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Processo nº 191/03
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - Nos presentes autos de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, instaurados ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, em que é recorrente A., sendo recorrido B., foi proferida, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A daquele diploma legal, decisão sumária, do seguinte teor:
“1. - A., notificada do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Janeiro
último, lavrado em autos de embargo de executado que lhe moveu B. e que correm por apenso à execução, com processo ordinário, por quantia certa, em que são, respectivamente, exequente e executado – autos pendentes no 5º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Oeiras –, acórdão esse que negou provimento à arguição de nulidade de anterior aresto do mesmo Tribunal, de 7 de Novembro de 2002, veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Segundo defende, ao negar provimento ao agravo por si interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14 de Fevereiro de 2002, o Supremo Tribunal de Justiça recusou a aplicação dos artigos 729º, nº 2, 722º, nº 2, e 94º, nº 3, do Código de Processo Civil, “com fundamento em inconstitucionalidade”.
2. - O recurso foi admitido pelo Conselheiro relator, “embora com dúvidas”, o que, no entanto, não vincula o Tribunal Constitucional – nº 3 do artigo 76º da citada Lei nº 28/82. Entende-se, com efeito, que, quer o acórdão de 7 de Novembro (quer o de 29 de Janeiro, pois, na verdade, não é totalmente unívoca a identificação da decisão recorrida) não recusaram a aplicação do complexo normativo invocado pela recorrente com fundamento em vício de inconstitucionalidade. Na verdade, só no requerimento de arguição de nulidades do primeiro desses arestos é que a recorrente veio equacionar uma tal problemática, o que faz ao longo do respectivo articulado: a) – quer por entender ter-se limitado excessivamente o direito de recurso, “ao restringir-se o direito fundamental de recorrer da sentença judicial, na vertente do direito de acesso aos tribunais”, argumentando, a dado passo:
“47º A interpretação conjugada dos artigos 20º e 18º, nº 1 da Constituição, não permite sustentar o sentido que vem no Acórdão ora impugnado extraído do artigo
729º, nº 2, e do artigo 722º, nº 2, ambos do CPC, que pretende qualificar as conclusões que não se circunscrevem à reconstituição histórica do mundo do ser, segundo as regras da experiência comum e a lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, como “factos”.
48º Pelo que o Supremo Tribunal de Justiça produz uma interpretação inconstitucional, por operar uma restrição intolerável do direito de recurso, das normas contidas nos artigos 729º, nº 2 e 722º, nº 2, do CPC.;
b) – quer por se considerar que “a interpretação que é feita pelo Tribunal da norma contida no artigo 94º, nº 3 do CPC, conduz a resultados manifestamente inconstitucionais, considerando a tutela constitucional do direito de propriedade e o regime específico dos direitos, liberdades e garantias de natureza análoga de que beneficia”.
3.1. - A ora recorrente agravou para o Supremo do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que considerou os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para a execução com processo ordinário, para pagamento de quantia certa, em que é exequente com o fundamento de se ter estipulado, no concreto caso, a competência exclusiva de jurisdição aos tribunais da República Democrática do Congo. O Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 7 de Novembro de 2002, decidiu que o pacto de atribuição de jurisdição aos tribunais desse país é de
“jurisdição exclusiva, o que significa que, simultaneamente com a fixação (d)e uma jurisdição, (se) afasta qualquer outra competência internacional para se pronunciar sobre as acções executivas contra o ora Agravado [B.] derivados dos contratos que vêm invocados nos presentes autos e, portanto, também a do Tribunal da comarca de Oeiras, em princípio, apontada pelo mencionado artigo
94º, nº 3, do Cód. Proc. Civil”. Este desiderato partiu do princípio de que, enquanto Tribunal de revista, ao Supremo cumpre aceitar a matéria de facto fixada nas instâncias, não lhe cabendo sindicar essa matéria no tocante ao decidido no Tribunal da Relação, de acordo com o disposto nos artigos 729º, nº 2, e 722º, nº 2, daquele Código. E acrescentou-se, então:
“No douto acórdão do Tribunal da Relação, ora em recurso, entendeu-se que a matéria de facto comprovada era a que nele se descreveu, atrás reproduzida, dela retirando também as enunciadas conclusões de facto e nele não se fez uso dos poderes contidos no artº 712º, nºs. 1 e 4 do mesmo diploma legal, pelo que não pode este Tribunal pronunciar-se sobre esses factos nem sobre as conclusões de facto que deles a Relação retirou, designadamente quanto ao sentido da expressão domicilia notificandi et executandi. Este sentido foi fixado «como significando o local onde o executado deve ser demandado judicial ou extra-judicialmente para dele ser exigido o cumprimento da obrigação por si assumida com a outorga do acordo»; Ou seja, significa isto que as partes, relativamente ao referido acordo, convencionaram um domicílio electivo, em termos idênticos aos que a lei portuguesa os admite no artº 84º do Cód. Civil, para efeitos de nele ser demandado o Embargante “para dele ser exigido o cumprimento da obrigação” (de fiança) que assumiu mediante aquele acordo. Mas, em princípio, domicílio electivo não se pode confundir com um pacto atributivo de jurisdição, que são coisas diversas, pois enquanto naquele se estabelece que, para determinados efeitos de um certo negócio, os seus intervenientes se consideram domiciliados no local eleito, no pacto atributivo de jurisdição se define que a jurisdição de certo país será a competente internacionalmente para dirimir os conflitos derivados de certo negócio jurídico. Porém, em face da matéria de facto vinda das instâncias, temos de concluir que, no caso sub juditio, houve escolhas de domicílios electivos e também pactos (ou, pelo menos, um pacto) atributivos de jurisdição exclusiva aos Tribunais da República Democrática do Congo para a execução contra o ora Recorrido.”
3.2. - Arguida a nulidade de omissão de pronúncia, o acórdão que sobre ela se pronunciou, de 29 de Janeiro último, ponderou:
“Analisando a douta reclamação, constata-se que a Reclamante discorda do entendimento tido no acórdão de 7 de Novembro último de que a conclusão encontrada pelo Tribunal da Relação de Lisboa sobre a estipulação de “domicilia citandi et executandi” de que houvera, além da escolha de um domicílio electivo, uma “atribuição de competência exclusiva à jurisdição da República Democrática do Congo”, era uma conclusão de facto (no sentido de saber qual a vontade real dos estipulantes), sustentando que se estava em presença de uma conclusão de direito (no sentido de saber, segundo a lei da África do Sul, qual era o conteúdo jurídico desta expressão). Trata-se, de qualquer modo, de uma discordância sobre o acerto ou desacerto da conclusão a que, sobre o sentido daquela estipulação , incluindo a qualificação da conclusão tirada pela Relação como conclusão de facto, se chegou no acórdão agora arguido de nulo. Ou seja, no acórdão agora arguido de nulo considerou-se ser tal questão matéria de facto, a Reclamante considera-a matéria de direito. Não se trata, portanto, de uma omissão de pronúncia sobre a referida questão, que, como vimos em 2.2., foi apreciada. Não ocorreu, portanto, a arguida nulidade da omissão de pronúncia.”
4. - Resulta do exposto não ter ocorrido qualquer recurso de aplicação do complexo normativo convocado – em toda a sua extensão – mas sim uma interpretação normativa com a qual a ora recorrente discorda, no sentido de que defende uma diferente qualificação e aplicação das normas em apreço. Ou seja, e por outras palavras, não se verificam os pressupostos de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade previstos na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82. Com efeito, só se abrirá esta via de recurso quando o tribunal a quo recusar a aplicação de uma norma jurídica com fundamento na sua inconstitucionalidade, não observando no caso concreto o seu conteúdo ou o regime jurídico dela constante – o que, manifestamente, não se perfila. Apenas justificaria o recurso interposto se se estivesse perante uma desaplicação, com fundamento em juízo de inconstitucionalidade, de uma (ou de todas) as normas convocadas pela recorrente. Ora, não é este o caso dos autos, quer por via explícita, quer por implícita desaplicação. Não há sequer, na verdade, uma formulação de juízo de inconstitucionalidade, configurando uma “falsa” recusa de aplicação: o entendimento concedido às normas em questão, que foram aplicadas, é que, na sua concreta precipitação, não mereceu o acolhimento da recorrente. O que vale dizer que, não tendo ocorrido recusa, não há que detectar vício dessa natureza, sem prejuízo do acerto da decisão tomada – e do eventual desrespeito à sua estrutura lógica – o que não compete ao Tribunal Constitucional, nesta sede, conhecer.
5. - Assim sendo, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 6 unidades de conta.”
2. - Notificada, veio tempestivamente a recorrente deduzir reclamação para a conferência, nos termos do nº 3 do artigo 78º-A já citado, considerando que se encontram preenchidos todos os pressupostos processuais do recurso, devendo, por conseguinte, seguir-se a ulterior tramitação do processo.
Reiterando estar em causa uma recusa implícita, com fundamento em inconstitucionalidade, da aplicação dos artigos 729º, nº 2, 722º, nº 2 e 94º, nº 3, todos do Código de Processo Civil, por referência aos artigos
20º e 18º, nº 1, da Constituição, a tutela constitucional do direito de propriedade e o regime específico dos direitos, liberdades e garantias, alega, em síntese:
a) entendeu o Supremo Tribunal de Justiça ter de aceitar a matéria de facto fixada nas instâncias, constituindo uma conclusão de facto – no sentido de saber qual a vontade real dos estipulantes – a conclusão alcançada pela Relação na estipulação da cláusula domicili citandi et executandi no sentido de atribuição de competência exclusiva à jurisdição da República Democrática do Congo;
b) ora, o apuramento do sentido da expressão contida na cláusula subentende uma actividade cogniscitiva-interpretativa portadora de um quid jurídico que se não confunde com o “facto-premissa” da base dessa cláusula;
c) entendimento diverso, como o sustentado pela decisão recorrida, mostra-se incompatível com o princípio da tutela jurisdicional efectiva e restringe intoleravelmente o direito de recurso;
d) acresce que o texto do Acordo não permite que um tribunal português o possa considerar válido, formal e substancialmente, como pacto atributivo de competência exclusiva da República Democrática do Congo;
e) de igual modo, a interpretação feita pelo tribunal recorrido da norma contida no artigo 94º, nº 3, do Código de Processo Civil,
“conduz a resultados manifestamente inconstitucionais, considerando a tutela constitucional do direito de propriedade e o regime específico dos direitos, liberdades e garantias de natureza análoga de que beneficia”.
3. - O recorrido não respondeu.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
4. - O recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade interposto com fundamento na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, tem por objecto as decisões dos tribunais que “recusam a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade”.
Assim, a via de recurso para o Tribunal Constitucional só se abre se o tribunal a quo tiver rejeitado, com base em juízo de inconstitucionalidade, a aplicação ao caso concreto do conteúdo do regime constante de uma determinada norma jurídica (cfr., inter alia, o Acórdão nº
350/92, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 23, págs. 459 e segs.).
A esta situação se equivalem, no entanto, os casos de simples recusa implícita da norma, de harmonia com o entendimento professado na jurisprudência constitucional de que é ao órgão jurisdicional competente para, por via de recurso e centralizadamente, fiscalizar em concreto a constitucionalidade das normas que cabe, em definitivo, a qualificação do vício motivador da desaplicação (assim, v.g., os Acórdãos nºs. 13/83, 27/84 e 429/89, publicados nos Acórdãos cits., vol. 1º, pág. 151, 27/84, vol. 2º, p. 445, e vol.
13º - tomo II, págs. 1237 e segs.).
De qualquer modo, mesmo que implícita, há-de retirar-se, do discurso da decisão recorrida, ao menos, a aparência de um juízo de inconstitucionalidade.
Ora, não é isso que, no caso concreta, se verifica.
O acórdão da Relação (fls. 154 e segs.) é claro, a este respeito, ao considerar ser caso de dinamizar a faculdade concedida ao nº 5 do artigo 713º do Código de Processo Civil, remetendo para a decisão recorrida, cujos fundamentos dá por inteiramente reproduzidos, sendo certo que esta, por sua vez (fls. 72 e segs.), se circunscreve às regras da competência em razão da nacionalidade, que tem por violadas, procedendo, assim, a correlativa excepção dilatória.
E tanto assim é que o acórdão do Supremo, de 7 de Novembro de 2002, orienta-se em idênticos parâmetros, que se mantêm no posterior aresto de 29 de Janeiro último, provocado pela arguição de nulidades, momento onde pela vez primeira se passou a equacionar a questão de inconstitucionalidade.
Por outras palavras, não se surpreende sequer desaplicação implícita nem tão pouco a mesma se detecta, numa perspectiva ainda mais compreensiva, “na lógica interna da decisão recorrida e no contexto que a suscita”, como se adiantou no Acórdão nº 584/96, publicado nos Acórdãos cits., vol. 33, págs. 881 e segs.
5. - Em face do exposto e nos termos do nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, decide-se indeferir a presente reclamação, confirmando-se a decisão sumária oportunamente proferida.
Custas pela reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta.
Lisboa, 6 de Junho de 2003 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida