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Processo n.º 291/02
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Em 7 de Dezembro de 2001, A. apresentou requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão de 20 de Novembro de 2001, do Supremo Tribunal de Justiça, que negou provimento aos recursos de agravo anteriormente interpostos, designadamente do acórdão de 28 de Novembro de 2000 do Tribunal da Relação de Lisboa. Em tal requerimento suscitou preliminarmente a inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 72º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional, na redacção da Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro, considerando que
“tal norma é manifestamente inconstitucional, por diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial do preceito constitucional que veio pretender
‘regulamentar’ (cfr. art. 18º, n.º 3, da CRP), por restringir sem razão constitucionalmente relevante o acesso ao direito e ao tribunal constitucional, em violação do disposto também no art. 20º, n.º 1, da CRP.”
Também preliminarmente, argumentou no sentido de que a omissão de pronúncia do tribunal recorrido sobre algumas das questões de constitucionalidade não obstava ao seu conhecimento por parte do Tribunal Constitucional, tal como a isso não obstava a natureza cautelar da acção de que emergia o recurso.
Seguidamente suscitou a inconstitucionalidade das seguintes normas:
1. artigo 490º do Código das Sociedades Comerciais;
2. artigo 16º do Código das Custas Judiciais;
3. “Dimensão normativa extraída do art. 534º, n.º 1, do CPC, em conjugação com a extraída do art. 706º do mesmo Código”;
4. “Dimensão normativa extraída do art.14º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do Código do Mercado de Valores Mobiliários aprovado pelo Dec. Lei n.º 124/91, de
10.4”;
5. “Normas dos arts. 3 e 6 (sic)do art. 37º-A aditado pelo ‘Regulamento Geral da Central de Valores Mobiliários e do Sistema de Liquidação e Compensação’ pelo Aviso n.º 349/96 de 18.12”;
6. “Dimensão normativa dos preceitos dos arts. 3º e 4º, do Dec. Lei n.º
129/84, de 27.4”;
7. “Dimensão normativa extraída do art. 758º, n.º 1, do CPC”;
8. -“Dimensões normativas extraídas dos arts. 381º, ns. 1, 387º, ns. 1 e 2, e 395º do CPC, e 1276º e 1278º, n.º 1, do Código Civil.”
9.
2.Por despacho de 2 de Abril de 2002, do Juiz-Conselheiro relator no tribunal a quo, tal requerimento de interposição de recurso foi indeferido, essencialmente com base nas mesmas razões que já constavam do acórdão de 20 de Novembro de 2001 do Supremo Tribunal de Justiça, a saber:
- “não é no âmbito de uma providência cautelar que se vai apreciar a constitucionalidade e os pressupostos de aplicação do n.º 5 do artigo 490º do CSC” (e das “normas dos artigos 14º, n.º 1, do CMVM, 490º do CSC, 381º, n.ºs 1 e
2, 387º n.ºs 1 e 2, 395º, 1276º e 1278º do CC”);
- “os recorrentes não terão suscitado de modo adequado, como lhes cumpria, uma qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, não tendo indicado a ‘dimensão normativa’ que, em concreto, reputam inconstitucional, limitando-se a apontar um número significativo de normas de direito ordinário que afirmam violar um número ainda maior de normas da Constituição.”
-
3.Veio então o recorrente apresentar a presente reclamação para o Tribunal Constitucional, invocando essencialmente que há normas, de entre as impugnadas, que eram “obviamente aplicáveis apenas no procedimento cautelar” (“as extraídas dos arts. 381º, n.ºs 1 e 2, 387º, n.ºs 1 e 2, e 395º do CPC, e 1276º e 1278º do CC”), que não é pacífico o entendimento da jurisprudência constitucional sobre a apreciação ou não da constitucionalidade de normas aplicáveis em procedimentos cautelares e em acções definitivas em recursos emergentes de tais procedimentos cautelares, que o “recurso para o Tribunal Constitucional só pode ser recusado com alguns dos fundamentos do art. 76º, n.º 2, da Lei n.º 28/82, de 15.11.”, e que “não foram consideradas no despacho [reclamado], as normas extraídas dos arts. 16º do CCJ (...), 543º, n.º 1, e 706º, do CPC (...) n.ºs 3 e 6 do art.
37º-A do ‘Regulamento Geral da Central de Valores Mobiliários e do Sistema de Liquidação e Compensação’ (...), arts. 3 e 4º do Dec.-Lei n.º 129/84, de 27.4
(...) e 758º, n.º 1, do CPC (...)”.
O Ministério Público neste Tribunal considerou a reclamação “manifestamente improcedente”, dizendo:
“Na verdade – para além de, como inteiramente se demonstra no douto acórdão recorrido, a fs. 1021/1022, o recorrente não ter suscitado, em termos procedimentalmente adequados e ‘durante o processo’, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para suportar o recurso de fiscalização concreta interposto – nem sequer no respectivo requerimento de interposição curou de especificar e indicar, em termos minimamente claros e inteligíveis, quais as concretas dimensões normativas, retiradas da enorme massa de preceitos legais ‘arrolados’, que considerava efectivamente aplicados pelo STJ à dirimição do caso e cuja constitucionalidade pretendia, afinal, questionar. Tal situação processual – decorrente do reiterado incumprimento dos ónus que o processo constitucional coloca a cargo do recorrente, em termos perfeitamente legítimos e justificados – implica, em última análise, uma irremediável fluidez e indeterminabilidade do objecto normativo do recurso, inviabilizando naturalmente a pronúncia deste Tribunal sobre questões que não se encontram minimamente definidas – no plano normativo – pelo recorrente.” Cumpre decidir. II. Fundamentos
4.Para decidir a presente reclamação, há que começar por apreciar preliminarmente a questão de constitucionalidade do artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, que também vem suscitada no requerimento do recurso em causa, na medida em que ela pode ter impacto sobre a decisão a proferir, pois tal norma define os requisitos específicos do recurso de constitucionalidade em questão.
É a seguinte a redacção desse n.º 2 do artigo 72º:
“Artigo 72º
(Legitimidade para recorrer)
1. (...)
2. Os recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70º só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão de constitucionalidade ou ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
(...)”
Poderia pôr-se, desde logo, o problema da tempestividade da suscitação de tal questão de constitucionalidade no requerimento de interposição do recurso, uma vez que tal questão não chegou a ser colocada perante o tribunal a quo.
Todavia, uma vez que a norma em causa, muito embora de aplicação pelo tribunal recorrido – na medida em que é nele que se admite ou não o recurso – é também de aplicação pelo Tribunal Constitucional – enquanto reaprecia a decisão de inadmissão do recurso, em sede de reclamação, ou a decisão da sua admissão, em sede de decisão sumária de não conhecimento do recurso (com fundamento em não preenchimento da hipótese normativa da referida norma) –, há-de concluir-se que o poder jurisdicional quanto a tal questão se mantém, razão pela qual a sua suscitação foi tempestiva. E, antecedendo a pronúncia do Tribunal Constitucional, foi suscitada de forma processualmente adequada.
Seja, porém, como for quanto a esta questão, é certo que o Tribunal Constitucional teria de aplicar esta norma na apreciação dos requisitos para se poder admitir o presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que a apreciação da questão da sua constitucionalidade, suscitada perante este Tribunal, mantém todo o sentido.
Passando à análise dos argumentos adiantados pelo ora reclamAnte no sentido da inconstitucionalidade, o confronto do citado artigo 72º, n.º 2, com o n.º 4 do artigo 280º da Constituição – que o ora reclamante pretende ter sido por ela restringida “sem razão constitucionalmente relevante” – revela que a norma em causa da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional
é, em parte, reprodução directa do texto constitucional, e, em parte, uma sua densificação, na medida em que a norma da Lei Fundamental devolve à lei a regulamentação do “regime de admissão desses recursos”.
Nesta última medida, a norma em causa precisa que a suscitação da questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade há-de ter lugar “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”.
Tal explicitação encontra-se, porém, em perfeita adequação com a razão de ser da referência constitucional à suscitação da questão e à previsão de uma intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso, isto é, para reapreciação ou reexame de uma decisão sobre a questão de constitucionalidade tomada pelo tribunal recorrido – razão pela qual esta questão lhe há-de ter sido posta, em termos de este a dever conhecer.
A Constituição remete, aliás, para a lei o encargo de regular o regime de admissão desses recursos, não incorrendo a referida regulamentação, neste aspecto, em qualquer desconformidade constitucional com o parâmetro constitucional, e antes correspondendo à previsão constitucional.
5.Posta assim de lado a impugnação da constitucionalidade da norma que o recorrente percebeu constituir obstáculo à admissão do recurso que pretendeu interpor, segue-se que a desconformidade com as suas exigências – designadamente a da suscitação das questões de constitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal recorrido – implicará o não conhecimento, nessa parte, do recurso.
Importa averiguar se é isso o que se passa quanto às diversas normas impugnadas.
6.Quanto à norma do artigo 490º, n.º 5 do Código das Sociedades Comerciais – cujo n.º 3 não foi declarado inconstitucional no Acórdão n.º 491/02, publicado no Diário da República (DR) II Série, de 22 de Janeiro de 2003 –, entendeu o Supremo Tribunal de Justiça “que não é no âmbito de uma providência cautelar que se vai apreciar a constitucionalidade e os [seus] pressupostos [de] aplicação”.
Mas a verdadeira razão para excluir a apreciação desta norma do objecto do recurso, notada no Tribunal da Relação de Lisboa no seu acórdão de 28 de Novembro de 2000, é que a invocação do artigo 490º do Código das Sociedades Comerciais surgiu apenas no anúncio do lançamento da Oferta Pública de Aquisição da B. sobre a C. (“a B. informou que poderia recorrer ao mecanismo de aquisição forçada de acções pertencentes aos demais accionistas da C., previsto no art.
490º do C.S.C., caso ficasse a deter, pelo menos, 90% do capital social da C.”), e foi aí considerada apenas como um dos elementos que consubstanciava “um fundado receio de lesão (...) que consiste em se verem desapossados das suas acções (com os direitos que lhe são inerentes) e, consequentemente, excluídos de sócios accionistas da C. pela B. através do mecanismo, aparentemente inconstitucional, da aquisição forçada das acções previsto no citado artigo
490º”. Ou seja: o verdadeiro fundamento para a impossibilidade de admitir tal norma no objecto do recurso de constitucionalidade pretendido interpor não reside na natureza do procedimento de que emerge o recurso, mas no facto de, em tal procedimento, essa norma só ter sido considerada como potencialmente (e hipoteticamente) aplicável para dar por preenchidos os requisitos da providência cautelar. O mesmo se diga, também, da norma do artigo 37º-A do Regulamento Geral da Central de Valores Mobiliários – que “regula as transferências resultantes de aquisições efectuadas ao abrigo do referido art. 490º” – e que o citado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa considerou passível de um juízo de
“probabilidade” de inconstitucionalidade, “por arrastamento” do que viesse a atingir aquela norma. Também aqui, o que é decisivo não é que tal juízo não tenha sido formulado, nem que tal questão seja discutida num recurso emergente de um procedimento cautelar. Mas antes, mais simplesmente, o facto de tal norma não ter sido aplicada na decisão recorrida (nem nas que a antecederam), mas apenas referida como pressuposto normativo de uma situação que justificava o recurso à providência cautelar.
7.Quanto à norma do artigo 16º do Código das Custas Judiciais, aplicada nos despachos de 31 de Março de 2000 e de 12 de Junho de 2000 da 7ª Vara Cível do Tribunal da Comarca de Lisboa, alvo de agravo para o Tribunal da Relação de Lisboa, foi-lhe a inconstitucionalidade aí imputada da seguinte forma:
“A norma que foi extraída do invocado art. 16º (...) já se encontra arguida de inconstitucionalidade nos presentes autos, a fls. 614/5, cujos termos aqui se dão por reproduzidos.” São os seguintes esses termos em que a inconstitucionalidade foi suscitada:
“Não tendo sido explicitada a norma legal em que assentou a decisão de tributar os requerentes pela cooperação que pretenderam proporcionar ao tribunal, difícil se torna identificar a respectiva disposição legal para efeito de eventual recurso para o Tribunal Constitucional. Afigura-se, porém, que tal norma, a existir, viola princípios e normas constitucionais consignados no art. 2º, 62º-1, e 165º-1, al. i), da CRP – o que ora se invoca para os efeitos legais.” Perante o Supremo Tribunal de Justiça, alegou-se que “tal norma foi aplicada para sancionar actos processuais que não constituem incidentes”, que “em matéria de tributação vigora o princípio da legalidade e da tipicidade como decorrência dos princípios da confiança e da segurança jurídica plasmados no art. 2º da CRP”, e que “não pode o julgador investir-se na qualidade de legislador criando normas por via interpretativa que ponham em crise as supra referidas garantias constitucionais” – tudo dando a entender que não estava em causa a própria norma, de cuja existência se chegou a duvidar, como se viu, mas sim as decisões judiciais, proferidas em diferentes contextos e dando origem a condenação em custas por diferentes razões.
Acontece, porém, que, após os referidos despachos, o Tribunal da Relação de Lisboa se pronunciou, por acórdão de 28 de Novembro de 2000, “revogando-se o despacho recorrido (de fls. 791) na parte em que os tributou em custas”, pelo que nem havia interesse processual em prosseguir com a suscitação da questão, nem o Supremo Tribunal de Justiça se pronunciou sobre ela (invocando o disposto no n.º 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil).
Assim, por uma e por outra das razões apontadas, faltam os necessários pressupostos para se poder conhecer do recurso quanto a esta norma.
8.Quanto às restantes normas - rectius: às “dimensões normativas” resultantes de várias conjugações de artigos do Código de Processo Civil, do Código de Mercado de Valores Mobiliários, do Decreto-Lei n.º 129/84 (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) e do Código Civil –, nem sequer se afigura possível este juízo de triagem entre normas aplicadas e não aplicadas na decisão recorrida, porquanto o sentido impugnado não é enunciado, ou sequer dado a conhecer de outra forma, pelo recorrente com um mínimo indispensável de determinação.
Ficou, pois, na verdade criada, quanto a elas, e como bem notou o Ministério Público, “uma irremediável fluidez e indeterminabilidade do objecto normativo do recurso, inviabilizando naturalmente a pronúncia deste Tribunal sobre questões que não se encontram minimamente definidas – no plano normativo – pelo recorrente” – cfr., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 269/94, 367/94 e 185/85, publicados, respectivamente, no DR, II Série, de 18 de Junho de 1994, de 7 de Setembro de 1994 e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., pp.
911-913, neste último caso fundando já uma decisão sumária de não conhecimento do recurso).
9.Como já se tem assinalado (por exemplo, nos Acórdãos n.ºs 490/98, 24/99 e
571/99, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt e os dois últimos publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, 11 de Março de
1999 e de 15 de Novembro de 2000), a função das reclamações dirigidas ao Tribunal Constitucional não é permitir a reaferição dos fundamentos da decisão de não admissão do recurso, mas sim a de verificar se o direito ao recurso de constitucionalidade foi indevidamente preterido.
Ora, com base no que se deixou escrito já se vê que faltam, no caso, os requisitos para a apreciação do recurso pretendido interpor em relação a todas as normas impugnadas, à excepção da que, justamente, é instrumental nessa apreciação – a do artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
Porém, porque a aferição da constitucionalidade desta era pressuposto de apreciação da própria reclamação, o objecto do recurso de constitucionalidade, circunscrito a tal norma, acabou por se consumir com a apreciação da reclamação: depois da (necessária) emissão de um juízo de conformidade constitucional a propósito da norma do referido n.º 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional, nenhum sentido pode fazer o prosseguimento do presente recurso de constitucionalidade para proceder à apreciação dessa mesma conformidade constitucional.
Como ele não poderia prosseguir para a aferição da conformidade constitucional de nenhuma outra, conclui-se que a presente reclamação deve ser indeferida, em parte por falta dos requisitos do recurso, em parte em resultado de uma forma especial de inutilidade superveniente.
III. Decisão Pelos fundamentos expostos decide-se indeferir a presente reclamação, confirmar a decisão recorrida, embora com diferentes fundamentos, e condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 12 de Novembro de 2003 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos