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Procº nº 560/2003.
3ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Não se conformando com o acórdão proferido em 27 de Novembro de 2002 pelo Tribunal da Relação de Lisboa que negou provimento ao recurso interposto do acórdão lavrado pela 1ª Vara Criminal de Lisboa que o condenou na pena única de cinco anos de prisão pela autoria de factos que foram subsumidos ao cometimento de um crime de roubo, previsto e punível pelo artº
210º, números 1 e 2, alínea b), com referência ao artº 204º, nº 1, alíneas a) e g), ambos do Código Penal, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artº 275º, números 1 e 3, do mesmo Código, o último com referência ao artº 1º, nº 1, alínea a), e nº 2, este do Decreto-Lei nº 207-A/75, de 17 de Abril, e de um crime de resistência a funcionário, previsto e punível pelo artº
347º do aludido Código, recorreu o arguido A. para o Supremo Tribunal de Justiça.
Neste Alto Tribunal, o Representante do Ministério Público exarou «parecer» no sentido de ser o recurso rejeitado por força do estatuído na alínea f) do nº 1 do artº 400º do Código de Processo Penal,
«parecer» esse que, contudo, não foi notificado ao arguido.
Após o relator ter determinado, por despacho de 14 de Março de 2003, que os autos fossem à conferência, por entender que o recurso era de rejeitar (despacho esse que também não foi notificado ao arguido), o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 27 de Março de 2003, rejeitou o recurso, com base nas disposições constantes dos artigos 400º, nº 1, alíneas e) e f).
Notificado deste aresto, o arguido veio arguir a respectiva nulidade, brandindo, para tanto, por um lado, com a circunstância de a deliberação de rejeição dele constante não ter sido efectuada por unanimidade e, por outro, por ter sido violado o nº 2 do artº 417º do Código de Processo Penal, por isso que não foi notificado o «parecer» exarado pelo Ministério Público no sentido de ser rejeitado o recurso.
Reza assim o requerimento consubstanciador da arguição de nulidade:
“A., Recorrente nos autos à margem indicados devidamente notificado do, aliás, douto Acórdão de fls. , que rejeitou o recurso vem arguir a sua nulidade nos termos e com os fundamentos seguintes:
1 - O Acórdão, cuja nulidade ora se suscita, foi julgado em conferência.
2 - Como se sabe, o recurso deve ser julgado em conferência, inter alia, quando
‘deva ser rejeitado’ (artº 419°, n° 4, a) do C.P.P.).
3 - E, ‘o recurso é rejeitado sempre que ... se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do artigo 414º, n° 2’ (cf. artº 420°, n° 1, do C.P.P.).
4 - Todavia, 'A deliberação de rejeição exige a unanimidade de votos’, como expressamente determina o n° 2 do artº 420° do C.P.P.
5 - Ora, constata-se não ter sido tomada por unanimidade, a deliberação de rejeição do recurso, em clara violação da citada disposição legal.
6 - Com efeito, a mesma foi tomada com declaração de voto de vencido do Senhor Juiz Conselheiro B..
7 - Por outro lado, mostram-se, também, violadas as disposições do artº 417°, n°
2 do C.P.P.
8 - Com efeito, o Ministério Público quando da vista do processo, que é imposta pelo artº 416° do C.P.P., não se limitou a ap[o]r o seu visto.
9 - Efectivamente, e como se colhe do douto Acórdão, ‘Neste Supremo Tribunal, o Exmo Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido da rejeição do recurso, nos termos do artº 400º, nº1, al. f), do C.P.P.’.
10- Ora, não foi facultado ao arguido, ora Recorrente, o direito a pronunciar-se relativamente à nova questão suscitada pelo Ministério Público, em clara violação do princípio do contraditório, que tem consagração, quer na Lei Ordinária quer na Lei Constitucional.
11 - Com efeito, determina o n° 2 do artº 417° do C.P.P. que, ‘Se, na vista a que se refere o artigo anterior, o Ministério Público não se limitar a ap[o]r o seu visto, o arguido e os demais sujeitos processuais afectados pela interposição do recurso são notificados para, querendo, responder no prazo de 10 dias’.
12 - A omissão de tal notificação constituí, para além de uma clara violação da disposição legal atrás referida – artº 417º , n° 2 do C.P.P. -, uma clara ofensa ao princípio do contraditório, bem como às garantias de defesa do arguido, legalmente garantidos e consagrados na Constituição.
13 - Aliás, é esta a posição jurisprudencial, deste mais Alto Tribunal.
14 - Assim, já no Acórdão de 18 de Abril de 1990 - Proc. 40.460/3ª, citado por Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 1999, 11ª edição, pág. 757, e, ainda antes da introdução do n° 2 ao artº 417° do C.P.P.; levada a cabo pela Lei n° 59/98, de 25 de Agosto o Supremo Tribunal de Justiça, decidiu:
‘I - O artº 416º do C.P.P. não ofende qualquer preceito do CRP, designadamente os nº.s 1 e 5 do seu artº 32º se interpretado de modo a não retirar ao arguido qualquer meio de defesa e a ser respeitado o principio do contraditório’.
‘II - Assim, se o MP no Tribunal superior, aquando do termo de vista a que aquele preceito alude, se não limita a ap[o]r o seu visto ou a concordar com a posição assumida pelo MP no Tribunal inferior, deve facultar-se o parecer emitido à parte contrária para que responda em prazo razoável que lhe será fixado; de outro modo, violar-se-á. o principio do contraditório e não serão acatados aqueles preceitos da CRP, sendo nulo o processado posterior’.
15 - Mostram-se, pois, violadas as disposições legais dos artº.s 417°, n° 2 e
420°, nº 2, ambos do C.P.P., bem como o princípio do contraditório e das garantias de defesa do arguido, consagrados no artº 32°, n° 1 e 5 da CRP.
16 - O arguido está em tempo para suscitar as nulidades e irregularidades processuais atrás assinaladas, uma vez que apenas delas tomou conhecimento através da notificação do Acórdão, levada a cabo através de registo postal datado de 31 de Março de 2003 ( cf. artº 118°, n° 1, 123°, n° 1,379°, n° 2, todos do C.P.P.
17 - Aliás, é este o entendimento de Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal, Anotado e Comentado, 1999, 11 I edição, pág. 688, quando refere:
‘... no caso de recurso, a arguição de nulidades da sentença podia ser feita na motivação e, consequentemente, no prazo desta, como se deduzia do artº 410º n°
3. Não havendo recurso, a arguição podia ser feita no prazo geral (solução geral, aflorada no artº 309º n° 2)’.
18 - Ora, ‘as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar’ (artº 122°, n° 1, do C.P.P.).
19 - A entender-se, contudo, não passarem de meras irregularidades processuais, a omissão da notificação ao arguido, determinada pelo artº 417°, n° 2, do C.P .P
., bem como a violação do n° 2 do artº 420°, por a deliberação de rejeição do recurso não ter sido tomada por unanimidade de votos,
20 - deverão declarar-se inválidos os actos praticados a partir do Parecer do Sr. Procurador-Geral Adjunto, emitido ao abrigo do disposto no artº 416° do C.P.P.,
21 - ordenando-se se cumpra o disposto no artº 417°, n° 2, do C.P.P .
22 - Sendo, ainda, certo que o douto Acórdão ‘sub judice’ é nulo por violar claramente o disposto no artº 420°, n° 2, do C.P.P..
23 - Pelo que, sempre deverá o recurso, sanados que forem os vícios atrás referidos, seguir os trâmites do artº 421° e seguintes do C.P.P.”.
Tendo o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 22 de Maio de 2003, indeferido a arguição, veio o arguido recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, dizendo que “o Ac[ó]rdão Recorrido, na interpretação que fez dos artºs 400º, al[í]nea f), 417º, nº 2 e 420º, nºs 1 e 2, todos do Código Penal, violou o pr[i]inc[í]pio da legalidade, consagrado nos artºs 3º, 203º e 204º da CRP e o princípio do contraditório consagrado no artº 32º, nºs 1 e 5º da CRP”, acrescentando que “suscitou no decorrer do processo, designadamente no requerimento do recorrente arguindo a nulidade do Ac[ó]rdão proferido pelo S.T.J., a inconstitucionalidade das normas atrás referidas na interpretação que das mesmas fez o S.T.J.”.
Por despacho de 12 de Junho de 2003, o Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça não admitiu o recurso, o que fez com base na consideração segundo a qual, tendo o recurso sido rejeitado com fundamento nas alíneas e) e f) do nº 1 do artº 400º do diploma adjectivo criminal, e vindo o recorrente, perante o Tribunal Constitucional, impugnar o acórdão, mas só quanto ao fundamento constante da alínea f) acima citada, sempre subsistiria a razão esteada naquela alínea e), pelo que o eventual provimento do recurso de constitucionalidade não teria qualquer utilidade, já que sempre subsistiria a razão de rejeição do recurso vertida naquele acórdão que foi ancorada na dita alínea e).
É deste despacho que, pelo arguido, vem deduzida reclamação para o Tribunal Constitucional.
O Representante Ministério Público junto deste órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa, na «vista» que teve dos autos, propugnou pelo deferimento da reclamação no que concerne à interpretação normativa constante do nº 2 do artº 417º do Código de Processo Penal, sendo que, sublinhou, essa questão se configurava como prévia ou prejudicial daqueloutra relativa à da interpretação das alíneas e) e f) do artº.
400º do mesmo corpo de leis, pois que era útil a “dirimição de tal questão, já que a nulidade procedimental cometida em violação do contraditório do arguido”, implicava “a necessária reponderação da questão da admissibilidade do recurso para o Supremo, face às razões, porventura, invocadas na resposta ao parecer do M.P.”.
Cumpre decidir.
2. Tem este Tribunal vincado (cfr., por entre outros, os Acórdãos números 276/88, publicado na 2ª Série do Diário da República de 20 de Fevereiro de 1989, 284/91, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional,
19º volume, 395 a 400, 35/92, publicado nos citados Acórdãos ..., 21º volume,
739 a 744, e 641/99, ainda inédito), que os seus poderes de cognição, nas reclamações que não admitem recursos para o mesmo interposto, não se circunscrevem à reapreciação do específico fundamento da rejeição do recurso, sendo-lhe lícito alargar o objecto da reclamação quando os elementos constantes da reclamação tal o permitam. E isso, justamente, porque, destinando-se as reclamações sobre a não admissão dos recursos intentados para o Tribunal Constitucional a verificar a eventual preterição da devida reapreciação, por ele, de uma questão de constitucionalidade, mais do que apreciar a fundamentação do despacho de indeferimento de recurso, há que verificar o preenchimento dos requisitos do recurso de constitucionalidade que se pretendeu interpor, porquanto, nos termos do nº 3 do artº 77º da Lei nº 28/82, a decisão que revogar o despacho de não admissão do recurso faz caso julgado quanto à sua admissibilidade.
Ora, como deflui do relato supra efectuado, aquando da arguição de nulidade do acórdão prolatado em 27 de Março de 2003, o ora reclamante, de todo em todo, não veio invocar qualquer vício de desconformidade com a Lei Fundamental relativamente às normas (ou a uma sua qualquer dimensão interpretativa) ínsitas nos artigos 400º, nº 1, alínea f), 417º, nº 2, e 420º, números 1 e 2, todos do Código de Processo Penal, limitando-se a referir que foram violados os mencionados artigos 420º, números 1 e 2, e 417º, nº 2, ao se ter tomado a deliberação de rejeição do recurso sem que tivesse havido unanimidade dos Juízes que compunham a conferência, e sem que lhe tivesse sido dado o direito de pronunciar-se sobre a questão suscitada pelo Ministério Público, em clara violação do princípio do contraditório, princípio esse com consagração na lei ordinária e na Constituição.
E, ao referir que se mostravam “violadas as disposições legais dos artº.s 417º, nº 2 e 420º, nº 2, ambos do C.P.P., bem como o princípio do contraditório e das garantias de defesa do arguido, consagrados no artº 32º, nº 1 e 5 da CRP”, torna-se evidente que se não atacam aqueles dispositivos
(recte, o sentido interpretativo que lhes foi conferido pela decisão tomada pelo Supremo Tribunal de Justiça), mas sim a concreta actuação seguida por aquele Alto Tribunal ao ter proferido, em conferência, um acórdão de rejeição de recurso, assinado por um dos Juízes com uma declaração de voto, e ao não ter determinado que o arguido se pronunciasse sobre o «parecer» exarado pelo Ministério Público no sentido de ser rejeitado o recurso.
Significa isso que o vício de inconstitucionalidade foi assacado, não a dadas normas (ainda que alcançadas mediante o recurso a um qualquer processo interpretativo), mas sim a actos concretos de aplicação do Direito.
Não se pode, pois, neste particular, sustentar, como o faz o Representante do Ministério Público junto deste Tribunal, que houve uma suscitação adequada e tempestiva da questão de inconstitucionalidade de tais normas.
Sendo assim, e sabido que é que o objecto dos recursos a que aludem os artigos 70º da Lei nº 28/82 e 280º do Diploma Básico é constituído por normas constantes do ordenamento jurídico infraconstitucional e não quaisquer outros actos do poder público tais como, verbi gratia, as decisões judiciais qua tale consideradas, só se poderá concluir pela inadmissibilidade do vertente recurso atinente aos artigos 417º, nº 2, e 420º, números 1 e 2.
2.1. Por último, e relativamente à alínea f) do nº 1 do artº 400º do Código de Processo Penal - suposto que se reuniriam, in casu, os requisitos da suscitação de inconstitucionalidade durante o processo e reportadamente a uma certa interpretação desse preceito -, é de entender que o Tribunal Constitucional não poderá conhecer dessa impugnação.
Na verdade, por seu intermédio, intentava-se apreciar a desconformidade com a Lei Fundamental por violação do princípio da legalidade.
Ora, considera-se, na esteira do doutrinado no Acórdão nº 674/99 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 25 de Fevereiro de
2000), que não traduz uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa o problema atinente à forma ou ao modo como o direito ordinário é interpretado, para daí concluir que a norma alcançada por interpretação, ao ultrapassar o campo semântico dos conceitos jurídicos empregues pelo legislador, viola o princípio da legalidade.
A este propósito, convém respigar alguns passos escritos no aludido Acórdão nº 674/99.
Assim, disse-se em tal aresto, ao se enfrentar a questão de saber se se pode considerar um real problema de inconstitucionalidade normativa quando está em causa um processo interpretativo que, por não ter respeitado os limites da interpretação da lei criminal decorrentes do princípio da legalidade, vai conduzir a uma aplicação de um dado preceito para além do que se contém no seu teor literal:-
“.............................................................................................................................................................................................................Resta, porém, saber se essa questão se reconduz a uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, isto é, a uma questão que caiba ao Tribunal Constitucional conhecer, no âmbito do recurso de constitucionalidade.
50. O Tribunal Constitucional, pela sua 2ª Secção, começou por considerar que, em tais casos, se estaria perante «a inconstitucionalidade do acto de julgamento, e não a inconstitucionalidade de uma norma jurídica», pelo que se lhes não aplicaria o sistema de fiscalização da constitucionalidade, ao qual estão «apenas sujeitos os actos do poder normativo» (cfr. Acórdão nº
353/86, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8º vol., págs. 571 e segs.).
Contudo, mais tarde, no Acórdão nº 141/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., págs. 599 e segs.), o Tribunal Constitucional, pela sua 1ª Secção, embora com o voto de vencido do Exmº Presidente, Consº Cardoso da Costa, deu resposta afirmativa ao problema. Afirmou-se então:
«De facto, poderia sustentar-se que o Tribunal Constitucional carecia de competência para conhecer do objecto deste recurso, porquanto não estaria em causa propriamente matéria normativa (norma inconstitucional, numa certa interpretação da mesma), mas matéria decisória (o Supremo Tribunal de Justiça, ao confirmar a decisão condenatória da primeira instância, teria aplicado analogicamente uma norma incriminatória, em contravenção imediata ao disposto no artigo 1º, nº 3, do Código Penal, só mediatamente se podendo considerar que esta decisão judicial teria violado os nºs. 1 e 3 do artigo 29º da Constituição
[...].
Não obstante o carácter sugestivo deste raciocínio, crê-se que o mesmo não procede. De facto, o recorrente suscitou no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a questão de inconstitucionalidade da norma [...]. Sustentou aí que o tribunal havia interpretado extensivamente ou aplicado analogicamente certa norma incriminatória, sendo tal interpretação ou aplicação analógica através da criação de uma norma análoga aplicável a um caso omisso, contrárias à Constituição (no caso de se estar perante uma interpretação extensiva, seria também esta inconstitucional tal como o seria, por idêntica razão, o nº 3 do artigo 1º do Código Penal).
Ora, num plano perfunctório de análise de verificação dos pressupostos do recurso de constitucionalidade, ou seja, numa avaliação prima facie de tais pressupostos, entende-se que os mesmos se verificam no caso concreto. Saber se a interpretação perfilhada foi ou não inconstitucional faz parte já do conhecimento da questão de fundo ou de mérito. [...]»
51. Esta última jurisprudência, porém, não se sedimentou. Com efeito, posteriormente, o Tribunal Constitucional veio a entender, nomeadamente no Acórdão nº 634/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29º vol., págs. 243 e segs.), no Acórdão nº 221/95, (Diário da República, II Série, de 27 de Junho de
1995), no Acórdão nº 756/95, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., págs. 775 e segs.), no Acórdão nº 682/95, (inédito) ou, mais recentemente, no Acórdão nº 154/98 (inédito), que hipóteses em que se questionem certas interpretações normativas por ofensa do princípio da legalidade penal - ou hipóteses idênticas, no âmbito do respeito pelo princípio da legalidade fiscal - não traduzem verdadeiras questões de inconstitucionalidade normativa, mas reflectem antes questões de inconstitucionalidade da própria decisão recorrida ou do acto de julgamento.
Assim, pode ler-se no citado Acórdão nº 221/95:
«Portanto, o que a recorrente questiona, no essencial, no recurso interposto no tribunal a quo, não é a norma [...] interpretada em desarmonia com a Constituição, mas, antes, a decisão judicial [...] que, inconstitucionalmente, e na sua tese, tê-la-ia prejudicado, ao aplicar certa norma ao seu caso, através de um método de interpretação colidente com as regras gerais de interpretação das leis fiscais e os princípios constitucionais na matéria [...]».
E, por outro lado, escreveu-se no já mencionado Acórdão nº 154/98:
«Pretende o recorrente que o Tribunal recorrido interpretou a norma do artigo 292º do Código Penal de forma extensiva, aplicando-o analogicamente, desde logo violando o disposto no nº 1 do artigo 29º da Constituição.
No entanto, não é o controlo normativo - legitimante do recurso de constitucionalidade - que está em causa. [...]
Ora, esse objectivo não se compagina com aquele controlo normativo, abrindo via, quando muito, a um recurso de amparo que não está entre nós previsto».
E sublinhe-se também que no anteriormente referido Acórdão nº 682/95 se entendeu sugestivamente que, em tais hipóteses, «o que está em causa não é uma específica dimensão normativa do preceito», mas antes «a determinação do seu
âmbito de aplicação, de acordo com a sua ratio», tarefa que «corresponde apenas
à subsunção jurídica do caso, não havendo nenhum sentido específico da norma confrontável com a Constituição». Por isso, aí mesmo se concluiu que não estaria em causa «qualquer específica questão de constitucionalidade, mas apenas um problema de averiguação da intenção normativa, objectivamente considerada, e de subsunção».
52. Mais recentemente, porém, esta posição do Tribunal - que já não era totalmente unânime (cfr. declarações de voto do Exmo. Conselheiro José de Sousa Brito apostas ao Acórdão nº 634/94 e ao Acórdão nº 756/95) - parece ter-se inflectido através do Acórdão nº 205/99 (Diário da República, II Série, de 5 de Novembro de 1999) e do Acórdão nº 285/99 (Diário da República, II Série, de 21 de Outubro de 1999).
Com efeito, entendeu-se no citado Acórdão nº 205/99:
« É objecto do presente recurso de constitucionalidade o confronto de uma interpretação do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982 com os artigos 29º, nºs 1 e 2 e 32º, nºs 1 e 4, da Constituição.
Consubstancia um tal confronto uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa para cujo conhecimento o Tribunal Constitucional tem competência ou estar-se-á, apenas, perante o pedido de apreciação de uma eventual contradição da decisão recorrida, na sua substância meramente decisória, com a Constituição?
Impõe-se o entendimento segundo o qual o Tribunal Constitucional se confronta, neste caso, com uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, apesar de tal questão resultar de o tribunal recorrido ter atingido um resultado interpretativo eventualmente proibido, em face das restrições interpretativas impostas pelo princípio da legalidade em direito penal.
Com efeito, várias razões intercedem a favor de que a questão colocada não pretende suscitar o mero controlo pelo Tribunal Constitucional da decisão recorrida.
Assim, desde logo, o recorrente não submete à apreciação do Tribunal Constitucional um processo interpretativo utilizado pontualmente na decisão recorrida, isto é, a inserção do caso concreto num âmbito normativo pré-determinado pelo julgador. Não é um tal momento de sotoposição do caso no quadro lógico decorrente da interpretação da norma o que verdadeiramente se questiona, mas antes um certo conteúdo interpretativo atribuído ao artigo 120º, nº 1, alínea a), o qual é identificado. Questiona-se, sem dúvida, se a fixação de sentido da norma, segundo a qual esta abrangerá, em geral, na interrupção da prescrição, a notificação ao arguido do despacho do Ministério Público para interrogatório no inquérito e a realização deste é uma interpretação normativa compatível com a Constituição, em face dos artigos 29º, nºs 1 e 3 e 32º, nºs 1 e
4. É, assim, o conteúdo final da interpretação, ou dito de outro modo, o resultado interpretativo pelo qual se atinge a norma que decide o caso, norma que eventualmente não tem competência constitucional para o decidir, que é submetido ao controlo de constitucionalidade.
A isto acresce que o referido conteúdo interpretativo não é apenas determinado pelo caso concreto, mas é referido com elevada abstracção, na base de uma linha jurisprudencial anterior que utilizou a mesma perspectiva interpretativa para casos idênticos.
Emerge, assim, claramente, de um momento interpretativo a questão de constitucionalidade. Não se trata de um momento meramente aplicativo da norma ao caso concreto, isto é, de uma situação em que o recorrente suscite apenas a correcção lógico-jurídica da inclusão do caso na norma. Trata-se, antes, da indicação, com suficiente autonomia, dos critérios jurídicos genérica e abstractamente referidos pelo julgador ao texto legal para decidir casos semelhantes. Neste caso, foi enunciada pelo julgador uma dimensão normativa que, segundo o recorrente, não corresponde fielmente às palavras do legislador, violando, por isso, o princípio da legalidade, sendo essa dimensão normativa que o recorrente pretende ver apreciada.
Ora, o Tribunal Constitucional não pode deixar de controlar dimensões normativas referidas pelo julgador a uma norma legal ainda que resultantes de uma aplicação analógica, em casos em que estejam constitucionalmente vedados certos modos de interpretação ou a analogia. O resultado do processo de interpretação ou criação normativa (tanto de meras dimensões normativas como de normas autónomas), ínsito na actividade interpretativa dos tribunais, não pode deixar de ser matéria de controlo de constitucionalidade pelos tribunais comuns e pelo Tribunal Constitucional, quando a própria Constituição exigir limites muito precisos a tais processos de interpretação ou criação normativa, não reconhecendo qualquer amplitude criativa ao julgador.
Questão afim da anterior é a de saber se o objecto do recurso é efectivamente o artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal ou antes uma norma construída pelo julgador através de um processo de integração de lacuna por analogia, nos termos do artigo 10º, nºs 1 e 2, do Código Civil. Note-se, porém, que em ambos os casos estaremos confrontados com uma norma cuja conformidade à Constituição é sindicável perante o Tribunal Constitucional. Na primeira hipótese, concluir-se-á que a aplicação analógica ainda constitui uma actividade interpretativa, em sentido amplo, dando como resultado uma certa dimensão normativa que pode contrariar normas ou princípios constitucionais. Na segunda hipótese, estará em causa uma norma não escrita igualmente susceptível de afrontar a Constituição quer quanto ao seu conteúdo quer quanto à sua génese (a circunstância de ser obtida mediante uma aplicação analógica vedada pelo artigo
29º, nºs 1 e 3, da Constituição feri-la-á de inconstitucionalidade material).
Todavia, esta questão acaba por ser de cunho puramente teorético na medida em que estará sempre em causa a questão de saber se é compatível com a Constituição a norma que determina a interrupção da prescrição obtida a partir do artigo
120º, nº 1, alínea a) do Código Penal. E, independentemente de estar em causa uma interpretação extensiva ou aplicação analógica desta norma legal, o que se pergunta é se a norma, dimensão, sentido ou interpretação obtidos contrariam ou não, na sua génese, o princípio da legalidade e, em concreto, a exigência de lex certa que lhe é ínsita».
Também este aresto não obteve unanimidade.
Com efeito, o Exmo. Conselheiro-Presidente manifestou opinião contrária à doutrina que obteve vencimento - em voto de vencido que juntou a este mesmo Acórdão nº 205/99 - tendo então considerado que se não deveria conhecer do recurso, «por entender que o seu objecto extravasa o âmbito da competência e do poder de cognição do Tribunal», e que a argumentação desenvolvida em contrário no acórdão não punha em crise a conclusão «de que, ao cabo e ao resto, já não está em causa, na situação, uma questão de inconstitucionalidade ‘normativa’ – tal como o não estava nos casos versados nos Acórdãos nº 682/95 e 221/95, os quais [...] não são ‘estruturalmente’ diferentes do ora em apreço».
Posição idêntica de afastamento relativamente a esta nova corrente jurisprudencial viria também posteriormente a ser manifestada pelo ora relator, através de declaração de voto aposta, por sua vez, ao mencionado Acórdão nº
285/99.
53. Acerca da questão em apreço, designadamente da eventual extensão do sistema de controlo da constitucionalidade às normas que se extraem da integração de lacunas, afirma Rui Medeiros (A Decisão de Inconstitucionalidade - Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999, págs. 340 a 342):
«A conclusão adoptada não significa, porém, que o Tribunal Constitucional possa fiscalizar a constitucionalidade, não já da norma determinada através do processo de integração de lacunas, mas antes do próprio processo de obtenção da regra aplicável. A questão ganha particular relevância nos domínios em que existe uma proibição constitucional de recurso à analogia. É o que sucede, concretamente, com o princípio constitucional da legalidade em matéria penal.
Há quem entenda que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que, aplicando analogicamente uma norma incriminadora, violam o princípio constitucional da legalidade em matéria penal.
Não duvidamos que essa é a solução mais consentânea com a lógica do recurso de amparo ou da queixa constitucional. Mas, já o sabemos, o legislador constitucional português não quis introduzir um sistema semelhante ao da acção constitucional de defesa de direitos fundamentais. Ora, independente da questão de saber se a violação do nullum crimen sine lege stricta envolve ou não uma inconstitucionalidade directa, a verdade é que, quando invoca a proibição da analogia, o que o recorrente suscita é «a inconstitucionalidade do acto de julgamento e não a inconstitucionalidade de uma norma jurídica». Sem dúvida que, nos casos em que um tribunal interpreta uma lei em desconformidade com a Constituição, a inconstitucionalidade não pode apenas ser imputada ao legislador, pois, sendo possível atribuir à lei um sentido conforme com a Constituição, a disposição legal em si é válida. Mas, na hipótese aqui em apreciação, a inconstitucionalidade, ainda que se convole numa inconstitucionalidade material, reporta-se unicamente ao processo de integração de lacunas adoptado pelo tribunal. Ora, uma coisa é dizer que a norma que um tribunal extrai, ainda que por analogia, de um acto normativo pode ser fiscalizada pelo Tribunal Constitucional, outra, bem diferente, á afirmar que a própria decisão jurisdicional constitui um acto normativo sindicável pelo Tribunal Constitucional. De resto, se assim não fosse, «todas as decisões judiciais, enquanto tais, susceptíveis de fiscalização da constitucionalidade
(...). E assim se defraudaria a Constituição, que expressamente pretendeu que o controlo da constitucionalidade fosse um controlo eminente normativo.
Tudo somado, é possível concluir que, nos casos em que o próprio legislador pode (sem ofender a Constituição) estabelecer por via legislativa solução idêntica àquela que resultava da interpretação ou integração inconstitucional da lei realizada pelo tribunal a quo, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso».
É para a transcrita fundamentação lógica - válida necessariamente, tanto para as formas não admissíveis de interpretação extensiva, como para a interpretação analógica - que ora se remete, assim se confirmando a jurisprudência deste Tribunal seguida entre 1994 e 1998 e vertida nos arestos anteriormente citados.
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De todo o modo, mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma «operação equivalente», designadamente a uma interpretação «baseada em raciocínios analógicos» (cfr. declaração de voto do Consº Sousa e Brito ao citado Acórdão nº 634/94, bem como o já mencionado Acórdão nº 205/99), o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade.
Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal). E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se dedicam os tribunais – designadamente os tribunais supremos de cada uma das respectivas ordens -, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu
«sentido natural» (e qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica.
Ora, um tal entendimento - alargando de tal forma o âmbito de competência do Tribunal Constitucional - deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade normativa. Assim, por exemplo, e no caso dos autos, para decidir a questão de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional seria, em primeira linha, chamado a resolver as controvérsias doutrinais respeitantes à factualidade típica do crime de burla (cfr., verbi gratia, José de Sousa e Brito, A burla do artigo 451º do Código Penal – Tentativa de sistematização, Scientia Ivridica, Tomo XXXII, 1983, págs. 131 e segs.; e Maria Fernanda Palma e Rui Pereira, O Crime de Burla no Código Penal de 1982-95, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXV, 1994, págs. 321 e segs.).
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Neste contexto, não poderia ser conhecida a questão de inconstitucionalidade respeitante ao artº 400º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal, pela alegada violação do princípio da legalidade.
3. Em face do exposto, ponderando as razões agora aduzidas, indefere-se a reclamação, condenando-se o reclamante nas custas processuais, fixando em quinze unidades de conta a taxa de justiça.
Lisboa, 22 de Julho de 2003
Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida