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Proc. N.º 577/99 Plenário Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Requerente e Pedido
1. O Provedor de Justiça, com a legitimidade que lhe confere a alínea d), do n.º
2, do artigo 281º da Constituição da República Portuguesa, vem requerer a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante da alínea c)-1 do artigo 266º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho
(posteriormente alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 298/94, de 24 de Novembro,
297/98, de 28 de Setembro, 188/99, de 2 de Junho, 504/99, de 20 de Novembro e
15/2002, de 29 de Janeiro), conjugada com a norma constante da alínea c) do artigo 4º da Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro (que aprova o Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana), por violação do disposto no artigo
30º, n.º 4, da Constituição.
2. Conteúdo das Normas
A alínea c)-1 do artigo 266º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, tem o seguinte teor:
“Artigo 266º Condições especiais de promoção a cabo São condições especiais da promoção ao posto de cabo:
[...] c) Por diuturnidade
1) Não ter sido punido na Guarda com o somatório de penas superiores a 20 dias de detenção ou equivalente.
[...]
Por seu turno, a alínea c) do artigo 4º da Lei n.º 145/99, estatui:
Artigo 4º
1. – Para todos os efeitos legais e regulamentares, designadamente para efeitos de classificação de comportamento, a correspondência entre as penas previstas no Regulamento de Disciplina Militar e no presente regulamento de Disciplina é determinada pela forma seguinte:
[...] c) Um dia de faxinas, detenção ou proibição de saída correspondem a um dia de suspensão.
[...]
3. Fundamentação do Pedido
O requerente pede a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 266º, al. c)-1, do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho, conjugada com o artigo 4º, al. c), da Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro, por violação do artigo 30º, n.º 4, da Constituição.
Para sustentar a sua pretensão, alega, em síntese, o requerente:
“[...]
4. ...articulando as disposições dos citados artigos, deve entender-se a referência feita à detenção na alínea c), n.º 1 do art.º 266.º como feita à suspensão.
5. O art. 30.º n.º 2 do mesmo regulamento veio dispor quanto à suspensão que esta implica a impossibilidade de ser promovido durante o período de execução de pena.
6. Deste modo, para além da impossibilidade de ser promovido durante o período de execução de pena (situação compreensível e que integra o próprio tipo da pena disciplinar de suspensão) a pena de suspensão por mais de 20 dias ou equivalente
é prevista pela lei como impossibilitando ainda a promoção ao posto de cabo por diuturnidade.
[...]
8. Quer isto dizer que uma ou mais punições disciplinar que somem pena superior a 20 dias de suspensão ou equivalente acarretam de forma automática e como efeito necessário a impossibilidade de promoção por diuturnidade ao posto de cabo.
9. Estamos, sem margem de dúvida, perante um efeito automático da punição.
10. Na verdade, ao se dispor na lei que o soldado que tiver sido punido com pena superior a 20 dias de suspensão ou equivalente, deixa de reunir as condições especiais de promoção ao posto de cabo, facilmente se conclui que não estamos na presença de uma valoração autónoma, assente num comportamento anterior, mas de uma decorrência automática, por isso, «ope legis», da pena anteriormente aplicada.
11. Essa valoração só seria minimamente possível caso o aplicador de uma medida estivesse a valorar a pena entre valores imediatamente abaixo ou acima desse limite ou, como será mais frequente talvez, no aplicador da última medida disciplinar que perfaça os vinte dias previstos na norma ora impugnada.
12. Neste último caso, poderão ter sido aplicadas medidas inferiores a vinte dias, perfazendo todas, por hipótese, dezasseis dias de suspensão.
13. Ocorrendo nova infracção, para a qual seja abstractamente adequada a pena de suspensão, fica o decisor sujeito, independentemente da valoração que faça do caso concreto, a ver ser aplicada a pena acessória de impossibilidade de promoção por diuturnidade automaticamente em consequência do porventura mínimo de 5 dias de suspensão que se decida aplicar.
14. Esta consequência automática de uma decisão ou conjunto de decisões que não procederam à valoração expressa da sua adequação e proporcionalidade colide frontalmente com a disposição do art. 30.º n.º 4 da Constituição, segundo o qual
«nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e políticos».
[...]
19. De facto, no caso vertente, não estamos perante uma decisão administrativa de apreciação da capacidade profissional e moral do militar uma vez que a norma do art. 266.º al. c), n.º 1 do EMGNR não impõe qualquer apreciação, funcionando antes como um efeito ou consequência automática de uma pena anteriormente aplicada ou até de um conjunto de penas.
20. Não se argumente contra aquilo que acabei de afirmar com o art. 124.º do mesmo EMGNR, com efeito este preceito ao permitir a título excepcional, para efeitos de inclusão na lista de promoção, que o comandante geral, ouvido o conselho superior da guarda e mediante despacho fundamentado, dispense o militar dos quadros da guarda das condições especiais de promoção, com excepção do tempo mínimo de permanência no posto e da prestação de prova de concurso, não retira em nada a automaticidade das referidas consequências.
21. Na verdade, a única coisa que se pode afirmar é que, a título excepcional e por estrita conveniência de serviço, o comandante geral pode, através de despacho fundamentado, dispensar o militar das condições especiais de promoção e assim remover a automaticidade.
22. Acresce que nunca a decisão de inclusão ou não nas listas de promoção assenta na apreciação do mérito ou demérito do candidato, mas tão só na estrita conveniência de serviço.
23. De facto, em lado nenhum se atribuiu à entidade a quem compete a decisão da promoção qualquer tipo de valoração ou apreciação do candidato, o que só corrobora a tese da automaticidade das referidas consequências.
[...]”
4. As respostas dos órgãos legislativos
O Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro foram notificados, para os efeitos do disposto nos artigos 54º e 55º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional.
Em resposta, o Presidente da Assembleia da República limitou-se a oferecer o merecimento dos autos e a juntar os Diários da Assembleia da República contendo os trabalhos preparatórios da lei que aprovou o Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana.
Por sua vez, o Primeiro Ministro pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade das normas, alegando, nomeadamente, o seguinte:
“8. [...] é também jurisprudência constante desse Venerando Tribunal que o conceito jurídico-constitucional de perda de direitos profissionais abrange unicamente a hipótese de demissão como efeito necessário e automático de uma pena em que o arguido tenha sido condenado, e não a simples não promoção ao posto de cabo por diuturnidade em virtude do não preenchimento das “condições especiais” discriminadas no art. 266º, al. c)-1 do EMGNR (cfr Ac TC nºs 127/84,
310/85, 286/86, entre outros).
[...]
18. Assim sendo, a norma cuja constitucionalidade se impugna justifica-se inteiramente. À beira da passagem à situação de reforma por limite de idade ou por incapacidade por motivo de doença ou acidente resultante de serviço, não parece credível que um militar punido na Guarda com o somatório de penas superiores a 20 dias de suspensão ou equivalente possa gozar desse regime especial, salvo “dispensa das condições especiais de promoção”, prevista no art.
124º do EMGNR. O contrário seria colocá-lo em plano de igualdade com um outro militar que tivesse tido um comportamento disciplinar e cívico irrepreensíveis. Aí sim, estaríamos a violar os princípios jurídico-constitucionais básicos de justiça,
ínsito na cláusula do Estado de Direito democrático do art. 2º da Constituição, e de igualdade material, previsto no art. 13º da Lei Fundamental.[...]”
para, a final, concluir a sua alegação da seguinte forma:
“A) Não há inconstitucionalidade da norma contida no art.º 266°, al. c)-1 do estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana (EMGNR) conjugado com o disposto no art.º 4°, nº1, al. c) da Lei n° 145/99, que aprovou o Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana. A não promoção ao posto de cabo por diuturnidade em virtude do não preenchimento das 'condições especiais' de promoção e, designadamente, por ter sido punido na Guarda com o somatório de penas superiores a 20 dias de suspensão ou equivalente, não integra no seu conteúdo material o conceito jurídico-constitucional de perda de direitos profissionais. Não se trata nem de uma pena acessória de demissão (essa sim integrante do
'conceito jurídico-constitucional de perda de direitos profissionais'), nem tão pouco de uma consequência necessária ou automática da mesma. O candidato à promoção não se vê privado, automaticamente, em consequência de uma pena de suspensão anterior (ou somatório de penas) superior a 20 dias ou equivalente, do seu emprego ou título profissional, ou mesmo de uma pensão a que tenha direito. Não perde posto nem o direito a continências, honras e medalhas militares ou de haver recompensas e pensões. Para todos os efeitos, e no âmbito do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, continua a ser um 'soldado da lei', 'que se obriga em todas as circunstâncias a um bom comportamento cívico e a proceder com justiça, lealdade, integridade, honestidade e competência profissional, por forma a suscitar a confiança e o respeito da população e a contribuir para o prestígio da Guarda e das instituições democráticas' (cfr., art.º 2°, n.º 2 do EMGNR). B) O militar em serviço efectivo na Guarda Nacional Republicana, oficial, sargento ou praça, é titular de uma profissão dotada e regida por um estatuto público. Esse estatuto público possui, além do mais, fundamento constitucional
(cfr., art.º 275° da CRP). A norma cuja constitucionalidade se impugna deve assim ser integrada no respectivo 'código legislativo': o Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana acompanhado do Regulamento de Disciplina desse corpo especial do Estado. Esse estatuto especial, definido por um específico 'código legislativo' (que integra a Constituição da República) constitui em si mesmo um bem ou interesse constitucionalmente protegido. Consequentemente, o direito disciplinar público dos militares possui fundamento constitucional. Mais ainda: como parte integrante de um estatuto público especial constitui em si mesmo um bem ou interesse constitucionalmente protegido. C) A norma cuja constitucionalidade se impugna nos autos não viola, por outro lado, outras disposições constitucionais, e designadamente o princípio jurídico-constitucional da proibição da dupla incriminação, extensível ao ilícito disciplinar, previsto no nº5 do art.º 29° da Lei Fundamental. Ora, sendo assim, esse regime mostra-se harmonizável não apenas com o disposto no n.º4 do art.º 30° da Constituição, segundo o qual nenhuma pena pode ter por efeito automático a perda de direitos profissionais, como inclusive mostra-se mesmo conforme ao estatuto constitucional das Forças Armadas. O direito disciplinar público dos militares segue os princípios gerais do direito disciplinar público estabelecidos constitucionalmente. Não se baseia em nenhuma tradição pré-constitucional. D) A não promoção ao posto de cabo por diuturnidade, nos termos em que vem prevista no art.º 266°, al. c )-1 do diploma identificado nos autos, ostenta por fundamento jurídico a necessidade de incutir disciplina e espírito cívico a um corpo especial do Estado absolutamente imprescindível à conservação e manutenção de uma instituição - a Guarda Nacional Republicana - a quem incumbe especiais funções de polícia e segurança públicas. A defesa das instituições da República e da legalidade democrática, tratando-se do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, obriga em todas as circunstâncias a um 'bom comportamento cívico', 'disciplina' e a 'proceder com justiça, lealdade, integridade, honestidade e competência profissional'. Não há aqui lugar a nenhuma restrição de direitos profissionais ou outros, mas pura e simplesmente a sujeição a um estatuto especial constitucionalmente determinado. Não há aqui, de igual modo, estigmatização do militar candidato à promoção ao posto de cabo por diuturnidade, que pode ser promovido desde que preencha as restantes 'condições especiais' previstas na al. c) do art.º 266° do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, mas unicamente a aplicação de um estatuto especial, constitucional, necessário e adequado, que requer, além do mais, disciplina e espírito cívico acrescidos. Perante este quadro, a norma cuja constitucionalidade se impugna integra-se num regime especial - e de certa forma excepcional. A promoção ao posto de cabo por diuturnidade visa “premiar' o soldado da Guarda que tenha 'prestado, no mínimo,
28 anos de serviço efectivo', '[e]star a menos de 30 dias de passagem à situação de reserva, por limite de idade, ter sido julgado incapaz pela Junta Superior de Saúde, por motivo de doença ou acidente resultante de serviço, após ter prestado
15 anos de serviço efectivo, ter falecido por motivo de doença ou acidente resultante de serviço' (cfr. art.º 266°, al. c) - 2 e 3 do EMGNR). Esta situação vem prevista para todas aquelas hipóteses em que o soldado da Guarda não haja sido promovido ao posto de cabo ou por não reunir as 'condições de admissão ao curso de promoção a cabo', previstas no art.º 279° do EMGNR, ou tendo satisfeito algumas dessas condições as não tenha preenchido na sua integralidade, por exemplo, porque tem mais de 34 anos de idade em 31 de Dezembro do ano de ingresso no curso ou não ter sido aprovado nas provas de admissão. E) O militar aspirante a cabo que se sinta defraudado nos seus direitos e expectativas poderá sempre recorrer à via judicial. O acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos assiste-lhe integralmente. Também neste ponto a norma cuja constitucionalidade se impugna não pode ser arguida de inconstitucional.[...]”
5. Memorando e Debate
Elaborado pelo Presidente do Tribunal o memorando previsto no artigo 63º da Lei do Tribunal Constitucional e entregue a todos os juízes, foi o mesmo submetido a debate, sendo fixada a orientação do Tribunal. Cumpre, assim, dar corpo à decisão, de harmonia com o que então se estabeleceu.
II. FUNDAMENTAÇÃO
6. A alegada inconstitucionalidade da alínea c)-1 do artigo 266º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana.
A questão relevante para efeitos de apreciação de constitucionalidade consiste em determinar se a norma constante da alínea c)-1 do artigo 266º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, conjugada com o disposto na alínea c) do artigo 4º da Lei n.º 145/99, viola o disposto no artigo 30º, n.º 4, da Constituição.
6.1. Importa começar por salientar que a alínea c)-1 do artigo 266º está integrada no Capítulo III – Promoções e Graduações – do Título IV – Praças - do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana. Nesse capítulo, após se estabelecer que as modalidades de promoção ao posto de cabo são “por habilitação com curso adequado, por excepção e por diuturnidade”, fixam-se, no artigo 266º, as condições especiais da promoção ao posto de cabo. Constata-se, então, que qualquer praça que tenha prestado um determinado tempo de serviço e esteja a menos de 30 dias de passar à reserva, por limite de idade ou por incapacidade resultante de doença ou de acidente de serviço (ou que tenha entretanto falecido também por motivo de doença ou de acidente resultante do serviço) é promovido a cabo, desde que não tenha sido “punido na Guarda com o somatório de penas superiores a 20 dias de detenção ou equivalente”. Por seu turno, a alínea c) do artigo 4º da Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro, veio estabelecer, “para todos os efeitos legais e regulamentares, designadamente para efeitos de classificação de comportamento, a correspondência entre as penas previstas no Regulamento de Disciplina Militar e no presente Regulamento de Disciplina”, determinando que
“um dia de faxinas, detenção ou proibição de saída correspondem a um dia de suspensão”. O mesmo diploma procedeu, por sua vez, à extinção da pena de detenção, dado que no elenco das penas disciplinares, constante do seu artigo
27º, se não inclui a detenção.
Da leitura conjugada dos dois diplomas, e em especial dos artigos mencionados, resulta que, actualmente, é condição especial para promoção ao posto de cabo, por diuturnidade, não ter sido punido na Guarda com o somatório de penas superiores a 20 dias de suspensão ou equivalente. Deste modo, qualquer praça da Guarda Nacional Republicana, que possua o tempo de serviço necessário e se encontre na situação atrás referida (passagem à reserva, reforma ou falecimento por acidente ou doença em serviço), vê precludida a sua promoção ao posto de cabo, por diuturnidade, em razão da condenação no somatório de penas superiores a 20 dias de suspensão ou equivalente.
Estabelecendo o artigo 30º, n.º 4, da Constituição que “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e políticos”, importa, então, decidir se, sendo aplicável esta norma, o disposto na alínea c)-1 do artigo 266º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana importa uma perda de direitos, que possa ser considerada um efeito necessário das penas, e, consequentemente, se esta norma pode ser entendida como violadora da Constituição.
Vejamos.
6.2. Introduzido na revisão constitucional de 1982, o n.º 4 do artigo 30º da Constituição visa impedir que da aplicação de uma pena resulte automaticamente, de forma meramente mecânica, uma outra pena, sem que, para tal, haja uma ponderada intervenção judicial. Pretende-se, deste modo, obstar a que à pena a aplicar pelos tribunais acresça, ope legis, uma nova pena, acolhendo-se o entendimento de política criminal constante do Código Penal, também de 1982
(artigo 65º), que impõe que se retire às penas o seu efeito estigmatizante, para isso determinando que “nenhuma pena envolve, como efeito necessário, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos”. Isso mesmo resulta do debate parlamentar em torno da introdução desta norma (cfr., Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 11 de Junho 1982, pág. 4176 e segs.), nomeadamente da intervenção do Deputado Nunes de Almeida, que, na ocasião, afirmou: “a aprovação do n.º 4 vem obviar (a) algumas disposições ainda hoje vigentes na nossa lei penal, de extraordinária violência, como eram as que envolviam, como efeito necessário de certas penas, a perca de alguns direitos. Designadamente, lembro o caso de certas infracções criminais cometidas por funcionários públicos [...] que envolviam necessariamente e como efeito acessório a demissão.”
O Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se pronunciar, em várias ocasiões, sobre o artigo 30º da Constituição, que se refere, genericamente, aos limites das penas e das medidas de segurança. Fê-lo, em relação ao respectivo n.º 4, entre outros, nos Acórdãos n.ºs 16/84 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2.º Vol., pág. 367), 284/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. 13.º, Tomo II, 1989, pág. 859 e segs.), 748/93, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. 26.º, 1993, pág. 31 e segs.) e, mais recentemente, 202/00 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. 47.º, 2000, pág.
85 e segs.). Assim, no citado Acórdão n.º 16/84 afirmou-se:
“[...] No fundo, o n.º 4 do artigo 30º da Constituição deriva, em linha recta, dos primordiais princípios definidores da actuação do Estado de Direito democrático que estruturam a nossa Lei Fundamental, ou sejam: os princípios do respeito pela dignidade humana (artigo 1º); e os de respeito e garantia dos direitos fundamentais (artigo 2º). [...] Daí decorrem os grandes princípios constitucionais de política criminal: o princípio da culpa; o princípio da necessidade da pena ou das medidas de segurança; o princípio da legalidade e o da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal; o princípio da humanidade; e o princípio da igualdade. [...] Ora, se da aplicação da pena resultasse, como efeito necessário, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, far-se-ia tábua rasa daqueles princípios. [...]”
Na mesma linha, no Acórdão n.º 284/89, também já citado, este Tribunal entendeu que o n.º 4 do artigo 30º da Constituição, proibia
“que, em resultado de quaisquer condenações penais, se produzissem automaticamente, pura e simplesmente ope legis, efeitos que envolvessem a perda de direitos civis, profissionais e políticos e pretendeu-se que assim fosse porque, em qualquer caso, essa produção de efeitos, meramente mecanicista, não atenderia afinal aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, princípios esses de todo inafastáveis de uma lei fundamental como a Constituição da República Portuguesa que tem por referente imediato a dignidade da pessoa humana”.
Naqueles acórdãos, o Tribunal Constitucional apreciou, sobretudo, normas em que estava em causa o eventual efeito automático de uma pena ou de uma condenação pela prática de certos crimes, isto é tratou primacialmente da questão no âmbito dos efeitos do ilícito penal. No entanto, as normas em apreço no presente processo referem-se a consequências da aplicação de sanções de tipo disciplinar e não a sanções penais. Poderia, por isso questionar-se a aplicação do disposto no artigo 30º, n.º 4, da Constituição a este tipo de ilícito. A jurisprudência deste Tribunal tem, contudo, vindo também a aceitar a aplicabilidade do disposto no artigo 30º, n.º 4, da Lei Fundamental no âmbito do ilícito administrativo, designadamente em casos em que estavam em causa efeitos de ilícitos disciplinares.
Assim, no Acórdão n.º 282/86 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. 8.º,
1986, pág. 207 e segs.) o Tribunal declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes dos §§ únicos dos artigos 160º e
130º do Código da Contribuição Industrial que estabeleciam, como efeito automático da aplicação de certas sanções disciplinares, o cancelamento da inscrição dos técnicos de contas, o que os impedia de desenvolverem a sua actividade profissional, prescrevendo a perda de um direito profissional. Aí se afirmou, nomeadamente, que “o facto de não se tratar aqui do terreno criminal não impede a aplicação do princípio constitucional do artigo 30º, n.º 4.”
Por sua vez, no Acórdão n.º 522/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol.
32.º, 1995, pág. 345 e segs.), em que estava em causa a prestação, pela Direcção-Geral dos Registos e do Notariado, de informações sobre o cadastro disciplinar de concorrentes, o Tribunal, apesar de não ter julgado inconstitucional a norma questionada, não o fez por entender que aí estavam em causa sanções disciplinares, mas sim por considerar que havia lugar a uma adequada ponderação dessas informações, no momento da decisão.
Por outro lado, a autonomia do ilícito disciplinar não é suficiente para fundamentar o afastamento, em relação a ele, do disposto no n.º 4 do artigo 30º da Constituição, pelo que, por identidade de razão, se justifica a sua aplicação. Nestes termos, deve considerar-se que o disposto no n.º 4 do artigo
30º da Constituição proíbe igualmente a atribuição às sanções disciplinares de efeitos automáticos que consistam na perda de direitos civis, profissionais ou políticos.
6.3. Admitida a aplicabilidade do n.º 4 do artigo 30º da Constituição no âmbito do ilícito administrativo, designadamente em casos em que estão em causa efeitos de ilícitos disciplinares, cumpre decidir se o disposto na referida alínea c)-1 do artigo 266º importa uma perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.
Ora, o Primeiro-Ministro invoca, na sua resposta, no que se refere ao conteúdo do conceito de perda de direitos profissionais, que este Tribunal, até ao momento, em jurisprudência constante, apenas tem considerado a demissão como abrangida no conceito de perda de direitos profissionais como efeito necessário e automático de uma pena anterior.
Na verdade, em várias ocasiões o Tribunal Constitucional entendeu que a demissão integrava esse conceito. Assim aconteceu, por exemplo, nos Acórdãos n.º 16/84, já citado, 127/84 (Diário da República, II série, de 12 de Março de 1985), e, ainda, no Acórdão n.º 165/86 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. 7.º, Tomo I, 1986, pág. 231 e segs.).
Não foi, todavia, a demissão a única figura a preencher, até ao momento, o conceito de perda de direitos profissionais, na nossa jurisprudência constitucional. Com efeito, o Acórdão n.º 255/87 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. 9.º, 1987, pág. 805 e segs.) veio julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 37º do Código de Justiça Militar, que estatuía que a condenação pelos crimes mencionados no n.º 1 do mesmo artigo acarretava a baixa de posto. E, na verdade, não se descortina por que razão este Tribunal haveria de considerar que apenas a demissão poderia ou deveria enquadrar-se no conceito de perda de direitos profissionais.
Assim, no caso vertente, porque da norma em apreciação resulta, não uma demissão ou uma baixa de posto automáticas, mas um entrave à progressão na carreira – isto é, um impedimento da promoção, por diuturnidade, à categoria superior -, o que importa dilucidar é se esse impedimento se deve ter, igualmente, como perda de um direito profissional.
Como se afirmou no Acórdão n.º 355/99 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol.
44.º, 1999, pág. 229 e segs.), “a permanência num posto de trabalho proporciona a especialização e o aperfeiçoamento do trabalhador, e contribui para a sua inserção no ambiente laboral. Esta estabilidade deve ser premiada, através da criação de um sistema de progressão na carreira, o qual é uma componente essencial da dignificação do trabalho. As promoções podem operar a dois títulos: um primeiro, objectivo, que traduz, pura e simplesmente, a permanência e estabilidade do trabalhador no seu posto, permitindo a manutenção de um padrão de prestação de serviço homogéneo – promoção por antiguidade; um segundo, subjectivo, que constitui um mais relativamente ao primeiro, na medida em que se apresenta como um incentivo, não à mera prestação de trabalho, mas à prestação de trabalho de qualidade – promoção por mérito.” Daí que se possa entender que um direito à promoção na carreira integra o núcleo do direito de acesso à função pública.
Não quer isto dizer que exista sempre um direito à progressão na carreira – ele não existirá, desde logo, a partir do momento em que o funcionário tenha atingido uma certa categoria ou tenha esgotado a progressão na carreira, bem como naqueles casos, embora excepcionais, em que uma certa categoria funcional se não enquadra numa carreira. De todo o modo, o que parece indiscutível é que, aí onde esteja previsto um direito à promoção - progressão na carreira - ele se há-de configurar como um direito profissional.
Ora, no caso dos autos, estamos perante uma promoção, por diuturnidade, que, consistindo no acesso ao posto imediato, independentemente da existência de vaga e desde que satisfeitas as condições de promoção, não só se pode considerar estruturada como um direito, com consequências directas e imediatas nas pensões de reforma (ou de sobrevivência), mas também, e sobretudo, que não pode configurar-se como um eventual prémio ou recompensa. De facto, as recompensas, no âmbito da Guarda Nacional Republicana, vêm tratadas nos artigos 22º e seguintes da Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro (que aprova o Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana). Aí se estabelecem como recompensas que podem ser concedidas aos militares da Guarda a referência elogiosa, o louvor, a licença por mérito e a promoção por distinção, sem que qualquer menção se faça à promoção por diuturnidade.
Assim sendo, a promoção, por diuturnidade, prevista na alínea c) do artigo 266º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana não pode deixar de configurar-se como um direito profissional.
6.4. A norma em apreço confere, assim, a certas sanções disciplinares uma consequência que se traduz na perda de um direito profissional. Resta, porém, saber se tal consequência deve ser tida como um efeito automático interdito pelo artigo 30º, n.º 4, da Constituição.
A jurisprudência deste Tribunal tem vindo a eleger como critério que permite afastar a automaticidade dos efeitos das penas, proibida pela Constituição, a existência de juízos de valoração ou ponderação.
Isso mesmo se demonstra com a decisão do Tribunal no Acórdão n.º 422/01
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. 51.º, 2001, págs. 225 e segs.) de não julgar inconstitucional a norma do artigo 21º, n.º 5, da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, que determina a caducidade da carta de caçador quando ocorra a condenação por crime de caça. Neste aresto, o Tribunal considerou que o que estava em causa era uma alteração das circunstâncias em que fora decidida a concessão da licença, o que determinaria a reapreciação da situação do agente enquanto titular da carta de caçador, constituindo a condenação uma condição resolutiva da validade da carta, podendo, todavia, ser requerida a obtenção de nova carta. A condenação por crime de caça condicionaria, aqui, negativamente a validade da carta de caçador, porquanto “a prática de um crime de caça [...] ilide, por si só, a presunção de que se mantêm as condições de passagem da carta, ou seja de que o agente detém os conhecimentos, a aptidão e a adequação comportamental necessárias ao exercício da caça”.
O mesmo se diga do Acórdão n.º 363/91 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol.
19.º, 1991, pág. 79 e segs.), em que o Tribunal considerou que a cessação do estatuto de objector de consciência não era encarada pelo Decreto n.º 335/V da Assembleia da República como consequência ou efeito automático de uma condenação pela prática de certo crime, uma vez que pressupunha uma comprovação administrativa, individualizada, de certos comportamentos que importaria valorar. O Tribunal decidiu, por isso, que não saía violado o artigo 30º, n.º 4, da Constituição, visto que a condenação constituiria a demonstração ou comprovação da falta de um pressuposto essencial ao estatuto obtido pelo condenado que afectaria a conservação do mesmo estatuto.
Quando, pelo Acórdão n.º 461/00 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. 48º,
2000, pág. 327 e segs.), este Tribunal não julgou inconstitucionais as normas dos artigos 122º, n.ºs 4 e 5, e 130º, n.º 1, al. a), do Código da Estrada, que prevêem a caducidade da carta ou licença de condução provisórias no caso de condenação na pena de proibição de conduzir ou na sanção de inibição de conduzir, decidiu-o por entender que estas não consubstanciam um efeito automático das penas, uma vez que se considerou que “a lei apenas prevê que requisito da obtenção de licença definitiva seja a não instauração de procedimento por infracção de trânsito, tratando-se, portanto, de um verdadeiro requisito negativo da extinção do carácter provisório da licença” e que “ao determinar a caducidade da licença provisória, no caso da condenação em proibição de conduzir ou de inibição de conduzir, a lei apenas consagra um requisito negativo da obtenção da carta”, verificando-se, por isso, “apenas a valoração de uma pena relacionada com a condução automóvel nas condições de obtenção da licença de condução”. Mas a ideia de necessidade de ponderação surge também no mesmo aresto, quando se refere, nos seguintes termos, à proibição de penas automáticas:
“[..] a sua justificação é simultaneamente a de obviar a um efeito estigmatizante das sanções penais e a de impedir a violação dos princípios da culpa e da proporcionalidade das penas, que impõem uma ponderação, em concreto, da adequação da gravidade do ilícito à da culpa, afastando-se a possibilidade de penas fixas ou ex lege.
Também no Acórdão n.º 522/95, já citado, apesar de não se ter julgado inconstitucional a norma do artigo 65º, n.º 3, do Regulamento dos Serviços do Registo e do Notariado, no segmento que se reporta à prestação de informações sobre o cadastro disciplinar dos concorrentes no âmbito de concurso documental para os lugares de conservador e notário, também se fez uma importante referência à necessidade de ponderação como forma de evitar um efeito automático das penas. Com efeito, o Tribunal entendeu que esta situação não era susceptível de ser subsumida na regra constitucional relativa aos limites das penas e das medidas de segurança, nomeadamente aos efeitos necessários delas decorrentes, afirmando-se expressamente:
“[A norma] apenas prescreve que a Direcção-Geral há-de submeter a despacho ministerial a relação dos requerentes acompanhada de «informações sobre a classificação, antiguidade e cadastros disciplinar dos concorrentes» e não dispõe já sobre uma qualquer consequência automática (ope legis) a extrair, independentemente de decisão judicial, de penas disciplinares que porventura tenham sido aplicadas aos interessados, caso em que, por certo, afrontaria a regra constitucional.”
Da norma ora em apreço resulta de forma clara que esta ponderação não existe.
De acordo com disposto na alínea c)-1 do artigo 266º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, conjugado com a alínea c) do artigo 4º da Lei n.º 145/99, desde que a soma das sanções aplicadas ultrapasse os 20 dias de suspensão ou equivalente, o sancionado vê, ope legis, ser-lhe negada a possibilidade de promoção por diuturnidade ao posto de cabo, sem que tal resulte de qualquer juízo do aplicador de qualquer uma das sanções que contribuem para o cúmulo dos 20 dias de suspensão ou de um juízo posterior. De facto, por um lado, a promoção por diuturnidade ao posto de cabo, em si mesma, não pressupõe, nem implica, uma qualquer valoração; por outro lado, essa promoção é vedada na sequência da mera aplicação de sanções disciplinares, sem que os aplicadores dessas sanções, ao decidirem-se pela penalidade em concreto, possam ou devam antever e valorar a consequência que delas poderá vir a resultar; finalmente, a possibilidade prevista no artigo 124º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, invocado pelo Primeiro-Ministro na sua resposta, deve ser tida como irrelevante para a solução da questão que nos ocupa. Na verdade, embora este artigo preveja uma dispensa das condições especiais de promoção, a decidir, a título excepcional, pelo Comandante-Geral, esta dispensa, contudo, não tem lugar na sequência de uma qualquer apreciação do mérito ou demérito do soldado, apenas se podendo fundamentar, nos termos da lei, na estrita conveniência de serviço.
Resulta, pois, da previsão do artigo 266º, alínea c)-1, do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, um efeito que decorre, de forma automática, da aplicação do somatório de sanções que atinjam os 20 dias de suspensão ou equivalente, que impedirá, sem considerar os princípios da culpa e da proporcionalidade, que todos aqueles a quem seja aplicado esse somatório de sanções fiquem impossibilitados de promoção ao posto de cabo, por diuturnidade, sem que essa sanção resulte de uma ponderação autónoma.
Mais: mesmo que o aplicador da última sanção que determinará o cúmulo de dias de suspensão superior a 20 esteja consciente desta consequência da aplicação da sanção, ela impor-se-á, ope legis, sem que este possa, ao aplicar a sanção de suspensão, fugir a essa consequência, mediante uma qualquer ponderação. Note-se ainda que, ao contrário de outros efeitos da aplicação da pena de suspensão – como a impossibilidade de se ser promovido durante o período de execução de pena
– este efeito não faz parte do tipo da sanção disciplinar.
Na situação em apreço, impede-se, portanto, a promoção ao posto de cabo, por diuturnidade, como consequência mecânica ou automática da aplicação de uma ou mais sanções disciplinares de suspensão cujo somatório ultrapasse os 20 dias, sem que quaisquer circunstâncias atendíveis e justificativas possam ser valoradas no momento em que ocorreria a promoção. O efeito penalizador do direito profissional impõe-se inelutavelmente, por força da lei.
E não se sustente, em sentido contrário, que a imposição desta consequência somente constituiria a definição de um requisito negativo de acesso à promoção por diuturnidade ao posto de cabo.
É evidente que uma norma pode definir os requisitos necessários à progressão na carreira ou na categoria sem que isso constitua uma restrição a esses direitos. Isso mesmo se decidiu, relativamente à progressão na categoria, no Acórdão n.º
1186/96 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. 35.º, 1996, pág. 489 e segs.), onde se entendeu que o reconhecimento de um direito constitucional à promoção na carreira não pode significar uma proibição de estabelecimento de regras, por parte do legislador, que definam as condições de promoção. Mas para que se possa estabelecer como condição de promoção a não punição com determinadas penas criminais ou disciplinares, torna-se necessário uma valoração no momento da aplicação da pena ou posteriormente, de forma a ponderar-se este outro seu resultado – isto é, a impossibilidade de promoção. Esse é exactamente o sentido específico da norma constitucional.
Ora, não se vê, no caso em análise, como possa considerar-se existir a valoração de uma pena (no caso, da aplicação de sanções disciplinares cujo somatório ultrapasse os 20 dias de suspensão ou equivalente) como condição determinante do acesso à promoção ao posto de cabo, por diuturnidade. A existência de tais condenações é, de acordo com o preceito em análise, determinante, mas o seu efeito – a não promoção - não é resultado de qualquer valoração específica dessas penas disciplinares, antes funcionando de forma automática. Ora, o legislador não pode determinar que a restrição do direito à promoção resulte, sem mais, ope legis, como mero efeito automático de uma ou mais sanções aplicadas, sem que exista qualquer valoração – designadamente em termos de culpa e de proporcionalidade. E é isso, precisamente, o que acontece no caso em apreço.
Por último apenas se dirá, refutando argumentos também utilizados na conclusão da resposta do Primeiro-Ministro, que nada na Constituição da República Portuguesa implica ou autoriza que normas de um eventual estatuto público da Guarda Nacional Republicana, ainda que com fundamento constitucional, violem o disposto no artigo 30º, n.º4, da mesma Constituição, nem se vislumbra qualquer razão para que o pudessem eventualmente fazer. Tal como se não vê qual a relevância que possa ter, para efeitos de apreciação da inconstitucionalidade da norma constante da alínea c)-1 do artigo 266º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana face ao artigo 30º, n.º 4, da Constituição, o facto de aquela norma porventura não violar outras disposições constitucionais, designadamente o princípio jurídico-constitucional da proibição da dupla incriminação, ou de estar garantido ao militar não promovido o acesso ao direito e aos tribunais.
Em face de todo o exposto, conclui-se, então, que a norma impugnada deve considerar-se inconstitucional, por violação do disposto no n.º 4 do artigo 30º da Constituição.
III – decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante da alínea c)-1 do artigo 266º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho, conjugada com a norma constante do artigo 4º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro, que aprova o Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana, por violação do disposto no n.º 4 do artigo 30º da Constituição da República Portuguesa.
Lisboa, 18 de Novembro de 2003 Gil Galvão Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício Paulo Mota Pinto Bravo Serra Carlos Pamplona de Oliveira (vencido, conforme a declaração em anexo) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração junta) Luís Nunes de Almeida
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei contra a decisão por entender que as normas em causa não ofendem o princípio constante do artigo 30º n. 4 da Constituição. O alcance daquelas normas não representa um efeito automático de sanção disciplinar, eventualmente proibido pelo citado preceito da Constituição. O que se passa é que o cometimento da infracção, ainda que disciplinar, tem naturalmente outros efeitos de natureza não penal, não previstos nem proibidos na aludida norma, pelo que a questão se reconduz a saber se a solução legal ofende, ou não ofende, o princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18º n. 2 da Constituição; e
é minha convicção que, neste caso, se não verifica a violação do referido princípio.
Não subscrevo, por estas razões, a declaração de inconstitucionalidade formulada no acórdão.
Carlos Pamplona de Oliveira
Declaração de voto
1. Votei vencida, em síntese, porque não creio que a norma em apreciação deva ser analisada no âmbito da perda de direitos profissionais, em geral, e, em particular, da promoção na carreira. Com efeito, está apenas em causa a promoção – para a qual são “apreciados (...) todos os soldados do activo que transitem para a situação de reserva ou de reforma, ou que tenham falecido” (n.º 5 do artigo 268º do Estatuto) – por diuturnidade, ou seja, a promoção a cabo de soldados que estejam “a 30 dias de passagem à situação de reserva por limite de idade”, que tenham sido julgados incapazes por motivos de saúde ou acidente de serviço, em certas condições, ou tenham “falecido por motivo de doença ou acidente resultante de serviço” (n.º 3 da al. c) do artigo 266º do Estatuto). Trata-se, assim, a meu ver, de uma promoção destinada apenas a permitir uma melhoria de remuneração ou de pensão, e que, no fundo, equivale como que a um prémio por “bom comportamento” na altura da passagem à reserva ou à reforma, ou da atribuição de pensão por morte. Isso implica que a norma que constitui o objecto do presente processo deva ser tratada como estabelecendo uma condição para a atribuição de tal prémio e não como definindo um efeito automático de uma sanção disciplinar.
2. Ainda que assim não fosse, penso que o regime definido pelo artigo 124º, devidamente adaptado à hipótese da promoção por diuturnidade, permitiria ponderar, caso a caso, a eventual dispensa do requisito em causa, à luz dos princípios da proporcionalidade e da culpa.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza