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Processo n.º 720/03
2.ª Secção
Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. e B. vêm reclamar do despacho do Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 8 de Julho de 2003, que não admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
1.1. Dos elementos constantes dos presentes autos resulta que:
1) por acórdão do Tribunal Colectivo da Figueira da Foz, os reclamantes foram condenados, como autores materiais de um crime de roubo, previsto e punido pelos artigos 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), e 204.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, e o segundo reclamante ainda como autor material de um crime de detenção de arma proibida, na pena única de 3 anos e 2 meses de prisão, tendo sido perdoado um ano de pena de prisão a cada um deles;
2) desse acórdão interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, suscitando na respectiva motivação (cf. fls. 36 a 66 e 67 a 91), além do mais, as questões da inconstitucionalidade das normas do artigo 127.º do Código de Processo Penal (CPP), por violação do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), “se interpretado no sentido de permitir, expressa ou implicitamente, impor ao arguido o ónus de suscitar a dúvida razoável, ou mesmo, tão-só, a possibilidade de dúvida razoável, acerca da verificação dos elementos constitutivos do tipo legal de crime, da respectiva imputabilidade ao seu autor e acerca da identidade e identificação deste”, e do artigo 374.º, n.º 2, do mesmo Código, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais, previsto no artigo 205.º, n.º 1, da CRP, bem como, quando conjugada com a norma do artigo 410.º, n.º 2, alíneas b) e c), do CPP, por violação do direito ao recurso, previsto no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, “na interpretação segundo a qual a exposição da matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em primeira instância e com a adjectivação ou qualificação dos mesmos, como bons, suficientes, convincentes e outros termos utilizados em jeito de fórmulas sacramentais, não exigindo a clara explicitação do processo de formação da convicção do tribunal”;
3) do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que negou provimento ao recurso e confirmou nos seus precisos termos a decisão da 1.ª instância interpuseram os reclamantes recurso para o STJ, voltando a suscitar, na respectiva motivação (cf. fls. 92 a 104), as mencionadas questões de inconstitucionalidade;
4) no STJ, suscitada pelo Conselheiro Relator a questão da inadmissibilidade do recurso e colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, foi, por acórdão de 22 de Maio de 2003 (cf. fls. 105 a 109), decidido rejeitar o recurso, por não ser recorrível a decisão que se pretende impugnar (artigo 420.º, n.º 1, do CPP), com base em interpretação da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do mesmo Código (“Não é admissível recurso: (...) f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções;”), segundo a qual não é admissível recurso para o STJ de acórdão da Relação confirmativo de decisão condenatória da 1.ª instância, mesmo que o limite máximo da moldura penal abstracta correspondente ao crime em causa seja superior a oito anos de prisão, desde que a pena efectivamente aplicada na decisão recorrida tenha sido inferior a este limite e o recurso seja interposto somente pelo arguido (ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse do arguido, ou pelo arguido e pelo Ministério Público no exclusivo interesse daquele), pois, nestas hipóteses, o STJ não pode agravar a pena de prisão aplicada pela Relação (3 anos de prisão, pelo crime de roubo), sendo, assim, esta a pena máxima aplicável, que coincide, por força da proibição da reformatio in pejus, com a pena aplicada;
5) notificados deste acórdão, os reclamantes apresentaram, em 9 de Junho de 2003, reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (cf. fls. 2 a 5) – invocando o artigo 405.º, n.º 1, do CPP, norma que consideram aplicável, por reputarem idênticas as razões que levam a admitir reclamação para o presidente do tribunal ad quem nos casos de não admissão ou de retenção do recurso (no tribunal a quo) e as que levam a justificar a mesma admissão nos casos de rejeição do recurso (no tribunal ad quem), apodando diferente interpretação de violadora das garantias de defesa em processo criminal (artigo 32.º, n.º 1, da CRP) –, sustentando não apenas a incorrecção da leitura feita do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, mas também a violação, por essa interpretação, do disposto nos artigos 13.º, 20.º e 32.º, n.ºs 1 e 2, da CRP;
6) por despacho de 16 de Junho de 2003, o Vice-Presidente do STJ decidiu não conhecer da reclamação, por a mesma não se enquadrar minimamente nas disposições dos artigos 405.º do CPP e 688.º e 689.º do Código de Processo Civil (CPC), das quais resulta que a reclamação em causa, dirigida ao presidente do tribunal superior, só pode incidir sobre despacho do tribunal a quo, que não admitir ou retiver o recurso, e nunca sobre um acórdão do STJ, não tendo o seu Presidente poder hierárquico ou jurisdicional sobre os seus pares e sendo perfeitamente anómalo que se pretenda que o presidente de um tribunal censure um acórdão desse mesmo tribunal;
7) notificados deste despacho, vieram os reclamantes, por requerimento apresentado em 30 de Junho de 2003 (cf. fls. 15 e 16):
(i) requerer que sobre a matéria recaísse acórdão; e simultaneamente
(ii) interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC):
– quer do acórdão do STJ que rejeitou o recurso por eles interposto, “para ser declarada a inconstitucionalidade da norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na interpretação feita no douto acórdão reclamado de que a mesma se aplica a todos os casos de recurso dos arguidos, ou do Ministério Público no exclusivo interesse da defesa, reagindo contra condenação em pena não superior a 8 anos confirmada pelo Tribunal da Relação, por violação do disposto nos artigos 13.º, 20.º e 32.º, n.ºs 1 e 2, da CRP”, questão de inconstitucionalidade suscitada na reclamação para o Presidente do STJ;
– quer dos acórdãos condenatórios do Tribunal da Relação de Coimbra e do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, “para ser declarada a inconstitucionalidade da norma do artigo 127.º do CPP quando interpretada no sentido de permitir que expressa ou implicitamente se imponha ao arguido o ónus de suscitar a dúvida razoável, ou mesmo, tão-só, a possibilidade de dúvida razoável, acerca da verificação dos elementos constitutivos do tipo legal de crime, da respectiva imputabilidade ao seu autor e acerca da identidade e identificação deste, por violação do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP”, questão de inconstitucionalidade suscitada na motivação do recurso interposto da 1.ª instância para a Relação;
8) por despacho do Vice-Presidente do STJ, de 3 de Julho de 2003 (cf. fls. 18 e 19), não foi admitido o primeiro pedido formulado no requerimento de 30 de Junho de 2003, por a reclamação para a conferência prevista no n.º 3 do artigo 700.º do CPC pressupor a existência de um órgão colegial, formado pelo relator e pelos adjuntos, o que não ocorre com o órgão unipessoal Presidente do STJ;
9) por despacho do Conselheiro Relator do STJ, de 8 de Julho de 2003 (cf. fls. 22 verso e 23), o recurso interposto para o Tribunal Constitucional não foi admitido, “pois que a questão de inconstitucionalidade já foi suscitada depois de prolatado o acórdão recorrido”;
10) por requerimento apresentado em 17 de Setembro de 2003 (cf. fls. 24 a 28), os recorrentes vieram:
– reclamar para a Secção do STJ por entenderem que, nos termos do artigo 76.º, n.º 1, da LTC (“Compete ao tribunal que tiver proferido a decisão recorrida apreciar a admissão do respectivo recurso”), era a ela, e não singularmente ao Relator, que competia decidir da admissão, ou não, do recurso para o Tribunal Constitucional; e, por cautela de patrocínio,
– reclamar para a conferência do Tribunal Constitucional do despacho do Conselheiro Relator do STJ que não admitiu o recurso de constitucionalidade, desenvolvendo a argumentação que será adiante reproduzida;
11) por despacho do Conselheiro Relator do STJ, de 18 de Setembro de 2003 (fls. 29), não foi admitida a “reclamação para a Secção”, por não cabível, sendo determinada a expedição da reclamação para este Tribunal Constitucional.
1.2. A reclamação contra o despacho de não admissão do recurso para o Tribunal Constitucional (por a questão de constitucionalidade ter sido suscitada depois de prolatado o acórdão recorrido) desenvolve a seguinte argumentação:
“Quanto resulta do douto despacho reclamado, o recurso não é admitido porque a questão da constitucionalidade teria sido suscitada «depois de prolatado o acórdão recorrido».
No entanto, e como, aliás, é referido no douto despacho, são as seguintes as questões de constitucionalidade objecto do recurso – ou melhor, dos recursos (que são dois) – rejeitado(s):
– por um lado, a inconstitucionalidade da norma da alínea f) do n.° 1 do artigo 400.° do Código de Processo Penal, aplicada no douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que rejeitou os recursos interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça, na interpretação de que a mesma se aplica a todos os casos de recurso dos arguidos, ou do Ministério Público no exclusivo interesse da defesa, reagindo contra condenação em pena não superior a 8 anos confirmada pelo Tribunal da Relação – inconstitucionalidade por violação do disposto nos artigos 13.°, 20.° e 32.°, n.°s 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa:
– por outro lado, a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 127.° do Código de Processo Penal, aplicada pelo douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra e pelo douto acórdão do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, por aquele confirmado – que condenou o recorrente A., como autor material de um crime de roubo na pena de 3 anos de prisão e o recorrente B. como autor material de um crime de roubo e como autor do crime de detenção de arma proibida, em cúmulo, na pena única de 3 anos e 2 meses de prisão, a ambos tendo sido perdoado 1 ano da pena de prisão –, quando interpretada no sentido de permitir que expressa ou implicitamente se imponha ao arguido o ónus de suscitar a dúvida razoável, ou mesmo, tão-só, a possibilidade de dúvida razoável, acerca da verificação dos elementos constitutivos do tipo legal de crime, da respectiva imputabilidade ao seu autor e acerca da identidade e identificação deste, por violação do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32.°, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Ora, se a primeira questão de inconstitucionalidade referida foi, efectivamente, suscitada já após a prolação do douto acórdão recorrido, na reclamação para o Senhor Juiz Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a segunda foi suscitada muito antes: na motivação de recurso da decisão final da primeira instância para o Tribunal da Relação e na motivação de recurso da decisão do Tribunal da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça.
A isto acresce que, mesmo quanto à primeira questão, nenhuma possibilidade havia de a mesma ter sido invocada ou suscitada previamente pelos recorrentes, ora reclamantes, por isso que foram completamente colhidos de surpresa pela decisão de não admissão de recurso.
Na verdade, e salvaguardado sempre todo o muito respeito devido, parece evidente aos reclamantes que a decisão em causa se não louva em uma interpretação «directa», objectiva ou literal da lei – da norma da alínea f) do n.° 1 do artigo 400.° do Código de Processo Penal –, mas antes em uma sua interpretação restritiva, que faz equiparar a pena aplicável (referida na norma em causa) à pena concretamente aplicada.
E, ainda que tal decisão não seja inédita – quanto se sabe, há mais duas em sentido semelhante –, não era de modo algum exigível aos ora reclamantes que contassem com ela.
Aliás, importa frisá-lo a este propósito, para sublinhar o efeito surpresa da decisão em causa, que tal douta decisão veio revogar, ou alterar, completamente outra douta decisão, proferida neste mesmos autos pelo Tribunal da Relação de Coimbra: precisamente, aquela primeira decisão que admitiu o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
A este propósito – do efeito surpresa –, importa invocar, ainda, a ilegalidade e a inconstitucionalidade da própria norma do n.° 2 do artigo 72.° da Lei do Tribunal Constitucional, por violação do disposto na alínea b) do n.° 1 do artigo 70.° dessa mesma Lei e do disposto no artigo 223.°, n.° 1, e na alínea b) do n.° 1 e no n.° 4 do artigo 277.° da Constituição da República Portuguesa.
Por tudo isto, parece aos reclamantes que ambos os recursos interpostos para o Tribunal Constitucional – o recurso do acórdão que não admitiu o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e o recurso dos acórdãos que condenaram os reclamantes em penas de prisão – deverão ser admitidos e julgados.”
1.3. Neste Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público emitiu o seguinte parecer:
“Os dois recursos de constitucionalidade, interpostos pelos reclamantes, são, desde logo, intempestivos, já que não o foram nos 10 dias subsequentes à prolação pelo STJ do acórdão de fls. 105 e seguintes, que rejeitou – com fundamento em irrecorribilidade – os recursos que os arguidos pretendiam interpor do acórdão condenatório da Relação.
Na verdade, confrontados com tal decisão do Supremo, os arguidos não deduziram qualquer incidente pós-decisório – susceptível de obstar ao trânsito – nem interpuseram recurso para este Tribunal Constitucional, optando antes por lançar mão de um meio procedimental obviamente inexistente no ordenamento adjectivo: a reclamação para o Presidente do STJ de um acórdão proferido por esse Supremo Tribunal.
Ora, neste circunstancialismo, entendemos que – perante tal erro grosseiro dos recorrentes na utilização dos meios impugnatórios – não se verificam os pressupostos de prorrogação do prazo para interpor ainda recurso para este Tribunal, nos termos do n.º 2 do artigo 75.º da Lei n.º 28/82, já que esta norma pressupõe a utilização pela parte de um meio impugnatório efectivamente existente no ordenamento processual (ficando, naturalmente, precludida quando o recorrente, de forma indesculpável, «ficcione» uma via impugnativa que manifestamente não exista naquele circunstancialismo processual) – cf., v. g., Acórdãos n.ºs 459/98, 538/98 e 265/02.
Deste modo, tendo os ora reclamantes lançado mão de um meio impugnatório «atípico» que – em abstracto – se configura como manifestamente inexistente no ordenamento adjectivo (sempre tendo sido evidente que dos acórdãos de um Supremo Tribunal se não pode reclamar para o respectivo Presidente), não estão em condições de beneficiar da prorrogação prevista no n.º 2 do artigo 75.º da Lei n.º 28/82, o que determina a intempestividade do recurso para o Tribunal Constitucional e a improcedência da presente reclamação.”
Notificados para se pronunciarem, querendo, sobre este parecer, os reclamantes nada disseram.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Na apreciação das reclamações de despachos de indeferimento (não admissão) de recurso de constitucionalidade, o poder de cognição do Tribunal Constitucional não se cinge ao concreto fundamento invocado no despacho reclamado, antes abrange – quando os autos forneçam os elementos para tanto necessários – outros possíveis fundamentos, quer arguidos pela contraparte ou pelo Ministério Público, quer suscitados oficiosamente pelo próprio Tribunal, com vista a assegurar a maior eficácia à regra do n.º 4 do artigo 77.º da LTC, que determina que a decisão de revogação do despacho de indeferimento faz caso julgado quanto à admissibilidade do recurso.
2.1. No presente caso, e quanto ao recurso tendo por objecto o acórdão do STJ de rejeição do recurso penal para ele interposto, pode desde já adiantar-se que a inadmissibilidade desse recurso encontra suporte na sua extemporaneidade, conforme sustentado no parecer do Ministério Público, que não no fundamento da não suscitação da questão de inconstitucionalidade antes da prolação do acórdão recorrido, invocado no despacho reclamado. É certo que a admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – que foi o interposto pelos recorrentes – depende, em princípio, da suscitação “durante o processo” da inconstitucionalidade da norma aplicada pela decisão recorrida e cuja conformidade constitucional o recorrente pretenda ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, esclarecendo o n.º 2 do artigo 72.º da mesma Lei que tal recurso só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”. E também é certo que constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional que o apontado requisito só se pode, em regra, considerar preenchido se a questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional, e que, por isso, tem sido uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua nulidade ou o pedido da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem já meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve “lapso manifesto” do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes do processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da proferida. E também, por maioria de razão, não constitui, em regra, meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas respectivas alegações ou – como no presente caso ocorreu – em “reclamação” para o Presidente do STJ contra o referido acórdão de rejeição do recurso penal.
Porém, as referidas regras conhecem excepções, que contemplam quer as situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, quer aquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
Entende-se ser esta última a situação dos presentes autos. Na verdade, como resulta da consulta da jurisprudência disponível do STJ, designadamente na sua base de dados oficial (www.dgsi.pt/jstj), a orientação jurisprudencial em que o acórdão recorrido se insere só se desenvolveu em 2003 (cf. acórdãos de 8 de Maio de 2003, processo n.º 1224/03, de 15 de Maio de 2003, processo n.º 1109/03, de 22 de Maio de 1993, processo n.º 1798/03, e de 26 de Junho de 2003, processos n.ºs 1526/03 e 1797/03), tendo até então sido pacificamente seguido o entendimento de que, quando o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP se refere a processo por crime a que seja aplicável pena não superior a 8 anos de prisão, esta pena é a prevista como limite máximo na respectiva norma incriminadora.
Neste contexto, quando, em 13 de Fevereiro de 2003 (cf. fls. 92), os recorrentes apresentaram a motivação do recurso que haviam interposto para o STJ e que fora admitido pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Coimbra, não era exigível que nessa peça suscitassem a questão da inconstitucionalidade de uma interpretação do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, que se afastava do entendimento, até aí comum, de que na expressão “processo por crime a que seja aplicável pena de prisão superior a oito anos”, pena aplicável se refere à moldura abstracta da pena prevista para o tipo de crime em causa, diferenciando-se da pena aplicada pelas concretas decisões condenatórias. E, por outro lado, no presente caso, tendo a questão da rejeição do recurso sido suscitada pelo Conselheiro Relator, ela foi decidida em conferência, após os vistos dos Juízes Adjuntos, sem que aos recorrentes fosse dada oportunidade de sobre ela se pronunciarem (cf. artigos 417.º, n.ºs 3, alínea c), e 4, 418.º, n.º 1, e 419.º, n.ºs 3 e 4, alínea a), do CPP).
Entende-se, assim, que os recorrentes se deviam considerar dispensados de suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferido o acórdão do STJ recorrido (no mesmo sentido, em caso similar, cf. o Acórdão n.º 495/2003). Porém, deveriam ter interposto o recurso de constitucionalidade no prazo de 10 dias, contado a partir da notificação deste acórdão, não se podendo considerar que este prazo só terá começado a correr, nos termos do n.º 2 do artigo 75.º da LTC, a partir do momento em que se teria tornado definitiva a decisão do Vice-Presidente do STJ que não conheceu da anómala “reclamação” deduzida para o Presidente do STJ contra aquele acórdão.
Na verdade, como se salienta no parecer do Ministério Público, a “prorrogação” do prazo de interposição do recurso de constitucionalidade, prevista no artigo 75.º, n.º 2, da LTC só ocorre quando tenha sido interposto “recurso ordinário” (ou figuras equiparáveis, como a reclamação para o presidente do tribunal superior contra despachos do tribunal a quo de não admissão ou de retenção de recursos, ou como a reclamação para a conferência de despachos dos relatores) legalmente previsto, que venha a não ser admitido com o específico fundamento da irrecorribilidade da decisão, e já não quando o recorrente lança mão de um meio processual obviamente inexistente no ordenamento adjectivo, como seja a reclamação para o Presidente do STJ de um acórdão proferido por esse mesmo Supremo Tribunal.
Este Tribunal já decidiu, no Acórdão n.º 641/97, que “o prescrito no n.º 2 do artigo 75.º da Lei n.º 28/82 há-de ser entendido como reportado a recursos ordinários efectivamente previstos no ordenamento jurídico, e não a modos de impugnação de que as «partes» lancem mão mas que, ou são recursos não qualificáveis como recursos ordinários, ou são formas impugnativas não previstas nem admissíveis por aquele ordenamento, ou são recursos que, muito embora a lei os qualifique como ordinários, não podem, como tal, ser tidos em vista para efeitos daquele preceito (cf. sobre este último ponto, por entre muitos, o Acórdão deste Tribunal n.º 181/93, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24.º volume, 485 a 494)”, e, assim, decidiu que, no caso então em apreço, “os aludidos recurso para o plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça e a reclamação dirigida ao Presidente desse Supremo não tinham qualquer suporte legal e, consequentemente, não se pode dizer que aquelas formas de impugnação de que se serviram os ora reclamantes se integram na expressão «recurso ordinário» utilizada no mencionado n.º 2 do artigo 75.º”. Similarmente, no Acórdão n.º 459/98 (Diário da República, II Série, n.º 287, de 14 de Dezembro de 1998, pág. 17 671, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 40.º volume, pág. 683) decidiu-se que o requerimento “atípico” em que se pedia a intervenção do plenário do STJ num recurso já julgado não era susceptível de integrar o preceituado no n.º 2 do artigo 75.º da LTC.
Pelas mesmas razões, a “reclamação” para o Presidente do STJ, apresentada em 9 de Junho de 2003, não teve a virtualidade de interromper o prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional contra o acórdão do STJ de 22 de Maio de 2003, sendo manifestamente extemporâneo tal recurso apenas interposto em 30 de Junho de 2003.
2.2. Quanto ao recurso tendo por objecto o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (que confirmou o acórdão do Tribunal Colectivo da Figueira da Foz), não é possível apreciar de imediato a sua admissibilidade sem que primeiramente o mesmo seja (ou não) admitido pelo Desembargador Relator desse Tribunal, nos termos do artigo 76.º, n.º 1, da LTC (“Compete ao tribunal que tiver proferido a decisão recorrida apreciar a admissão do respectivo recurso”).
O despacho do Conselheiro Relator do STJ, ora reclamado, cinge-se, como aliás resulta da sua fundamentação, à não admissão do recurso interposto do acórdão do STJ. Quanto ao recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, cumpre, antes de mais, facultar ao respectivo Desembargador Relator a oportunidade de proferir despacho de admissão ou de não admissão.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação, embora por fundamento diverso do invocado no despacho reclamado.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta, por cada um.
Lisboa, 7 de Janeiro de 2004.
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos