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Processo n.º 505/03
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Companhia de seguros A., intentou contra B. acção sumária emergente de acidente de viação, destinada a exercer o direito de regresso sobre o réu, por ter suportado o pagamento de determinadas indemnizações, como consequência de um acidente de viação por ele causado.
Tal acidente havia ocorrido quando o réu, sem que para tal estivesse legalmente habilitado, conduzia a viatura de matrícula .....-.......-....., da propriedade de C., com a qual a autora celebrara um contrato de seguro do ramo
“automóveis”. Assim sendo, caber-lhe-ia direito de regresso, nos termos do disposto na alínea c) do artigo 19º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro.
Por sentença do Tribunal de Círculo Judicial de Angra do Heroísmo, de 27 de Setembro de 2001, de fls. 229 e seguintes, o réu foi absolvido do pedido. O tribunal entendeu que era à autora que incumbia a prova do nexo de causalidade entre a falta de habilitação legal para conduzir, por um lado, e o acidente e os danos dele decorrentes, por outro. Ora, diz-se na sentença, “a autora não alegou, e consequentemente não podia provar”, a existência de tal nexo de causalidade, uma vez que “sufraga o entendimento, de acordo com alguma doutrina, que se o condutor se encontrar em alguma das circunstâncias referidas na alínea c), do artigo 19º, do Decreto-Lei n.º 522/85, automaticamente assiste
à seguradora direito de regresso”.
Inconformada, a A., recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa. Este Tribunal, por acórdão de 15 de Outubro de 2002, de fls. 290, concedeu provimento ao recurso, “revogando a sentença recorrida e condenando o réu em todas as quantias que a apelante efectuou com as indemnizações feitas aos lesados”. O Tribunal da Relação entendeu que “a falta de carta de condução e a consequente presunção de incapacidade para conduzir levam-nos a julgar que deverá ser o condutor não encartado a provar que cumpriu rigorosamente os preceitos estradais e, mesmo assim, o acidente ocorreu por culpa de terceiro ou por causa de força maior”. Pronunciando-se sobre a questão da inconstitucionalidade da norma da alínea c) do artigo 19º do Decreto-Lei n.º 522/85, suscitada pelo réu logo na primeira instância, o Tribunal da Relação de Lisboa desatendeu-a, nestes termos: “Na mencionada alínea c) do artigo 19º do Decreto-Lei n.º 522/85 dá-se tratamento diferente a situações desiguais: o beneficiário do seguro que conduz devidamente habilitado tem um tratamento, o não habilitado para conduzir tem um tratamento menos favorável. Veja-se, neste sentido, o ensinamento do Professor Gomes Canotilho em Direito Constitucional, 3ª edição, página 1215. O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa não
é desrespeitado”.
2. Inconformado, B. interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por acórdão de 20 de Maio de 2003, de fls. 350 e seguintes, lhe negou provimento.
Na parte que agora releva, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça decidiu o seguinte:
«I questão – ónus da prova do nexo de causalidade entre a inabilitação legal para a condução e o evento danoso
Desenha-se no presente recurso questão velha de anos e que o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 6/2002, de 28 de Maio de 2002, no DR IA, de
18.7.2002, apenas resolveu, se bem que com a diminuta força vinculativa que caracteriza tais Arestos, em relação à condução sob o efeito do álcool.
Aí se unificou jurisprudência no sentido de a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool exigir a prova, pela Seguradora, do nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do
álcool e o acidente.
No mais não há jurisprudência vinculativa.
(...) Salvo naqueles expressos e contados casos em que a lei prevê exclusões das garantias de seguro (art. 7° da Lei do seguro obrigatório ), a Seguradora não pode deixar de indemnizar os lesados, cumprindo, assim, a função social do seguro obrigatório. Em alguns desses casos ofenderia o sentido dominante de justiça deixar ileso o agente causador do dano e pôr definitivamente a cargo da Seguradora – rectius dos Segurados em geral que vêem anualmente agravado o prémio do seguro automóvel
– o pagamento das indemnizações devidas. São as hipóteses previstas no art. 19° do Dec-Lei n.o 522/85, de que nos interessa agora, apenas, a primeira parte da al. c):
– Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem o direito de regresso contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ... Qualquer que seja a natureza jurídica do direito de regresso da Seguradora – direito de regresso verdadeiro e próprio, como prevenido nos art. 524° e 497° do CC, ou simples direito de reembolso do que pagou, como primeira e única responsável que não pode opor ao lesado, no domínio do seguro obrigatório, excepções não taxativamente previstas na lei (art. 7° e 14° do Dec-Lei n.º
522/85) – certo é que tal direito visa repor o equilíbrio contratual que a obrigatoriedade do seguro em boa medida afastara.
É apregoada e por todos reconhecida a função sancionatória, além de reparadora, da obrigação de indemnizar, ligada que está a responsabilidade civil à ilicitude e à culpa. Tem sido orientação praticamente constante do Supremo Tribunal aquela segundo a qual a prova da inobservância de leis e regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos dela decorrentes, dispensando-se a prova em concreto da falta de diligência. Em homenagem ao princípio dispositivo, a adução do material de facto a utilizar pelo juiz para a decisão do litígio só compete às partes; estas é que devem proporcionar ao juiz, mediante as suas afirmações de facto (não notórias), a base factual da decisão. Cada uma das partes suporta, em resultado do princípio dispositivo, um ónus de afirmação (alegação). Decidir que o ónus de afirmação incumbe a uma das partes significa que será julgado o pleito contra si, se os factos não alegados forem indispensáveis à sua pretensão. O problema do ónus de afirmação (quem corre o risco da falta de alegação de factos indispensáveis para decidir o pleito em certo sentido) não deixa de ser idêntico ao do ónus da prova (quem corre o risco de o facto alegado se não considerar provado), uma vez que ambos têm na base os princípios da igualdade das partes e da exclusão do non liquet. Estes critérios, em conformidade com o artigo 342.º do Código Civil, sintetizam-se no seguinte: Ao autor cabe a afirmação e prova dos factos que, segundo a norma substantiva aplicável, servem de pressuposto ao efeito jurídico pretendido. O autor terá o
ónus de afirmar e provar os factos (constitutivos) correspondentes à situação de facto (Tatbestand) traçada na norma substantiva em que funda a sua pretensão. Ao réu incumbirá, por sua vez, a afirmação e prova dos factos correspondentes à previsão (abstracta) da norma substantiva em que baseia a causa impeditiva, modificativa ou extintiva do efeito pretendido pelo autor. Compete-lhe, portanto, a prova dos factos impeditivos ou extintivos da pretensão da contraparte, determinados de acordo com a norma em que assenta a excepção por ele invocada. Ao autor incumbirá, depois, a afirmação dos factos correspondentes à previsão da norma substantiva em que baseia o afastamento da causa impeditiva, modificativa ou extintiva do efeito pretendido pelo réu. E, assim operando, a repartição do ónus da afirmação continuará por aí adiante entre autor e réu.
(...) Como acima se deixou expresso e no tocante à hipótese que nos ocupa – primeira parte da al. c) do art. 19° do Dec-Lei n.º 522/85, de 3l de Dezembro – vista a clara letra da lei (a seguradora tem direito de regresso contra o condutor se este não estiver legalmente habilitado) cedo se desenhou Jurisprudência no sentido de que a lei não exige a quem exerce direito de regresso alegação e prova de que o acidente ocorreu por causa da inabilitação legal do condutor.
(...)
É possível conceber casos (não pensando, sequer, em hipóteses extremas de suicídio ou semelhantes) em que o acidente ficou a dever-se, no todo ou em parte, a conduta culposa do lesado ou de terceiro, apesar de o condutor interveniente não estar legalmente habilitado, conduzir sob influência de
álcool ou outros tóxicos ou ter abandonado o sinistrado. E então não estará este lesante obrigado a indemnizar porque a própria responsabilidade pelo risco, já de si excepcional (art. 483.º, n.º 2), é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo
(art. 505° CC). Não estando o lesante obrigado a indemnizar também não o está a Seguradora que, como é da natureza do contrato de seguro, só responde na medida da responsabilidade do segurado. Se a Seguradora, apesar disso, pagou indemnização ao lesado, fê-lo não em cumprimento da obrigação de indemnizar mas por qualquer outra razão, não tendo, pois, direito de regresso que supõe responsabilidade do solvens (497.º, n.º 2) ou satisfação do direito do credor para além da parte que lhe – ao devedor que paga – competia (524.º CC). Também não há dúvida que quando se prova a culpa do condutor e o nexo de causalidade entre a condução ilegal e os danos suportados pela Seguradora a esta assiste o direito de reaver quanto desembolsou. A questão põe-se quando, como é frequente, se não apura a forma como o acidente ocorreu ou, no caso de abandono do sinistrado e para quem entenda necessária tal prova, se desconhece a medida da contribuição do abandono para o agravamento dos danos. Então, de acordo com as vistas regras do ónus da prova e conforme disposto no art. 516.º do C PC, a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita. Ora, numa interpretação meramente declarativa de todo o art. 19.º, parece claro que a Seguradora tem de alegar e provar que satisfez a indemnização e que o demandado provocou dolosamente o acidente (al. a), era autor ou cúmplice de roubo, furto ou furto de uso do veículo causador do acidente (al. h), não estava legalmente habilitado a conduzir ou fazia-o sob a influência de álcool ou drogas ou abandonou o sinistrado (al. c), que a carga cuja queda causou danos a terceiros estava deficientemente acondicionada (al. d) e que o obrigado não apresentou em devido tempo o veículo à legal inspecção periódica (al. f). A letra das al. a), b) e d) - acidente dolosamente causado, veículo causador, queda de carga decorrente de deficiente acondicionamento – inculcam caber à Seguradora a prova do nexo de causalidade entre a conduta dos agentes causadores do acidente e este, bem como dos danos daí resultantes. Também por expressa disposição da lei (al. f) cabe ao demandado provar que o acidente não foi provocado ou os danos não sofreram agravamento pelo mau funcionamento do veículo. Aqui a lei presume que o veículo sujeito a inspecção obrigatória provocou o acidente por deficiência técnica. Presunção irrazoável em muitos casos, mas claramente consagrada na lei. Mas é precisamente a partir da redacção desta al. f) que se pode concluir que a lei quis punir, também com as armas do direito civil, os condutores que abandonam o sinistrado, que não têm habilitação legal para conduzir ou que conduzem sob o efeito de álcool ou produtos tóxicos semelhantes, como dito na al. c). Um legislador que é suposto consagrar as soluções mais acertadas e exprimir em termos adequados o seu pensamento teria deixado na letra da al. c), se fosse essa a sua intenção, algum elemento no sentido de apenas punir esses condutores quando a inabilitação legal (não interessa considerar aqui as demais hipóteses ali previstas) tivesse sido causa dos danos. E não se enxerga aí rasto de tal mens legislatoris. Pelo contrário, depois de nas alíneas a), b) e d) ter usado expressões que fazem depender o direito de regresso da prova de comportamentos activos, de causas do acidente e ou dos danos e de na al. f) ter deixado clara a repartição do ónus da prova, na al. c) limitou-se a prever factos, comportamentos passivos e criminalmente censurados noutras disposições legais, já antes ética e socialmente reprovados, sem curar de saber se esses comportamentos foram causais do acidente ou factores de agravamento dos danos. Este elemento literal e sistemático, a teleologia do preceito em análise, a natureza jurídica e finalidade do seguro obrigatório, a criminalização e a reprovação ético-social do comportamento em apreço permitem-nos concluir que na situação prevenida na primeira parte da al. c) do art. 19.º do Dec-Lei n.º
522/85, de 31 de Dezembro (condutor não legalmente habilitado) e para lhe ser deferido o reembolso do que pagou, a Seguradora apenas terá de provar que satisfez a indemnização devida e que o condutor demandado se incluía na referida hipótese. Naturalmente que fica livre e cabe ao demandado a prova de que, não obstante não estar legalmente habilitado a conduzir, o acidente e ou os maiores danos foram causados por terceiro, pelo lesado ou resultaram de circunstância de todo estranha a essa circunstância, ou que a Seguradora pagou mais que o devido. Só assim se evitam possíveis conluios ou fraudes entre lesado e Seguradora
(conluios apenas por mor de raciocínio aqui falados) e se permite ao obrigado de regresso amplo exercício dos seus direitos de defesa e do contraditório (art.
3.º do CPC e 20.º da Constituição).
No caso sub judicio, assente a total culpa do R. ora Recorrente e a sua inabilitação legal para conduzir, apurado que a Seguradora pagou aquilo a que foi condenada e não mais, tem a Seguradora direito de reembolso do que pagou, ainda que o condutor legalmente inabilitado fosse, à data do acidente e como resulta da factualidade provada (n.ºs 36 a 39), um artista a ultrapassar, imobilizar e estacionar o veículo, a inverter o sentido de marcha e a recuar . Pelo que improcede o concluído de a) a c).
II - O princípio da igualdade Afirma o Recorrente que a existência do direito de regresso contra o condutor não legalmente habilitado, quando, no entanto, sabe conduzir, e tenha provocado o acidente por qualquer outra razão que não a inexistência de conhecimentos técnicos e perícia ... viola o princípio da proporcionalidade decorrente do princípio da igualdade consagrado no art. 13° da C.R.P. Ao assim dito respondeu a Relação que a lei apenas dava tratamento diferente a situações desiguais. Sem dúvida que assim é. Nos termos do art. 13° da Constituição, todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei - n.º 1.
(...)
Não se vê onde está a discriminação, a desigualdade, o tratamento desproporcionado quando se confere à Seguradora que, por força da lei, adiantou a indemnização devida ao lesado, o direito de pedir o reembolso nos casos em que a lei assim o determina.
Desigualdade haveria se o segurado condutor devidamente habilitado tivesse que suportar, também ele, os custos dos danos provocados por quem não curou de adquirir a habilitação legal, ou se a lei que só permite a condução por indivíduos habilitados quedasse letra morta, sem qualquer sanção para quem, como o R. ora Recorrente, se sentisse desobrigado de a desacatar.»
3. B. veio, finalmente, recorrer para o Tribunal Constitucional,
“nos seguintes termos:
“- o recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.
70º da Lei n.º 28/82 (...)
Pretende-se ver apreciada a constitucionalidade da norma da alínea c) do artigo 19º do Decreto-Lei n.º 522/85 de 31/12, e declarada inconstitucional por materialmente inconstitucional por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa se interpretado no sentido de que à seguradora não é exigível a alegação e prova do nexo de causalidade entre a falta de habilitação para conduzir e a ocorrência do acidente.
- uma vez que tal norma, com a interpretação que lhe foi dada no acórdão recorrido, viola o artigo 13º da Constituição e os princípios da igualdade e proporcionalidade daí decorrentes.”
4. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram alegações. Como se viu, o recorrente veio sustentar que a norma agora em apreciação é inconstitucional por violação do princípio da igualdade. Para o efeito, analisou separadamente cada um dos três casos previstos na alínea c) do artigo 19º do Decreto-Lei n.º 522/85, atrás transcrita, e concluiu que, relativamente a cada um deles, seria inconstitucional que a seguradora, para conseguir a condenação do condutor no reembolso do que pagou, não tivesse que alegar e provar o nexo de causalidade entre o facto relevante (falta de habilitação legal para conduzir, condução sob efeito de álcool, estupefacientes ou outras drogas e abandono do sinistrado); daí concluiu, seguidamente, que violaria o princípio da igualdade que, no caso da falta de habilitação legal, seria inconstitucional, porque violadora do princípio da igualdade, a interpretação que não conduzisse a esse mesmo resultado quanto à alegação e prova do referido nexo de causalidade, nestes termos:
“Penalizar-se o causador do acidente, quer em termos patrimoniais, quer em termos penais, por abandonar o sinistrado, nos casos em que abandoná-lo ou não não altera em nada os danos nem o resultado dos danos, seria gritantemente injusto e violador do princípio da proporcionalidade que decorre da C.R.P. como uma das vertentes em que se desdobra o princípio da igualdade previsto no artigo
13 da nossa lei fundamental.
(...)
“No caso do direito de regresso contra o condutor do acidente que estivesse sob influência do álcool, idêntico entendimento se deverá perfilhar.
(...)Por isso, também neste caso, se exige o nexo de causalidade entre a presença de álcool no sangue do condutor e a verificação do acidente, para que haja direito de regresso por banda da seguradora que haja satisfeito as indemnizações. Entendimento diferente, provocaria, como é óbvio, grave injustiça e implicaria inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade, consagrado na C.R.P, na sua vertente da proporcionalidade.
(...) Por isso, também neste caso [condução sem habilitação legal] só c quando exista nexo de causalidade entre a não habilitação legal e a ocorrência do acidente, haverá direito de regresso a favor da seguradora.
É que, também neste caso, a existência do direito de regresso contra o condutor não legalmente habilitado, quando, no entanto, saiba conduzir, e tenha provocado o acidente por qualquer outra razão que não a inexistência de conhecimentos técnicos e perícia (que a carta de condução visa garantir, é verdade) viola o princípio da proporcionalidade decorrente do princípio da igualdade consagrado na C.R.P.
(...) Todas as três situações referidas são, ao contrário do decidido no Acórdão ora recorrido, substancialmente idênticas;
(...) Daí que se tenha de ter como ponto assente que o direito de regresso só existirá se houver e ficar demonstrado o nexo de causalidade entre cada uma das situações referidas no preceito arguido de inconstitucional e o acidente”. E formulou as seguintes conclusões:
“a) O exercício do direito de regresso da seguradora contra o condutor que causou acidente não estando habilitado legalmente para a condução de veículos automóveis, nos termos da alínea c) do artigo 19º do Decreto-Lei n.º 522785, de
31/12, depende da verificação do nexo causal entre tal facto e os danos, incumbindo à seguradora que pretenda exercer o direito de regresso provar a existência de um nexo de causalidade entre o acidente e os danos dele decorrentes e a circunstância de o condutor não estar legalmente habilitado a conduzir; b) Assim, a norma da alínea c) do artigo 19º do Decreto-Lei n.º 522/85, de
31/12, é materialmente inconstitucional por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa se interpretada no sentido de que a seguradora tem um direito de regresso contra o condutor que causou o acidente não estando habilitado legalmente para a condução de veículos automóveis sem necessidade de provar a verificação do nexo causal entre a ocorrência do acidente e a circunstância de o condutor não estar legalmente habilitado a conduzir”.
A recorrida apresentou igualmente alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
5. É o seguinte o texto do artigo 19º, alínea c), do Decreto-Lei n.º
522/85, de 31 de Dezembro:
“Artigo 19º Direito de regresso da seguradora
Satisfeita a indemnização, a seguradora tem apenas direito de regresso:
...
c) Contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado.”
6. A fls. 390, foi elaborado e notificado às partes o seguinte parecer:
«1. O presente recurso de constitucionalidade tem como objecto, como resulta dos termos em que o mesmo é definido pelo recorrente, B., a apreciação da “constitucionalidade da norma da alínea c) do artigo 19º do Decreto-Lei n.º
522/85 de 31/12”, que considera “materialmente inconstitucional por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa se interpretado no sentido de que à seguradora não é exigível a alegação e prova do nexo de causalidade entre a falta de habilitação para conduzir e a ocorrência do acidente,
- uma vez que tal norma, com a interpretação que lhe foi dada no acórdão recorrido, viola o artigo 13º da Constituição e os princípios da igualdade e proporcionalidade daí decorrentes.”
2. O acórdão recorrido, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 20 de Maio de 2003, e constante de fls. 350, interpretou e aplicou a referida norma no sentido definido pelo recorrente mas entendendo que o condutor não legalmente habilitado não fica impedido de fazer a prova de que tal nexo de causalidade não se verificou. Ou seja: aplicando as regras de repartição do ónus da prova, considerou que não era à seguradora que incumbia a prova da existência de nexo de causalidade (“a seguradora apenas terá de provar que satisfez a indemnização devida e que o condutor demandado se incluía na referida hipótese”
– “condutor não legalmente habilitado”), mas sim ao condutor demonstrar que “não obstante não estar legalmente habilitado a conduzir, o acidente e ou os maiores danos foram causados por terceiro, pelo lesado ou resultaram de circunstâncias de todo estranha a essa circunstância, ou que a seguradora pagou mais que o devido”.
3. Sucede, todavia, que o Supremo Tribunal de Justiça considerou que, no caso, não se colocava nenhum problema de ónus da prova, por estarem provados os factos necessários para o reconhecimento do direito ao reembolso pretendido pela seguradora:
“Também não há dúvida que quando se prova a culpa do condutor e o nexo de causalidade entre a condução ilegal e os danos suportados pela Seguradora a esta assiste o direito de reaver quanto desembolsou. A questão põe-se quando, como é frequente, se não apura a forma como o acidente ocorreu ou, no caso de abandono do sinistrado e para quem entenda necessária tal prova, se desconhece a medida da contribuição do abandono para o agravamento dos danos. Então, de acordo com as vistas regras do ónus da prova e conforme disposto no art. 516.º do C PC, a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.
(...)
“No caso sub judicio, assente a total culpa do R. ora Recorrente e a sua inabilitação legal para conduzir, apurado que a Seguradora pagou aquilo a que foi condenada e não mais, tem a Seguradora direito de reembolso do que pagou, ainda que o condutor legalmente inabilitado fosse, à data do acidente e como resulta da factualidade provada (n.ºs 36 a 39), um artista a ultrapassar, imobilizar e estacionar o veículo, a inverter o sentido de marcha e a recuar.”
4. Admite-se, assim, que seja inútil julgar o objecto do presente recurso, por, não tendo ficado por provar nenhum facto relativo à existência do referido nexo de causalidade, de acordo com o acórdão recorrido, não se colocar nenhuma questão relativa à repartição do ónus da prova. Ora, como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental, o que implica, como se sabe, que
é condição do conhecimento do respectivo objecto a possibilidade de repercussão do julgamento que nele vier a ser efectuado na decisão recorrida (ver, por exemplo, o acórdão deste Tribunal com o nº 463/94, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Novembro de 1994). No caso, admite-se que, ainda que a norma impugnada viesse a ser julgada inconstitucional, o Tribunal a quo não teria necessidade de alterar o acórdão recorrido.
5. Assim, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 704º do Código de Processo Civil, notifique as partes para se pronunciarem, querendo, sobre a possibilidade de não ser conhecido o objecto do recurso.»
Nenhuma das partes respondeu.
7. Pelas razões constantes do parecer acabado de transcrever, não se pode conhecer do objecto do presente recurso.
Sempre se acrescenta, todavia, que, ainda que assim se não entendesse, seria manifestamente improcedente a alegação de violação do princípio da igualdade (como o recorrente afirma, “na sua vertente da proporcionalidade”). Com efeito, a argumentação desenvolvida pelo recorrente assenta num pressuposto não demonstrado: o de que incumbe à seguradora que pretende o reembolso das quantias que pagou a título de indemnização a alegação e prova do nexo de causalidade nos outros dois casos previstos na alínea c) do artigo 19º. Ora, tal afirmação corresponde, tão somente, à interpretação que o recorrente considera mais adequada para o texto legal; e nem se pode sequer afirmar, como se demonstra no acórdão recorrido, que corresponda a um sentido indiscutivelmente dominante na jurisprudência.
8. Assim, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs., sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Lisboa, 13 de Abril de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Gil Galvão
Bravo Serra Luís Nunes de Almeida