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Proc. nº 472/2001 Plenário Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional
I Relatório
A) O pedido e os seus fundamentos
1. O Procurador-Geral da República vem requerer, ao abrigo do artigo 281º, nº
2, alínea e), da Constituição, a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos nºs 3 e 4 do artigo 28° do Decreto-Lei nº 149/98, de 25 de Maio, na redacção emergente do Decreto-Lei nº
109/99, de 31 de Março.
O mencionado Decreto-Lei nº 149/98 aprovou a orgânica do Instituto Português das Artes do Espectáculo (IPAE) e as normas que constituem objecto do pedido dispõem o seguinte:
Artigo 28º
3. O pessoal afecto às unidades de extensão artística previstas no artigo 31.º que exerce funções de natureza técnico-artística, bem como o pessoal necessário
à promoção e acompanhamento técnico de manifestações artísticas a desenvolver no
âmbito das actividades do IPAE, pode ser admitido em regime de contrato individual de trabalho, mediante despacho do Ministro da Cultura.
4. O pessoal a que se refere o número anterior beneficia do regime geral da segurança social e não fica abrangido pelo estatuto da função pública.
Para fundamentar o seu pedido, o Procurador-Geral da República alegou, em síntese, o seguinte:
— A norma a que se reporta o pedido dispõe — sob a epígrafe
“pessoal com contrato individual de trabalho” — que o pessoal afecto às unidades de extensão artística que exerça funções de natureza técnico-artística, bem como o pessoal necessário à promoção e acompanhamento técnico de manifestações artísticas a desenvolver no âmbito das actividades do IPAE pode ser admitido em regime de contrato individual de trabalho, mediante despacho do Ministro da Cultura, beneficiando do regime geral da segurança social e não ficando abrangido pelo estatuto da função pública.
— Por força do preceituado no artigo 165°, nº 1, alínea t), da Constituição, é da exclusiva competência da Assembleia da República — salvo autorização legislativa outorgada ao Governo — legislar sobre a matéria referente às “bases do regime e âmbito da função pública”.
— Os princípios fundamentais do regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na Administração Pública são definidos pelos Decretos-Leis nºs 184/89, de 2 de Junho, e 427/89, de 7 de Dezembro, que se configuram como verdadeiras “lei-quadro” nesta matéria, abrangendo a disciplina básica neles estabelecida grande parte da Administração — mesmo descentralizada – integrada pelos institutos públicos, nas modalidades de serviços personalizados do Estado e de fundações públicas (cfr. Acórdãos nºs
36/96 e 129/99 do Tribunal Constitucional, publicados no D.R., II Série, de 3 de Maio de 1996 e 6 de Julho de 1999, respectivamente).
— Os referidos diplomas estabelecem, taxativamente, as espécies de constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública, apenas admitindo as formas de contrato de pessoal, nas modalidades de contrato administrativo de provimento e de contrato de trabalho a termo certo, este
último só admissível nos casos especialmente previstos na lei.
— Tal tipificação taxativa tem o seu âmbito institucional definido em torno dos serviços e organismos da Administração Pública, incluindo os institutos públicos nas modalidades de “serviços personalizados do Estado” e de
“fundos públicos” (artigo 2° do Decreto-Lei nº 184/89) — sendo vedado a tais serviços ou organismos a constituição de relações de emprego com carácter subordinado por forma diferente da prevista nos referidos diplomas legais.
— O IPAE é uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa, sujeita à superintendência e tutela do Ministro da Cultura (artigo 1° do Decreto-Lei nº 149/98) — configurando-se, atentas as suas atribuições e estrutura orgânica e funcional, como um instituto público, na modalidade de serviço personalizado do Estado, na área do Ministério da Cultura
— sujeito a um regime de direito administrativo e totalmente desprovido de natureza empresarial — e situando-se, por isso, no “âmbito institucional” definido pelo artigo 2° do citado Decreto-Lei nº 184/89.
— Assim sendo, a admissibilidade de celebração de novos contratos de trabalho por tempo indeterminado — sujeitos ao regime legal genericamente vigente em direito laboral — colide frontalmente com o princípio da taxatividade das formas de constituição da relação de emprego na Administração Pública e com a proscrição da figura do contrato de trabalho por tempo indeterminado, resultante da disciplina básica instituída pelos citados Decretos-Leis nºs
184/89 e 427/89. Nestes termos, integrando-se a norma questionada em diploma editado pelo Governo, sem precedência de autorização legislativa, padece de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto no artigo 165°, n° 1, alínea t), da Constituição.
— Por outro lado, a norma a que se reporta o presente pedido, ao prever a possibilidade de constituição de uma relação jurídica de emprego na Administração Pública sem instituir um procedimento justo de recrutamento e selecção dos candidatos à contratação definitiva, fazendo assentá-la em mero e discricionário despacho ministerial, não precedido de adequada selecção e concurso dos interessados, colide ainda com o nº 2 do artigo 47° da Constituição, enfermando de inconstitucionalidade material.
— Finalmente, a recente jurisprudência do Tribunal Constitucional — expressa, nomeadamente nos Acórdãos nºs 683/99 e 368/00 — acentuou a relevância atribuível à regra constitucional do concurso como forma privilegiada de acesso
à função pública.
B) Resposta do Primeiro-Ministro
2. Notificado do pedido, o Primeiro-Ministro veio responder, formulando as seguintes conclusões:
— Os nºs 3 e 4 do artigo 28° dos Estatutos do IPAE, aprovados pelo Decreto-Lei n.° 149/98, com as alterações do Decreto-Lei n° 109/99, não se subordinam ao regime legal do Decreto-Lei n° 429/89, já que este não reveste a natureza de uma lei de bases, nem assume qualquer valor paramétrico sobre outras leis, à luz dos nºs 2 e 3 do artigo 112° da Constituição.
— O regime de contrato individual de trabalho estipulado pelas normas sindicadas para alguns sectores do pessoal do IPAE encontra-se devidamente habilitado, na qualidade de disciplina estatutária especial de um Instituto Público, pelo disposto no n° 4 do artigo 41° do Decreto-Lei n° 184/89, o qual assume a natureza de uma lei de bases.
— As normas impugnadas não são organicamente inconstitucionais, com fundamento em violação da reserva relativa de competência da Assembleia da República por decreto-lei não autorizado, dado que não assumem, em razão do seu objecto e densidade reguladora, a natureza de bases legais respeitantes à matéria prevista na alínea t) do n° 1 do artigo 165°, mas sim a de regras especiais de concretização ou desenvolvimento dessas mesmas bases aprovadas pelo já mencionado Decreto-Lei n° 184/89.
— As citadas normas também não são materialmente inconstitucionais, por ofensa ao n° 2 do artigo 47° da CRP, dado que, se o regime contratual do referido pessoal do IPAE assume legitimamente uma natureza privatística e se encontra, por conseguinte, excluído do âmbito da função pública, não procede o argumento do requerente, segundo o qual, o mesmo pessoal deveria ser seleccionado na base de concurso, pois, nos termos do mencionado n° 2 do artigo
47º, o concurso é um processo de recrutamento consagrado para o acesso à função pública e não para a relação de emprego de direito privado.
— Acautelando a possibilidade de esse Tribunal optar pelo entendimento, não uniforme, mas que sufragou em alguns acórdãos, e com o qual se não pode concordar, no sentido de se tomar obrigatório o concurso público na contratação de pessoal a termo indeterminado por estruturas da Administração Pública, deve considerar-se, no esteio dessa mesma jurisprudência, que existem
“razões materiais” que fundamentam a dispensa do referido concurso.
— Essas razões materiais assentam em fundamentos funcionais e de mercado, designadamente, na necessidade de recrutamento de pessoal qualificado para o exercício de actividades de carácter muito específico no sector técnico-artístico, recrutamento esse que ficaria inviabilizado se o mesmo pessoal fosse submetido ao regime de emprego público, prejudicando-se, simultaneamente a prossecução dos fins determinados legalmente para o instituto.
II Fundamentação
3. O Decreto-Lei nº 149/98 visou, conforme decorre do último parágrafo do seu preâmbulo, aprovar a orgânica do IPAE e, com isso, estruturar a intervenção do Estado no domínio das artes do espectáculo.
Este diploma sofreu, desde a sua entrada em vigor, quatro alterações, sendo de destacar a segunda, que foi efectuada pelo Decreto-Lei nº
109/99, de 31 de Março, tendo procedido, designadamente, à alteração do artigo
28º, aditando-lhe os nºs 3 e 4, que constituem o objecto do presente pedido.
Posteriormente, o Decreto-Lei nº 149/98 foi revogado pelo Decreto-Lei nº 181/2003, de 16 de Agosto, que criou o Instituto das Artes - resultante da fusão do Instituto de Arte Contemporânea e do Instituto Português das Artes do Espectáculo – e aprovou a respectiva orgânica.
