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Processo n.º 243/04
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Em 17 de Março de 2004 foi proferida nos presentes autos decisão sumária de não conhecimento do recurso de constitucionalidade. Foi o seguinte o teor dessa decisão:
«I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, veio recorrer para o Tribunal da Relação de Lisboa do despacho proferido pelo Tribunal Judicial do ----------, no âmbito do processo de inquérito n.º ----------------, o qual determinou, após interrogatório judicial, aplicar-lhe a medida de coacção de prisão preventiva, aguardando nessa situação os demais termos do processo, por se verificarem
“fortes indícios da prática de homicídio qualificado na forma tentada”, bem como
“os perigos de fuga e de perturbação do inquérito nos termos dos artigos 204º, alíneas a) e b), do CPP decorrentes das elevadas penas abstractas aplicáveis, da mobilidade que caracteriza a etnia cigana e das relações familiares actualmente bastante conturbadas que existem entre os arguidos e a vítima e seus familiares”. Nas alegações de recurso apresentadas perante o Tribunal da Relação de Lisboa, o recorrente formulou, no que aos presentes autos releva, as seguintes conclusões:
«(...)
2. No caso sub judice, o preenchimento de um dos requisitos gerais necessário para a aplicação de uma qualquer medida de coacção, nos termos do artigo 204º do Código de Processo Penal, foi incorrectamente considerado pelo Tribunal recorrido já que,
3. Considerou a decisão recorrida existir perigo de fuga com base, não em elementos concretos que o indiciassem – porque inexistentes –, mas sim na
“mobilidade da etnia cigana”, fundamento inaceitável do ponto de vista jurídico porque tal entendimento permite que aquele requisito em concreto se encontre sempre preenchido para todos os indivíduos de etnia cigana, o que é claramente inconstitucional face ao princípio da igualdade plasmado no artigo 13º da Lei Fundamental.
(...)» Por acórdão datado de 3 de Fevereiro de 2004, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida. Pode ler-se nessa decisão:
«(...) Sendo a prisão preventiva a medida mais gravosa de entre as medidas cautelares previstas no CPP só deve a mesma ser aplicada se, em concreto, se verificarem os perigos enumerados no art. 204º do CPP e se, em concreto, essas exigências cautelares forem de tal modo prementes e insusceptíveis de serem garantidas por outras medidas cautelares menos gravosas e limitativas dos direitos do arguido. Só excepcionalmente deve ser aplicada a medida de prisão preventiva que tem carácter residual ou subsidiário, o que decorre do princípio constitucional consagrado no art. 28º da CRP.
(...) As medidas de coacção estão sujeitas aos princípios da legalidade, da proporcionalidade e adequação e da necessidade, enunciados nos arts. 191º e 193º do C.P.P.. Estes princípios são uma emanação do princípio constitucional da presunção de inocência que impõe que “qualquer limitação à sua liberdade, anterior à condenação com trânsito em julgado, deva não só ser socialmente necessária como também suportável” (Castro e Sousa, in Jornadas de Direito Processual Penal, p.
150). Nenhuma medida, porque restritiva de direitos fundamentais, deve ser aplicada se não se revelar absolutamente necessária e a medida utilizada deve ser adequada a prosseguir os objectivos cautelares para que foi criada pela lei e deve ser proporcional ao fim visado, proibindo-se o excesso da medida relativamente aos fins obtidos. As medidas coactivas só devem ser usadas se estritamente necessárias e sempre no quadro legalmente estabelecido, com prioridade para as menos gravosas e desde que da sua aplicação não resultem inconvenientes graves para a prossecução do interesse processual em causa. Dos meios de prova utilizáveis nesta sede, é possível concluir pela possibilidade de existência ainda dos seguintes factos, além dos já referenciados acerca dos pressupostos dos crimes:
– o arguido é vendedor ambulante, tendo-se envolvido numa briga com outros indivíduos, também como ele de etnia cigana, briga essa que teve como origem a tentativa de o grupo a que pertencia o recorrente retirar “pela força” uma criança a uma jovem que a transportava à saída do estabelecimento prisional do
--------------, onde o referido grupo se tinha deslocado com o dito objectivo;
– É solteiro e vive com a mulher e um filho de 6 anos de idade.
– Referiu ter os seguintes antecedentes criminais: uma condenação em pena de 5 anos e 3 meses de prisão por tráfico de estupefacientes, três condenações por furto, nas penas de 2 anos, 7 anos e 10 meses e 3 anos de prisão e uma condenação em multa por condução ilegal. A decisão recorrida assentou a aplicação da referida medida de coacção nos receios de fuga e de perturbação do inquérito, a partir da ponderação de que o modo de vida do arguido é pouco estável, atenta a mobilidade que caracteriza a etnia cigana e do receio de aplicação de uma pena elevada, atenta a natureza do crime e as penas aplicáveis e devido às conturbadas relações familiares entre os arguidos e a vítima e as respectivas famílias. Estes factos são realmente preponderantes para a decisão. Não se trata de fazer assentar o perigo de fuga no facto de o arguido ser de etnia cigana. Trata-se de retirar dessa realidade, conjugada com a sua actividade profissional e modo de vida que o leva a viajar ou a deslocar-se frequentemente – muitas vezes em conjunto porventura com o outro arguido, é a própria defesa que o afirmou em interrogatório, referindo “as contradições dos depoimentos como fruto das relações desta etnia, já que ... eles costumam passear juntos ou viajar juntos para todos os efeitos, o que é aliás comumente sabido” –, o que determina uma mais fácil circulação de pessoas e bens, quer do próprio arguido quer dos restantes membros do seu agregado familiar. Também não é de subestimar o receio da perturbação do inquérito referida pela decisão recorrida, receio que se configura perante a natureza das relações entre a vítima e o arguido e respectivas famílias e pela forma como através das circunstâncias apuradas revelaram pretender resolver os seus litígios e questões familiares e outras. Quanto à alusão aos antecedentes criminais não se trata, como refere o recorrente, de uma presunção de culpabilidade sobre o recorrente, mas de aferir da personalidade do arguido e das razões para recear pela aplicação de uma pena gravosa, em consonância com a gravidade da ilicitude e a natureza do crime e circunstância em que foi cometido. Os factos em si e as circunstâncias em que agiu denotam uma ilicitude muito elevada. No caso concreto, a necessidade, adequação e proporcionalidade da prisão preventiva resulta desde logo das exigências cautelares acabadas de definir que, pela sua natureza e dimensão e face às circunstâncias do caso concreto, gravidade dos crimes e personalidade do agente. Face às molduras penais aplicáveis aos crimes indiciados, a prisão preventiva é adequada à gravidade do crime e à pena que previsivelmente vier a ser aplicada, mostrando-se todas as outras medidas ineficazes para atingir as referidas finalidades de prevenir a fuga e os receios de perturbação do inquérito e de perturbação do alarme social ligado à prática deste tipo de crimes, nomeadamente num meio como aquele em que os factos ocorreram. Preenchem-se, pois, todos os pressupostos para aplicação ao arguido da medida de prisão preventiva, enunciadas nos arts. 191º,193°, 202° e 204°, a) e b), do CPP.»
2. O recorrente interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo ver “apreciada a inconstitucionalidade da norma do Código de Processo Penal – artigo 204º, alínea a) –, com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida, segundo a qual, a realidade de se ser de etnia cigana, atentas as suas características próprias, como a mobilidade que a caracteriza, preenche, sem mais, o requisito perigo de fuga”, por tal interpretação violar, no seu entender, “o princípio constitucional da igualdade vertido no artigo 13º da CRP, que proíbe que alguém seja prejudicado em razão da sua raça”. Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3. Analisados os autos, verifica-se que não se pode tomar conhecimento do recurso, pelo que é caso de proferir decisão sumária, nos termos do artigo
78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional. Na verdade, o presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. E, como se sabe, para se poder conhecer desse tipo de recurso, torna-se necessário, a mais do esgotamento dos recursos ordinários e de que a inconstitucionalidade desta tenha sido suscitada durante o processo, que a norma (ou interpretação, se, como é o caso, apenas esta for) impugnada tenha sido aplicada, como ratio decidendi, pelo tribunal recorrido. No presente caso, o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade da norma do artigo 204º, alínea a), do Código de Processo Penal – segundo a qual a prisão preventiva não pode ser aplicada “se em concreto se não verificar: a) Fuga ou perigo de fuga (...)” –, na interpretação, que diz aplicada na decisão recorrida, “segundo a qual, a realidade de se ser de etnia cigana, atentas as suas características próprias, como a mobilidade que a caracteriza, preenche, sem mais, o requisito perigo de fuga”. Ora, pode ler-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa recorrido, ao apreciar o despacho da 1ª instância, que:
«(...) A decisão recorrida assentou a aplicação da referida medida de coacção nos receios de fuga e de perturbação do inquérito, a partir da ponderação de que o modo de vida do arguido é pouco estável, atenta a mobilidade que caracteriza a etnia cigana e do receio de aplicação de uma pena elevada, atenta a natureza do crime e as penas aplicáveis e devido às conturbadas relações familiares entre os arguidos e a vítima e as respectivas famílias. Estes factos são realmente preponderantes para a decisão. Não se trata de fazer assentar o perigo de fuga no facto de o arguido ser de etnia cigana. Trata-se de retirar dessa realidade, conjugada com a sua actividade profissional e modo de vida que o leva a viajar ou a deslocar-se frequentemente – muitas vezes em conjunto porventura com o outro arguido, é a própria defesa que o afirmou em interrogatório, referindo “as contradições dos depoimentos como fruto das relações desta etnia, já que ... eles costumam passear juntos ou viajar juntos para todos os efeitos, o que é aliás comumente sabido” –, o que determina uma mais fácil circulação de pessoas e bens, quer do próprio arguido quer dos restantes membros do seu agregado familiar. Também não é de subestimar o receio da perturbação do inquérito referida pela decisão recorrida, receio que se configura perante a natureza das relações entre a vítima e o arguido e respectivas famílias e pela forma como através das circunstâncias apuradas revelaram pretender resolver os seus litígios e questões familiares e outras. Quanto à alusão aos antecedentes criminais não se trata, como refere o recorrente, de uma presunção de culpabilidade sobre o recorrente, mas de aferir da personalidade do arguido e das razões para recear pela aplicação de uma pena gravosa, em consonância com a gravidade da ilicitude e a natureza do crime e circunstância em que foi cometido.
(...)» Como se conclui pela simples leitura desta passagem da fundamentação da decisão recorrida – e em particular das passagens que foram sublinhadas –, ela não assentou no entendimento de que ser “etnia cigana, atentas as suas características próprias, como a mobilidade que a caracteriza, preenche, sem mais, o requisito perigo de fuga”. Bem pelo contrário: não só se contrariou expressamente tal ilação, fazendo assentar o perigo de fuga também na
“actividade profissional e modo de vida [do arguido] que o leva a viajar ou a deslocar-se frequentemente”, como se referiu ainda, como fundamento autónomo da aplicação da prisão preventiva, “o receio da perturbação do inquérito referida pela decisão recorrida”, cuja configuração foi seguidamente fundamentada com diversos elementos, e também sem ilações a partir da origem étnica do arguido. Forçoso é, pois, concluir que a norma impugnada no presente recurso de constitucionalidade não foi aplicada pela decisão recorrida, nem expressa, nem implicitamente – tendo, até, o acórdão recorrido negado expressamente essa aplicação. Não pode, pois, tomar-se conhecimento do presente recurso de constitucionalidade.»
2.Inconformado com esta decisão, o recorrente vem dela reclamar para a conferência, “ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 2, da Lei n.º 28/82, de
15 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro”, sem, contudo, especificar quaisquer fundamentos para a discordância da decisão reclamada. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, notificado para se pronunciar sobre a reclamação deduzida, veio fazê-lo nos seguintes termos:
“1º A presente reclamação, deduzida sem que o reclamante trate sequer de justificar minimamente as razões da sua dissidência com a decisão reclamada, carece de fundamento.
2º Pelo que deverá naturalmente confirmar-se, por inteiro, aquela decisão.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.Como se salientou no relatório, o reclamante não curou de indicar quaisquer razões para a discordância da decisão reclamada, limitando-se a afirmar que pretendia dela reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional. Não obstante, tal não constitui óbice a que se aprecie a presente reclamação, entendendo-se que esta disposição confere aos recorrentes que vejam proferida decisão sumária o direito de verem tal decisão reapreciada pela conferência, e não apenas por um juiz: isto é, o direito a requerer que sobre a questão do conhecimento do recurso ou sobre a questão de constitucionalidade que haja sido considerada “simples”, para o efeito de prolação de decisão sumária, recaia um acórdão, independentemente de qualquer impugnação das razões em que se fundou esta decisão sumária.
4.Consultando a decisão de que o ora reclamante interpôs recurso de constitucionalidade, o teor do seu requerimento de recurso e a decisão sumária reclamada verifica-se, porém, que a norma impugnada no recurso de constitucionalidade não constituiu a ratio decidendi do acórdão recorrido. Antes pelo contrário, este acórdão negou expressamente a ilação sobre o perigo de fuga do arguido a partir da etnia cigana, invocando outras circunstâncias (quer a
“actividade profissional e modo de vida que o leva a viajar ou a deslocar-se frequentemente”, quer o “receio de aplicação de uma pena elevada, atenta a natureza do crime e as penas aplicáveis”). Como correctamente se afirma na decisão reclamada, o acórdão recorrido não aplicou, pois, qualquer norma no sentido de que a “etnia cigana, atentas as suas características próprias, como a mobilidade que a caracteriza, preenche, sem mais, o requisito perigo de fuga”, tendo, ainda, além disso, assentado, como fundamento autónomo da aplicação da prisão preventiva, no “receio da perturbação do inquérito referida pela decisão recorrida”, fundamentado com diversos elementos, sem ilações a partir da origem
étnica do arguido. A decisão reclamada, no sentido de que a norma impugnada no presente recurso de constitucionalidade não foi aplicada pelo acórdão recorrido, nem expressa, nem implicitamente, e de que, consequentemente, não pode tomar-se conhecimento do recurso de constitucionalidade, merece, pois, ser confirmada, desatendendo-se a presente reclamação. III Decisão Com estes fundamentos, decide-se indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão de não conhecimento do recurso de constitucionalidade. Custas pelo reclamante, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 14 de Abril de
2004
Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos