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Proc. n.º 117/01 Acórdão nº 228/01
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Notificados da decisão sumária de fls. 1710 e seguintes, na qual se decidiu não tomar conhecimento do recurso que haviam interposto para o Tribunal Constitucional, E... e seu irmão, N..., dela vieram reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional
(fls. 1718 e seguintes).
É a seguinte a fundamentação da decisão sumária reclamada:
'[…] No requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, lê-se o seguinte:
«E... e seu irmão, N..., [...] vêm interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos e ao abrigo do disposto nos arts. 70º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, 71º, 72º, 75º e 75º-A, n.º s 1 e 2, todos da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, dado que o acórdão recorrido que serviu de base ao presente violou, entre outras normas e princípios jurídicos, o disposto nos artºs 32º, nº 2, 13º e 18º, nº 1 da Constituição da República, no art. 355º do Código de Processo Penal e nos artºs 70º e seguintes do Código Penal, como, em devido tempo, se suscitou na respectiva motivação do recurso interposto para essa Veneranda Relação de Lisboa (cfr. conclusões 18 e seguintes)».
É manifesto que se não pode conhecer do objecto do recurso interposto pelos recorrentes. Com efeito, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – aquele que os recorrentes interpuseram – é um recurso destinado à apreciação da conformidade constitucional de normas (ou de normas, em certa interpretação) aplicadas na decisão recorrida. Tal finalidade decorre, quer da leitura do mencionado preceito, quer da leitura dos n.º s 1 e 2 do artigo 75º-A da mesma Lei. Decorre também do disposto nos artigos 277º, n.º 1, e
280º da Constituição. O nosso ordenamento jurídico não permite a apreciação, pelo Tribunal Constitucional, da conformidade constitucional das próprias decisões recorridas. Não conhece, em suma, a figura do amparo.
Ora, no presente recurso, os recorrentes atribuem ao próprio acórdão recorrido a violação de certos preceitos constitucionais (e também legais), nomeadamente os que consagram a presunção de inocência do arguido e o princípio in dubio pro reo. Dito de outro modo, os recorrentes não questionam a conformidade constitucional de normas de direito infra-constitucional aplicadas no acórdão recorrido, mas a conformidade constitucional do próprio acórdão. Já o haviam feito, aliás, na motivação do recurso interposto perante o Tribunal da Relação de Lisboa, como claramente resulta da leitura das suas conclusões 18. e seguintes (supra, 2.) Interpuseram, pois, um recurso atípico, cujo conhecimento extravasaria largamente a competência do Tribunal Constitucional, definida nas várias alíneas do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Não estando em causa no presente recurso a apreciação de uma autêntica questão de inconstitucionalidade normativa, não pode tomar-se conhecimento do respectivo objecto.'
2. Na reclamação ora em apreço, depois de se transcreverem trechos da decisão sumária reclamada e do acórdão recorrido, bem como as conclusões dos ora reclamantes na motivação do recurso que interpuseram da decisão da 1ª instância para o tribunal recorrido, aduzem-se, em síntese, os seguintes argumentos no sentido da revogação da decisão sumária: a. No recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, os ora reclamantes puseram em causa, não só a matéria de facto, mas ainda a matéria de direito, e inclusivamente a constitucionalidade de algumas das normas – das quais se destacaram os princípios insertos nos artigos 32º, n.º 2, 13º e 18º da Constituição, no artigo 355º do Código de Processo Penal e os artigos 70º e seguintes do Código Penal – que, interpretadas num determinado sentido pelo julgador a quo, levaram a que o mesmo tirasse conclusões que desvirtuaram aquilo que, de facto, se passou em audiência de julgamento; b. O tribunal de 1ª instância valorou erradamente as provas produzidas em audiência de julgamento, designadamente porque acabou por condenar os arguidos, quando contra um e outro não se provaram vários dos factos que, a final, se alega terem sido provados; c. Nessa medida, os ora reclamantes suscitaram e questionaram, ao contrário do que ora se vem invocar, a conformidade constitucional de normas de direito infra-constitucional interpretadas e, consequentemente, aplicadas no acórdão recorrido, designadamente o disposto no artigo 355º do Código de Processo Penal; d. Não foi a conformidade constitucional da decisão judicial, em si, que foi suscitada pelos ali recorrentes; e. No recurso para a Relação de Lisboa, os ora reclamantes limitaram-se a apelar que se procedesse à audição integral da gravação da prova produzida, ou à leitura da transcrição da prova gravada, nos termos e para os fins dos artigos
410º, 412º, n.º 3, e 428º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal; f. Se, nesse recurso, os ora reclamantes não indicaram 'um a um os factos que reputam incorrectamente julgados', em vista de remédio jurídico, tal deveu-se a total impossibilidade material, atento o número de suportes em que a prova gravada está contida; g. Bastaria ouvir os registos da prova, ou proceder à leitura da respectiva transcrição, para se verificar que a prova produzida em julgamento foi incorrectamente valorada; h. Sobre os ora reclamantes, e então recorrentes, não impendia o ónus previsto nos n.º s 3, alíneas a), b) e c), e 4, do artigo 412º do Código de Processo Penal. Na verdade, ao requererem a transcrição integral das gravações, os recorrentes mais não fizeram do que cumprir tal ónus de especificação; i. Se do recorrente N... não se falou em audiência de julgamento, nada se poderia especificar, para efeitos de impugnação da decisão da matéria de facto; j. Os recorrentes, representando essa realidade, puseram em causa, em sede de recurso, a conformidade constitucional das normas infra-constitucionais aplicadas pelo tribunal a quo, como é o caso da constante do artigo 355º do Código de Processo Penal; l) Não suscitaram tal questão para acautelar um qualquer amparo em instância superior, mas porque se lhes afigura, de facto, que o tribunal a quo interpretou, em desconformidade com a Constituição, os atrás referidos preceitos normativos; m. Assim, o recurso interposto pelos ora reclamantes para o Tribunal Constitucional cabe no seu âmbito de apreciação e competência.
3. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional respondeu à reclamação deduzida nos termos seguintes:
'1 - A presente reclamação carece manifestamente de fundamento.
2 - Na verdade, os reclamantes não suscitaram, durante o processo e em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade de normas ou interpretações normativas.
3 - Pressupondo naturalmente o tipo de recurso de fiscalização concreta interposto que o recorrente tenha curado de confrontar o tribunal «a quo», de forma directa e explícita, com uma questão de constitucionalidade normativa.'
II
4. Na decisão sumária reclamada (supra, 1.) considerou-se, em síntese, ser manifesta a impossibilidade de conhecimento do recurso interposto para o Tribunal Constitucional pelos ora reclamantes, dado que no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal se atribuía ao próprio acórdão recorrido a violação de certos preceitos constitucionais, não estando portanto em causa a apreciação de uma autêntica questão de inconstitucionalidade normativa. Acrescentou-se ainda, na decisão sumária reclamada, que os ora reclamantes não haviam questionado a conformidade constitucional de normas de direito infra-constitucional na motivação do recurso que haviam interposto perante o Tribunal da Relação de Lisboa (o tribunal recorrido), tendo-se limitado a questionar a conformidade constitucional do próprio acórdão da 1ª instância, como claramente resultava da leitura das suas conclusões 18. e seguintes. Em suma: o recurso interposto para o Tribunal Constitucional pelos ora reclamantes era um recurso atípico, por nele se pretender a apreciação da conformidade constitucional do próprio acórdão recorrido, conclusão que com toda a evidência se retirava, quer do teor do requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, quer das conclusões da motivação do recurso interposto perante o Tribunal da Relação de Lisboa.
5. Na presente reclamação sustenta-se (supra, 2., alíneas a), c), d), j), l) e m)) que, contrariamente ao afirmado na decisão sumária reclamada, os reclamantes suscitaram perante o tribunal recorrido a questão da inconstitucionalidade de normas de direito infra-constitucional, designadamente a da norma do artigo 355º do Código de Processo Penal, pelo que o recurso interposto para o Tribunal Constitucional se não confundia com um amparo, podendo ser apreciado por este Tribunal. O representante do Ministério Público, na resposta a que já se fez referência
(supra, 3.), considerou que os reclamantes não suscitaram, durante o processo, e em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade de normas ou interpretações normativas. E, na verdade, não se compreende como podem os reclamantes sustentar que questionaram perante o tribunal recorrido a conformidade constitucional de normas de direito infra-constitucional. Tal afirmação, que não resulta da integral leitura dos autos, é além disso absolutamente desmentida pela leitura da motivação do recurso que interpuseram perante o Tribunal da Relação de Lisboa; aliás, os ora reclamantes transcrevem na reclamação as conclusões de tais alegações quando procuram demonstrar que suscitaram uma questão de inconstitucionalidade de normas. Assim, na conclusão n.º 18 (cfr. fls. 1577 do processo) lê-se: 'O acórdão recorrido violou, assim, entre outras normas jurídicas, o disposto nos Artigos
32º, N.º 2, 13º e 18º, N.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, o disposto no Artigo 355º do Código de Processo Penal e os Artigos 70º e seguintes do Código Penal vigente.' (itálico acrescentado). E em nenhuma outra conclusão se imputa qualquer desconformidade constitucional a qualquer norma.
6. Não tendo os ora reclamantes suscitado qualquer questão de inconstitucionalidade normativa durante o processo, não podem naturalmente invocar o processado para demonstrar que o recurso que interpuseram para o Tribunal Constitucional era afinal típico, por nele se pretender a apreciação de uma questão de inconstitucionalidade normativa.
É que não só no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal se imputa ao próprio acórdão recorrido a violação de normas constitucionais (e também de normas de direito ordinário), como da leitura dos autos resulta que nunca os reclamantes questionaram, contrariamente ao que agora alegam, a desconformidade constitucional de qualquer norma, mas apenas a de uma decisão judicial. Diga-se, aliás, que esta última circunstância seria, só por si, suficiente para não conhecer do objecto do recurso interposto pelos ora reclamantes para o Tribunal Constitucional. Efectivamente, resulta claramente da leitura do disposto nos artigos 70º, n.º 1, alínea b) e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional que um dos pressupostos processuais do recurso previsto naquele primeiro preceito é o ter a parte suscitado a questão da inconstitucionalidade normativa durante o processo. Pressuposto que nunca estaria evidentemente preenchido.
7. A restante argumentação dos reclamantes (supra, 2., alíneas b), e), f), g), h), i)) é absolutamente irrelevante para a decisão da presente reclamação, isto é, para a questão de saber se a decisão sumária reclamada deve ser mantida ou revogada. Com efeito, a valoração alegadamente errada das provas, o apelo feito ao tribunal recorrido à audição integral da gravação ou à leitura da respectiva transcrição, a alegada impossibilidade de especificação dos factos incorrectamente julgados, a circunstância de o recorrente N... não ter sido mencionado na audiência de julgamento são elementos que em nada influem na questão jurídica a resolver, e que consiste em saber se os ora reclamantes, ao recorrerem para o Tribunal Constitucional, pretenderam ou não a apreciação da conformidade constitucional de uma norma, e se os restantes pressupostos processuais do recurso que interpuseram se encontram preenchidos.
8. Demonstrado que está que no recurso interposto pelos ora reclamantes para o Tribunal Constitucional se não pretendeu a apreciação de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, bem como que no processo não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, é de manter a decisão sumária reclamada, que concluiu no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, confirmando-se a decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta, por cada um.
Lisboa, 23 de Maio de 2001- Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida