março – que ressalva a competência atribuída por convenção internacional, como é o caso da Concordata – é imediatamente aplicável aos processos pendentes – nos quais ainda não há decisão sobre o fundo da causa com trânsito em julgado – pelo que o STJ não podia deixar de, em 30/09/2003, tomar em consideração uma lei vigente desde
15/09/2003.”
A recorrida A. contra-alegou (fls. 2482 e seguintes), tendo formulado as seguintes conclusões:
“1. A Recorrida A. é uma associação privada de fiéis constituída na ordem jurídica canónica, pelo que pode livremente propor ou contestar qualquer acção no foro civil, não sofrendo de qualquer incapacidade judiciária, em virtude de o cânone 1288 do Código de Direito Canónico de 1983 não lhe ser aplicável.
2. No art. III da Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa estabelece-se, directamente e para as normas de direito canónico, a obrigação de o Estado Português reconhecer personalidade jurídica às associações e organizações que, de acordo com as normas de direito canónico, a Igreja constitua, no exercício do seu direito de livre organização.
3. Do art. III da Concordata, não resulta a vinculação da República Portuguesa a regra de competência internacional, e muito menos a competência dos Tribunais da Igreja para apreciar a causa objecto dos presentes autos, que respeita a matéria de direitos reais e registrais.
4. Constituindo a causa dos autos matéria de direitos reais e registrais sobre uma igreja, estamos perante uma causa de foro misto.
5. O Código de Direito Canónico de 1983, no seu cânone 1401, prescindiu por completo da chamada jurisdicional baseada no privilégio do foro, tendo o Legislador pretendido evitar as questões de foro misto.
6. A Concordata entre a Santa Sé e o Estado Português de 1940 não se refere às questões de foro misto.
7. Não resultando a competência dos Tribunais da Igreja de qualquer disposição concordatária ou de remissão sua, nomeadamente do art. III da Concordata, estamos perante competência atribuída pelo direito interno da Igreja que, não tendo dignidade convencional, não prevalece sobre as normas do art. 65º-A do CPC.
8. A afirmação da competência do Tribunal Português para decidir a questão dos presentes autos – que consubstancia matéria de direitos reais e registrais –, não constitui qualquer violação do principio da separação entre o Estado e as Igrejas.
9. Pelo contrário, a não consagração da competência do Tribunal Português para decidir a questão dos autos, apesar de dizer respeito a uma igreja destinada ao culto católico, violaria os Princípios Fundamentais da Soberania e do Território.
10. A redacção dada ao art. 65º-A do CPC pelo DL nº 38/2003 de 08 de Março, apenas se aplica aos processos instaurados a partir de 15 de Setembro de 2003.
11. O douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça não viola nenhum dos Princípios Constitucionais, designadamente os dispostos nos arts. 8º, nº 2 e
41º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa.”
Cumpre apreciar.
II
6. Segundo a delimitação a que procedeu a recorrente (supra, 4.), constitui objecto do presente recurso a apreciação da conformidade constitucional das normas constantes do artigo 65º-A, alíneas a) e d), do Código de Processo Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março – portanto, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro –, interpretadas no sentido de tais preceitos atribuírem competência exclusiva aos tribunais portugueses para julgarem acções de reivindicação de bens patrimoniais da Igreja Católica propostas por uma pessoa jurídica da Igreja Católica contra outra pessoa jurídica da mesma Igreja Católica, com preterição da competência dos Tribunais eclesiásticos competentes e da aplicação ao caso das regras do Direito Canónico.
É a seguinte a redacção dos mencionados preceitos do Código de Processo Civil:
“Artigo 65º-A
(Competência exclusiva dos tribunais portugueses) A competência dos tribunais portugueses é exclusiva: a) No caso de acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre bens imóveis sitos em território português;
[...] d) Para as acções que tenham como objecto principal a apreciação da validade da inscrição em registos públicos de quaisquer direitos sujeitos a registo em Portugal.”
7. Tendo o presente recurso sido interposto apenas ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (supra,
4.), conclui-se necessariamente que não é possível conhecer da matéria a que se referem as conclusões A) a D) das alegações da recorrente (supra, 5.).
Na verdade, a questão de saber se a interpretação normativa que constitui o objecto do presente recurso viola ou não a Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa (assinada no Vaticano em 7 de Maio de 1940 e publicada no Diário do Governo, I Série, n.º 158, de 10 de Julho de 1940) não pode ser conhecida num recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
É que só no recurso previsto na alínea i) do mesmo preceito seria possível, como decorre do disposto no artigo 71º, n.º 2, da mesma Lei, conhecer das questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional implicadas na decisão recorrida e desde que, naturalmente, estivessem preenchidos os pressupostos processuais de tal recurso (no sentido da competência do Tribunal Constitucional para a apreciação da conformidade de normas de Direito ordinário interno português com a Concordata, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, veja-se Jorge Miranda, “A Concordata e a ordem constitucional portuguesa”, in Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, Coimbra, Almedina, 2001, p. 65 e ss, p.
70).
8. Por outro lado, não pode o Tribunal Constitucional conhecer da matéria a que se refere a conclusão H) das alegações da recorrente: a questão de saber se, ao proferir a decisão recorrida, o Supremo Tribunal de Justiça devia ter tomado em consideração a nova redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de
8 de Março, ao artigo 65º-A, do Código de Processo Civil. Na verdade, a competência do Tribunal Constitucional, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, cinge-se ao julgamento da conformidade constitucional das normas aplicadas na decisão recorrida, não abrangendo a determinação do direito ordinário aplicável ao caso apreciado nesta decisão.
9. Finalmente, há que restringir o objecto do recurso, tal como foi delimitado pela recorrente (supra, 6.).
A referência “com preterição da competência dos Tribunais eclesiásticos competentes e da aplicação ao caso das regras do Direito Canónico” não pode aqui ser considerada nem assumir qualquer relevância, atendendo a que o Tribunal Constitucional efectivamente não tem poderes para determinar se os tribunais eclesiásticos se consideram competentes para julgarem acções de reivindicação de bens patrimoniais da Igreja Católica propostas por uma pessoa jurídica da Igreja Católica contra outra pessoa jurídica da mesma Igreja Católica, nem tão-pouco para determinar se as regras do direito canónico seriam aplicáveis a tais acções.
Conhecer-se-á, pois, apenas da matéria a que se reportam as conclusões E), F) e G) das alegações da recorrente – nas palavras da recorrente, a questão da
“inconstitucionalidade directa das normas aplicadas” (cfr. fls. 2465 e seguintes das alegações) –, mas sempre com a ressalva que acabou de ser feita.
Por outras palavras, trata-se de saber se as normas constantes do artigo 65º-A, alíneas a) e d), do Código de Processo Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março – portanto, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro –, interpretadas no sentido de tais preceitos atribuírem competência exclusiva aos tribunais portugueses para julgarem acções de reivindicação de bens patrimoniais, propostas por uma pessoa jurídica ligada à Igreja Católica, contra outra pessoa jurídica igualmente ligada à Igreja Católica, violam os princípios da separação do Estado e da Igreja Católica, da não confessionalidade do Estado, da congruência estrutural das ordens jurídicas e da pluralidade dos ordenamentos jurídicos.
10. Segundo Jónatas Machado (“Tomemos a sério a separação das igrejas do Estado (Comentário ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 174/93)”, separata da Revista do Ministério Público, n.º 58, Lisboa, 1994, p. 60-61), “o princípio da separação [das igrejas do Estado] não deve ser lido de uma forma laicista, anti-religiosa. Pelo contrário, ele pretende acomodar o fenómeno religioso, em toda a sua diversidade, numa sociedade moderna e pluralista. Trata-se, pois, de afirmar uma separação não-hostil, uma neutralidade benevolente. [...] Este princípio deve ser lido igualmente como garantia institucional do princípio da igualdade. Ele visa estabelecer uma ordem institucional que permita assegurar, por parte do Estado, a manutenção de uma posição de neutralidade religiosa e mundividencial de não identificação nem interferência no dissenso interconfessional. [...] Separação das confissões religiosas do Estado significa, ainda, a defesa do processo político-legislativo perante as tentativas de instrumentalização totalizante por parte das confissões religiosas no sentido de criar uma homogeneidade estadualmente induzida
(government-induced homogeneity), desencorajando ou suprimindo a expressão de diferenças em matérias religiosas”. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 244), assinalam como corolários imediatos do princípio da separação entre o Estado e as igrejas, consagrado no artigo 41º, n.º 4, da Constituição, “por um lado, o princípio da não confessionalidade do Estado e, por outro lado, o princípio da liberdade de organização e independência das igrejas e confissões religiosas”.
O princípio da não confessionalidade do Estado implica, segundo estes autores, “a indiferença ou neutralidade confessional do Estado e proíbe toda e qualquer ingerência religiosa na organização ou governo do Estado ou dos poderes públicos, não podendo estes assumir ou desempenhar quaisquer funções ou encargos religiosos, e não sendo legítima a realização oficial de cerimónias ou actos religiosos ou a utilização em actos, funções ou locais oficiais de ritos ou símbolos religiosos”.
Ora, está bem de ver que a atribuição aos tribunais portugueses da competência exclusiva para a apreciação da acção de que emergiram os presentes autos não significa qualquer quebra da indiferença ou neutralidade confessional do Estado. Mesmo que numa acção de tal natureza devesse, pela circunstância de dizer respeito a bens patrimoniais da Igreja Católica, ser aplicado o direito canónico (questão que ao Tribunal Constitucional não cumpre naturalmente dilucidar), tal não significaria qualquer permeabilidade dos órgãos de soberania
à Igreja. O entendimento contrário conduziria, aliás, a considerar que, sempre que os tribunais portugueses, por força das regras do direito internacional privado, aplicassem direito estrangeiro, ofenderiam ou restringiriam a soberania do Estado português.
Dizem ainda Gomes Canotilho e Vital Moreira que o segundo princípio
– o da liberdade de organização e independência das igrejas e confissões religiosas – “garante a não ingerência do Estado na organização das igrejas e no exercício das suas funções e do culto (n.º 1, in fine), não podendo os poderes públicos intervir nessas áreas, a não ser na medida em que, por via normativa, regula a liberdade de organização e associação privada e o direito de reunião e manifestação, e outros direitos instrumentais da liberdade de culto”.
Também este segundo princípio não é manifestamente ofendido com a atribuição aos tribunais portugueses de competência exclusiva para a apreciação das acções a que se refere o artigo 65º-A, alíneas a) e d), do Código de Processo Civil, e que digam respeito a bens patrimoniais da Igreja.
Com efeito, e como já se disse, mesmo que a essas acções fosse aplicável o direito canónico, tal aplicação por um tribunal estadual não significaria qualquer invasão do âmbito da Igreja Católica, rompimento da separação entre o Estado e a Igreja Católica ou interferência na organização judiciária da Igreja Católica, como pretende a recorrente: tal argumento também conduziria a encarar a aplicação do direito estrangeiro pelos tribunais portugueses como um atentado
à soberania dos Estados estrangeiros, o que é evidentemente de rejeitar.
Conclui-se assim que do princípio da não ingerência do Estado na organização das igrejas, corolário do princípio da separação entre o Estado e as Igrejas, não resulta qualquer proibição, para os tribunais portugueses, de apreciarem a acção de que emergiram os presentes autos. Sobretudo quando se considera que a correspondente competência exclusiva se justifica em homenagem à protecção dos interesses económicos nacionais, como expressamente reconheceu o tribunal recorrido (supra, 3.).
11. Vejamos agora se a interpretação perfilhada pelo tribunal recorrido viola os princípios da congruência estrutural das ordens jurídicas e o da pluralidade dos ordenamentos jurídicos.
Ora – e não sendo sequer necessário discutir a questão da consagração constitucional destes dois princípios (o último encontra-se, segundo Jorge Miranda, aflorado no artigo 8º da Constituição: ob. cit., p. 81) –, a verdade é que não se vê em que medida uma norma (como a que constitui o objecto do presente recurso), que regula a competência internacional dos tribunais portugueses para a apreciação de certas acções, pode pôr em causa a coerência interna de alguma ordem jurídica ou contribuir para a supressão da pluralidade dos ordenamentos. Como é óbvio, a atribuição aos tribunais portugueses da competência para certas acções não significa a automática aplicação, por esses tribunais, da lei portuguesa, pois que não impede o funcionamento das regras gerais do direito internacional privado ou das normas de direito internacional público que imponham a aplicação do direito estrangeiro. Dito de outro modo, de uma regra de competência internacional directa nada se pode extrair a propósito do direito substantivo concretamente aplicável à causa, pelo que não faz sentido sustentar que tal regra viola os princípios da congruência estrutural das ordens jurídicas e o da pluralidade dos ordenamentos jurídicos, como pretende a recorrente.
III
12. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em vinte e cinco unidades de conta.
Lisboa, 20 de Abril de 2004
Maria Helena Brito Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira Luís Nunes de Almeida