A finalidade do Decreto-Lei º 181/2003 resulta clara do 15º parágrafo do seu preâmbulo:
É neste contexto e finalidade que, dando cumprimento ao previsto na Lei nº
16-A/2002, de 31 de Maio, se insere a fusão do Instituto de Arte Contemporânea com o Instituto Português das Artes do Espectáculo, com a decorrente criação do Instituto das Artes, cuja orgânica se aprova pelo presente diploma.
Efectivamente, a Lei nº 16-A/2002, de 31 de Maio, procedeu à alteração da Lei nº 109-B/2001, de 27 de Dezembro, (aprova o Orçamento do Estado para 2002) e determinou a extinção, reestruturação ou fusão de um conjunto de organismos públicos, dispondo o seu artigo 2º, nº 2, alínea b), o seguinte:
Artigo 2º Extinção, reestruturação e fusão de organismos
2. (...) são desde já objecto de:
(…) b) Fusão
(…) No Ministério da Cultura:
(…) Instituto de Arte Contemporânea; Instituto Português das Artes do Espectáculo;
Criado o Instituto das Artes, por fusão do Instituto de Arte Contemporânea com o Instituto Português das Artes do Espectáculo, o Decreto-Lei nº 181/2003 procedeu à revogação dos diplomas que regulam as entidades fundidas, entre eles, o Decreto-Lei nº 149/98:
Artigo 39.º Norma revogatória São revogados os seguintes diplomas:
(...) b) Decreto-Lei nº 149/98, de 25 de Maio;
(...)
De acrescentar apenas que o Decreto-Lei nº 181/2003 iniciou a sua vigência em 1 de Setembro de 2003 (vide artigo 40º), data, portanto, em que se operou a revogação do Decreto-Lei nº 149/98.
Em face desta revogação, e atendendo à impossibilidade de
“convolação” do objecto do processo, uma vez que o Tribunal se encontra limitado pelo “princípio do pedido” (vide nº 5 do artigo 51º da Lei do Tribunal Constitucional), importa agora averiguar se existe utilidade no conhecimento do mérito do pedido.
4. De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 282º da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma em causa “o que justificará que se conheça de pedidos relativos a normas revogadas sempre que tal se mostre indispensável para corrigir ou eliminar os efeitos entretanto produzidos por tais normas durante o período da sua vigência” (vide Acórdão nº 531/00, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. 48, págs. 47 e segs.).
Constitui entendimento reiterado deste Tribunal que não existe interesse jurídico relevante no conhecimento do pedido quando, no caso de uma eventual declaração de inconstitucionalidade, os seus efeitos sempre viriam a ser limitados, por motivos de segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, de acordo com o disposto no nº 4 do artigo 282º da Constituição.
Assim, de modo relevante para a presente questão, se exprimiu o Acórdão nº 142/2002 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. 52, p. 223 e ss.):
Como o Tribunal tem repetidamente afirmado, a revogação ou caducidade de uma norma não obsta, por si só, ao conhecimento do pedido de apreciação abstracta da sua constitucionalidade. Mas, como é manifestamente o caso, quando o Tribunal antecipar que, caso decidisse no sentido da inconstitucionalidade, haveria de limitar os efeitos de tal decisão (por razões de segurança jurídica e interesse público), essa conclusão tornar-se-á forçosa, pois a eventual declaração de inconstitucionalidade afigurar-se-ia então inútil: por um lado, porque não poderia valer para o futuro (pro futuro), visto as normas impugnadas já não estarem em vigor; por outro lado, porque não poderia valer para o passado (pro praeterito) já que o Tribunal sempre iria limitar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade (...).
Ora, no caso em análise, é evidente a necessidade de garantir a segurança jurídica relacionada com a estabilidade das relações de trabalho que entretanto se constituíram (num sentido significativo para esta decisão, veja-se a limitação dos efeitos da inconstitucionalidade decidida no Acórdão nº 406/03, publicado no D.R., I Série-A, de 24 de Outubro de 2003).
III Decisão
5. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional não toma conhecimento, por inutilidade superveniente, do pedido de declaração da inconstitucionalidade dos nºs 3 e 4 do artigo 28° do Decreto-Lei nº 149/98, de
25 de Maio, na redacção emergente do Decreto-Lei nº 109/99, de 31 de Março.
Lisboa, 16 de Dezembro de 2003 Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Carlos Pamplona de Oliveira Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício Vítor Manuel Gonçalves Gomes Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Paulo Mota Pinto Bravo Serra Gil Galvão Maria Helena Brito
Luís Nunes de Almeida