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Processo n.º 65/03
2ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
A - Relatório
1. O Ministério Público intentou, na comarca de ----------, uma acção de investigação oficiosa da paternidade contra A., imputando-lhe a paternidade biológica do menor B..
Por sentença proferida em 21 de Dezembro de 1999, a acção foi julgada improcedente.
O Autor recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por Acórdão de 23 de Maio de 2000, decidiu anular o julgamento por considerar indispensável a ampliação da matéria de facto (devendo formular-se quesito a indagar se a mãe do menor, em resultado do relacionamento sexual com o réu, veio a engravidar e a dar à luz o menor B.).
Por despacho de 28 de Setembro de 2000, exarado a fls. 175 v., determinou-se que, previamente à repetição da audiência, fosse cumprido o disposto no artigo 512.º do Código de Processo Civil, não tendo o réu exercido o direito de proposição de novas provas.
A acção foi julgada procedente por sentença de 16 de Maio de 2001, tendo o tribunal declarado o Réu como pai do menor B..
Inconformado, o Réu interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por Acórdão de 22 de Janeiro de 2001, julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
2. O Réu interpôs, então, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as suas alegações afirmando, quanto à “questão nuclear”, que:
«(…)
4. Até 13 de Maio de 1998 (data de entrada em vigor da Lei n.º 21/98) a ordem jurídica não estabelecia qualquer presunção de paternidade derivada do mero relacionamento sexual no período legal de concepção.
5. Vigora, por isso, até então, nesta matéria, a doutrina do assento 4/83:
“cabe ao autor, em acção de investigação, fazer prova de que a mãe, no período legal de concepção, só com o investigado manteve relações sexuais”.
6. As normas que estabelecem presunções legais (como a do art. 1871.º na redacção da Lei n.º 21/98) são normas de direito probatório material – daí que venham reguladas no Cód. Civil;
“Aos pontos ou questões de direito que [tais normas] regulam, aplica-se a lei vigente ao tempo da verificação dos actos ou factos que precisam de ser provados”;
“A lei aplicável é a lei vigente ao tempo em que se verificam esses factos ou actos” (Baptista Machado);
7. É o que decorre do art. 12.º do Cód. Civil.
8. É essa a doutrina firmada neste STJ, nos acórdãos de 25 de Janeiro de 1977
(in Bol. Min. Just. n.º 263, pág. 233) e de 23 de Outubro de 1979 (in Bol. Min. Just. n.º 290, pág. 333), nos quais se dispõe que “a lei nova não é de aplicação imediata quando for modificativa do direito probatório material”.
9. Tendo os factos, a que respeita a presunção entretanto estabelecida ocorrido em 1992/93, a respectiva norma (al. e) do n.º 1 do art. 1871.º introduzida pela Lei n.º 21/98) não é aplicável ao caso sub judice.
(…) 10. Mesmo que não fosse atendível a posição unânime da doutrina e maioritária da Jurisprudência em matéria de aplicação no tempo de leis que estabeleçam presunções, sempre a consideração de que
-levando o estabelecimento de uma presunção pressuposta numa alteração do ónus de alegação e de prova;
-devendo toda a defesa ser deduzida na contestação (art. 489.º do C.P.C.);
-tendo a contestação sido apresentada em 27 de Março de 1996 e a proposição de provas em Fevereiro de 1997; a aplicação retroactiva da Lei n.º 21/98 (que a lei não estabelece) sempre teria de salvaguardar “os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular” (relevância das alegações produzidas no processo e das provas propostas e produzidas), em conformidade com o disposto no n.º 1 do art. 12.º do Cód. Civil.
11. A entender-se diferentemente tal interpretação afrontaria irremediavelmente a confiança e estabilidade que o Direito visa,
12. sendo incompatível [com] a institucionalização da República Portuguesa como um Estado alicerçado no Direito, consagrada no art. 2.º da Constituição da República».
3. O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 28 de Novembro de
2002, julgou o recurso improcedente, louvando-se, entre outros, nos seguintes argumentos:
«Temos para nós que com o aditamento da presunção estabelecida na referida al. e) do nº 1 do art. 1871 se visou facilitar a prova da paternidade biológica, a necessária para a verdadeira atribuição da paternidade, tendo em conta a fiabilidade actual dos exames hematológicos. Ora, a relação biológica é uma relação provida de juridicidade , com carácter duradouro que, por isso, se pode localizar sob mais que uma lei. Sem dúvida que, segundo o nº 1 do art. 12º do Cod. Civil, “A lei só dispõe para o futuro, ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular”. Porém, prescreve a 2ª parte do nº 2 daquele preceito que quando a lei dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor. Na esteira do acórdão deste Supremo Tribunal de 11/3/1999, in BMJ nº 485, págs.
418 e segs., “Afigura-se que a lei, aditando a referida alínea e), dispõe directamente sobre o conteúdo da presunção de paternidade, alargando o seu
âmbito de modo a abranger o mero relacionamento sexual durante o período legal da concepção. Assim, tal normativo teria aplicação às situações preexistentes” porque a lei abstraiu dos factos que lhes deram origem. Destarte, de harmonia com o que se acaba de expor, a lei nova aplica-se à situação em apreço (no mesmo sentido v. o acórdão proferido neste Supremo, em
28/05/02, na revista nº 1633/02-1ª s.). Mas, esta aplicação afecta, no caso presente, o direito de defesa do R. e viola o estatuído no art. 2º da Constituição da República Portuguesa? Seguramente que não. Não obstante a sua contestação e a apresentação do rol de testemunhas terem tido lugar em datas anteriores à da entrada em vigor da Lei nº 21/98, o certo é que os factos que corporizam a presunção foram alegados na petição inicial, impugnados pelo R., que sobre eles produziu prova, sem êxito. Acresce que, como se diz no acórdão recorrido, após a anulação do primeiro julgamento, já na vigência daquela Lei, ao ser cumprido, de novo, o art. 512º do C. P. Civil, foi dada ao R. a possibilidade de apresentar novas testemunhas e requerer outras provas, faculdade de que não fez uso. Finalmente, salienta-se que, como acima se descreveu, o R. recusou a realização de exame hematológico invocando traduzir-se tal acto numa intromissão na esfera da sua intimidade e não ser susceptível de dar um resultado determinante para a fixação jurídica da paternidade. E se bem que o valor dessa recusa tenha sido objecto de apreciação no acórdão recorrido, o recorrente não discute essa matéria nesta revista. Mas, diz-se aqui, e agora, que foi dada ao R. a possibilidade de usar um meio de prova excelente para se defender da imputação que lhe era feita. Todavia, não só não o usou como as razões que invoca para esse não uso improcedem. Quanto à última – insusceptibilidade de dar um resultado determinante – é ela manifestamente insubsistente porque é hoje pacífico que a evolução técnica ocorrida no campo hematológico levou a que tais exames sejam considerados dados fidedignos para afastar ou afirmar a relação de paternidade. Quanto à intromissão na vida privada, não é esta razão idónea para legitimar a recusa porque em confronto com o valor da reserva da intimidade do cidadão está, in casu, o direito fundamental à paternidade e á historicidade da pessoa humana. Aliás, a própria acção de investigação de paternidade também pode ser tida como uma intromissão na vida privada do investigado e, que saibamos, nunca ninguém ousou defender a inviabilidade da acção com esse fundamento. Ora, segundo o disposto no nº 2 do art. 519º do C. P. Civil, aqueles que recusem a colaboração devida para a descoberta da verdade serão condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis. Se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no nº 2 do art. 344º do Cod. Civil. Ou seja: a recusa implicará para o R. o ónus de demonstrar que não é pai. E essa demonstração, na situação em apreço, não a fez o R., apesar da disponibilidade de recurso aos meios probatórios. Assim, resulta de tudo o exposto que não foi violado o direito de defesa do R., nem o disposto no nº 2 do art. 2º da C.R.P.»
4. Inconformado, o Réu interpôs, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (doravante designada “LTC”), recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade para este Tribunal, afirmando, após ter sido convidado, nos termos do art. 75.º-A da LTC, a especificar o sentido ou interpretação normativa aplicada pela decisão recorrida e tida por inconstitucional, que «1. A norma cuja constitucionalidade se sindica é o art.
12.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código Civil (...); 2. A dimensão com que tal norma foi aplicada pela Relação de Coimbra e pelo STJ (a interpretação dada por esses Tribunais àquela norma) e que resulta dos respectivos acórdãos (como da formulação do objecto dos recursos constantes das alegações e da espécie processual: relação cronológica entre o desenvolvimento dos actos processuais e a entrada em vigor da Lei n.º 21/98, que altera a redacção do art. 1871.º do Cód. Civil) é a seguinte: - por aplicação do art. 12.º, n.º 2, 2.ª parte do Cód. Civil, a Lei n.º 21/98, ao introduzir uma nova presunção no elenco das do 1871.º do Cód. Civil [al.e)] abrange as situações de paternidade constituídas antes da sua entrada em vigor, mesmo aquelas cujas acções de investigação de paternidade se encontravam pendentes nessa data, nos respectivos processos já tenham decorrido as fases dos articulados, saneamento e proposição de provas (...)».
5. O recorrente apresentou alegações, afirmando, de forma conclusiva, que:
«1. O STJ acolheu a interpretação do art. 12.º, n.º2, 2.ª parte do Cód. Civil, segundo a qual a Lei n.º 21/98, de 12 de Maio, na parte em que adita uma nova presunção de paternidade às do art. 1871.º do Cód. Civil é de aplicação imediata
(por dispor directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem).
2. Decide que a interpretação assim acolhida é aplicada aos casos em que as fases do articulado, saneamento e proposição de provas ocorreram em data anterior à sua entrada em vigor.
3. A Lei n.º 21/98, ao aditar uma nova presunção de paternidade às do art.
1871.º, inverte o ónus da prova (por referência à forma como era repartida antes da sua entrada em vigor: antes cabia ao A., a partir de então passa a caber ao Réu).
4. Considerando que toda a defesa deve ser deduzida na contestação (art. 489.º do C.P.C.), os princípios da estabilidade da instância (art. 510.º do C.P.C.) e da prova (esta consagrada no art. 512.º - embora hoje sob a forma mitigada do art. 512.º A), a alteração da repartição do ónus da prova, depois de decorridas aquelas fases processuais, atenta, de forma grosseira, contra os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos, que constituem sub-princípios concretizadores do Princípio do Estado de Direito – art. 2.º da Constituição da República.
(5. Princípio da protecção da confiança que se mostra redobradamente violado quando o Tribunal de 1.ª Instância e o Tribunal da Relação nas suas decisões de
1999 e 2000 proferidas nestes autos evidenciavam que a nova lei não era aplicável ao caso sub judice para depois virem a decidir com base nela, censurando a R. a inércia em que o haviam anteriormente louvado).»
6. O Ministério Público junto deste Tribunal, nas suas contra-alegações, suscita, nos termos que se transcrevem, questão prévia no sentido do não conhecimento do objecto do presente recurso:
«1.º - A decisão recorrida –ao considerar imediatamente aplicável a acção de investigação de paternidade pendente a nova presunção legal de paternidade, criada pela Lei n.º 21/98 –baseou-se –como “ratio decidendi” –na circunstância de, em data muito ulterior àquela em que passou a vigorar a referida Lei, ter sido cumprido, relativamente ao réu, o disposto no artigo 512.º do Código de Processo Civil, dispondo a parte (na sequência de precedente anulação do primitivo julgamento) de plena oportunidade processual para apresentar as provas que tivesse por pertinentes, face à eventualidade de sobre ele passar a incidir o ónus decorrente do regime constante do artigo 1871.º, alínea e) do Código Civil.
2.º - Deste modo, a norma questionada pelo recorrente não foi aplicada, pelo acórdão recorrido, com o preciso sentido “inconstitucional” que o recorrente lhe conferiu, já que a aplicação imediata do regime probatório material, emergente daquela Lei, não ocorreu num momento em que, na acção, pendente já tinha decorrido a fase de “proposição de provas”.»
7. Notificado o recorrente para se pronunciar sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, veio aquele pugnar pela sua improcedência, sustentando que:
“1. A interpretação normativa aqui questionada é a definida pelo recorrente (não sendo invalidada pelo facto do S.T.J. ter considerado também uma nova notificação para efeitos do art. 512.º apenas a propósito de um quesito novo cuja prova não cabia ao Réu);
2. Mesmo que se pudesse ter como controverso na interpretação questionada aquele momento da proposição de provas, nada impede considerar tal interpretação restringida ao momento da contestação e do saneamento do processo, dada a absoluta irrelevância (face ao disposto no art. 489.º do C.P.C.) do momento da proposição de provas, no sentido normativo do entendimento questionado”.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
B - Fundamentação
8. Em primeiro lugar, importa conhecer da questão prévia suscitada, neste Tribunal, pelo Ministério Público.
O presente recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, e, como se sabe, são requisitos para se poder tomar conhecimento deste tipo de recurso, além da aplicação como ratio decidendi, pelo tribunal recorrido, da(s) norma(s) cuja constitucionalidade se impugna e do esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam, que a inconstitucionalidade normativa tenha sido suscitada durante o processo.
Ao Tribunal Constitucional compete apenas apreciar, em via de recurso, a constitucionalidade de normas, pelo que a questão de constitucionalidade suscitada perante o tribunal a quo, cuja apreciação pode vir a constituir objecto daquele recurso, há-de ser igualmente uma questão de constitucionalidade normativa, isto é, referida à conformidade constitucional de norma(s) – cf. Acórdão n.º 199/88 (DR, II Série, de 28 de Março de 1989): «[...] este Tribunal tem decidido de forma reiterada e uniforme que só lhe cumpre proceder ao controle da constitucionalidade de “normas” e não de “decisões” – o que exige que, ao suscitar-se uma questão de inconstitucionalidade, se deixe claro qual o preceito legal cuja legitimidade constitucional se questiona, ou, no caso de se questionar certa interpretação de uma dada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa do preceito que se tem por violador da lei fundamental»
(ver também, por exemplo, os Acórdãos n.os 178/95, publicado no DR, II Série, de
21 de Junho de 1995, 521/95 e 1026/96, inéditos)'.
Nada impede, porém, que, no caso de o recorrente entender que um preceito não é inconstitucional “em si mesmo”, mas apenas num segmento ou numa sua determinada dimensão ou interpretação normativa, possa tão-só questionar-se, perante o Tribunal Constitucional, esse segmento ou essa interpretação normativa – o que implica, como se vem jurisprudencialmente reiterando, o ónus de, ao suscitar a inconstitucionalidade, identificar devidamente tal questão, através da indicação do segmento ou da enunciação da dimensão ou sentido normativo reputados inconstitucionais (cf. Acórdãos n.os 367/94, in DR, II Série, de 7 de Setembro de 1994; 178/95, in DR, II Série, de 21 de Junho de 1995; e, mais recentemente, o Acórdão 116/02, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Fundamental, em todo o caso, é que o Tribunal a quo tenha mobilizado a norma cuja constitucionalidade se questiona como ratio decidendi do seu juízo, isto é, no caso de apenas se questionar uma determinada dimensão ou interpretação normativa, que o Tribunal recorrido haja efectivamente aplicado, como fundamento da decisão, a dimensão normativa que o recorrente coloca em crise perante o Tribunal Constitucional.
Com efeito, na apreciação das questões de constitucionalidade que lhe são colocadas e quando se trata de uma questão de interpretação normativa, o Tribunal Constitucional parte necessariamente da interpretação que se faz na decisão recorrida, devendo o recorrente identificar de forma clara a norma que, tendo sido interpretada-aplicada pelo tribunal recorrido, considera inconstitucional (cf. Acórdão n.º 238/02), porquanto apenas cabe recurso para o Tribunal Constitucional de “decisões que apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo” – sendo assim necessário que a norma que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal, seja a mesma que constituiu o fundamento judicativo da decisão do tribunal a quo.
9. No caso sub judicio, o recorrente afirma que a interpretação questionada diz respeito à abrangência, por aplicação do artigo 12.º, n.º 2, 2ª parte do Código Civil, das situações de paternidade constituídas antes da entrada em vigor da Lei n.º 21/98 “mesmo naquelas cujas acções de investigação se encontravam pendentes nessa data, ainda que nos respectivos processos já tenham decorrido as fases dos articulados, saneamento e proposição de provas”.
Assim colocada a questão perante o Tribunal Constitucional, importa apurar se a dimensão normativa invocada/suscitada pelo recorrente corresponde ao sentido normativo determinante do juízo decisório (id est, à norma que o tribunal recorrido aplicou como ratio decidendi).
Quanto a esse problema, afigura-se claro que quer o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22 de Janeiro de 2002, quer o do Supremo Tribunal de Justiça, afirmaram peremptoriamente que não tinha decorrido a fase processual de proposição de provas no momento da entrada em vigor da Lei n.º
21/98.
No Tribunal da Relação de Coimbra, afirmou-se que “[d]a aplicabilidade da lei nova não resulta prejuízo para a defesa do apelante”, e que “tendo a lei sido alterada em 13/05/98 e a primeira audiência de discussão e julgamento ocorrido em 8/11/99, atento o disposto no art.º 521º-A do Código de Processo Civil, nada impedia o apelante de, face à alteração da lei, alterar em conformidade o rol de testemunhas, de modo a ficar em condições de provar tudo o que, perante o novo quadro normativo, se lhe afigurasse necessário”. E, expressamente sobre a questão controvertida, aí se disse que, “quanto às possibilidades de o recorrente carrear para o processo a matéria de facto tida por necessária e requerer os meios de prova convenientes, a alteração legislativa nenhum prejuízo lhe trouxe. Efectivamente, nem o recorrente aponta, nem se vê, que outros factos, para alem dos alegados, poderia ter invocado ou que outros meios de prova, para além dos indicados, poderia ter requerido. Ao que acresce, no que respeita aos meios de prova, que ao recorrente foi dada a possibilidade, após a anulação do primeiro julgamento, já na vigência da Lei n.º 21/98, ao ser cumprido o disposto no art. 512.º do Código de Processo Civil, de apresentar novo rol de testemunhas e requerer outras provas, faculdade de que não fez uso.
[§] Não houve, pois, frustração de quaisquer expectativas do recorrente, para alem das resultantes da alteração legislativa, a que sempre se está sujeito”.
Também o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão recorrido supra transcrito, fundou a sua decisão num juízo prudencial que teve por ratio essendi
– e decidendi – o facto de a aplicação da Lei n.º 21/98 não afectar o direito de defesa do recorrente. Aí se afirmou expressamente que “após a anulação do primeiro julgamento, já na vigência daquela Lei [n.º 21/98], ao ser cumprido, de novo, o art. 512.º do C. P. Civil, foi dada ao R. a possibilidade de apresentar novas testemunhas e requerer outras provas, faculdade de que não fez uso”.
Decorre assim do exposto que, como afirmou o Ministério Público junto a este Tribunal, a norma questionada pelo recorrente não foi aplicada com o exacto sentido que o recorrente lhe conferiu e que entendeu contrario à Constituição, porquanto a aplicação do regime decorrente do artigo 1871.º, n.º
1, al. e) do Código Civil – ex vi Lei n.º 21/98 –, não ocorreu num momento em que já tivesse decorrido a fase de proposição de provas, uma vez que a decisão recorrida louvou, neste ponto, a sua ratio decidendi precisamente no facto de o recorrente ter disposto da possibilidade de oferecer as provas que entendesse necessárias, face à eventualidade de passar a incidir sobre ele o ónus de ilisão da presunção criada pela lei n.º 21/98.
10. Afirma, porém, o recorrente, em resposta à questão prévia suscitada, que “a interpretação normativa aqui questionada é a definida pelo recorrente (não sendo invalidada pelo facto do S.T.J. ter considerado também uma nova notificação para efeitos do art. 512.º apenas a propósito de um quesito novo cuja prova não cabia ao réu)”, pelo que “(…) nada impede considerar tal interpretação restringida ao momento da contestação e do saneamento do processo, dada a absoluta irrelevância
(face ao disposto no art. 489.º do C.P.C.) do momento de proposição de provas, no sentido normativo do entendimento questionado.
Tais argumentos, contudo, não procedem.
Em primeiro lugar, porque o requerimento de interposição de recurso limita o objecto do recurso de constitucionalidade às normas nele indicadas (cf. artigo
684º n.º2 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, conjugado com o n.º1 do artigo 75º-A desta Lei), e, ainda que o objecto do recurso possa ser restringido em sede de alegações (cf. artigo 684º n.º 3 do Código de Processo Civil), uma vez produzidas estas, aquele fica decisivamente delimitado pelo recorrente, pelo que, nestes termos, a resposta à “questão prévia” não constitui momento processualmente idóneo para proceder a uma nova delimitação do recurso de constitucionalidade, que, no caso, não constituiria sequer uma restrição do objecto do recurso relativamente a uma norma aí indicada, mas sim uma verdadeira alteração da norma anteriormente questionada.
Como se afirmou no Acórdão n.º 215/02, ainda que a propósito de um problema não coincidente, mas onde existe uma forte analogia substancial com o caso dos autos, “o objecto do recurso é fixado pelo respectivo requerimento, não podendo aceitar-se a inclusão de outra(s) norma(s) no âmbito do recurso, diversas das referidas no respectivo requerimento, aproveitando para tal a resposta ao convite previsto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional. Como se salientou no Acórdão n.º 20/97 (publicado no DR, II série, de 1 de Março de 1997), ‘existe uma relação de complementaridade – que não de substituição – entre o requerimento de recurso e a intervenção processual em cumprimento de despacho proferido ao abrigo do n.º 5 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional (...). O que não pode é o recorrente aditar ao conjunto de normas indicadas no requerimento de interposição do recurso um outro conjunto de normas. Tal como nas alegações de recurso se não pode ampliar o seu objecto, não é legítimo fazer-se tal ampliação a pretexto do suprimento de deficiências do requerimento. Aliás, outro entendimento equivaleria a transformar o requerimento de interposição do recurso numa mera formalidade, que acarretaria tantas mais vantagens quanto mais vaga fosse, na medida em que se adiava a delimitação do objecto do recurso bem para lá do prazo de apresentação deste’. (…) Não é, pois, aceitável que aproveite a resposta a um convite para indicar este enunciado preciso, destinado apenas a complementar as indicações constantes do requerimento de recurso, para, diferentemente do que se pedia, indicar normas diversas, que pretende ver também apreciadas pelo Tribunal Constitucional”.
Depois, porque, conquanto se possa considerar, atenta a sequência normativa das fases processuais, que, na interpretação adoptada pelo tribunal recorrido, quando relevou como determinante, sob o prisma da constitucionalidade da aplicação da lei nova, o momento normativo de instrução probatória do processo, estaria implícita a dimensão normativa relativa aos momentos da apresentação dos articulados e do saneamento do processo, o certo é que aquele segmento normativo relativo ao momento da apresentação e produção das provas constitui uma outra dimensão normativa completamente diferente, além de um mais, da que o recorrente questionou sub especie constitucionis, pois que visa a demonstração dos elementos de facto em que as partes fundam, em concreto, a tutela que demandam no processo, seja para o Autor, seja para o Réu, sendo, assim, uma fase verdadeiramente essencial e crucial na sua economia normativa.
E disso se apercebeu, clarividentemente, o recorrente, pelo menos, até à resposta dada à questão prévia suscitada pelo Ministério Público – até então, o problema fundamental sempre esteve, para ele, na impossibilidade de reacção processual-probatória. Daí que não tenha sentido vir agora defender a
“absoluta irrelevância (face ao disposto no art. 489.º do C.P.P.) do momento de proposição de provas”.
11. Por outro lado, apura-se da decisão do Supremo Tribunal de Justiça que existe uma outra ratio decidendi que, constituindo igualmente fundamento da decisão recorrida, não está incluída no objecto do presente recurso de constitucionalidade. Como se afirma na decisão recorrida, a propósito da recusa do recorrente à realização de exame hematológico – recusa essa tida por manifestamente insubsistente –, “segundo o disposto no n.º 2 do art. 519.º do C. P. Civil, aqueles que recusem a colaboração devida para a descoberta da verdade serão condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis. Se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do art. 344.º do Cód. Civil. Ou seja: a recusa implicará para o R. o ónus de demonstrar que não é pai”.
Ora, a existência, em concreto, deste outro fundamento normativo decisório não foi questionada pelo recorrente sob o prisma da constitucionalidade, o que implica, no caso presente, que, mesmo conhecendo do objecto do recurso interposto, a decisão do Tribunal Constitucional não demandaria a alteração da decisão recorrida, posto que, o Supremo Tribunal de Justiça fez decorrer da recusa de realização do exame hematológico o ónus do recorrente provar que não é o pai, atendendo ao disposto no artigo 344.º, n.º 2, do Código Civil: “Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei do processo mande aplicar à desobediência ou às falsas declarações”.
Assim sendo, e subscrevendo o entendimento desde cedo firmado neste Tribunal [cf. Acórdão n.º 44/85, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º vol., págs. 403, onde se estabeleceu que “o recurso só deve ter seguimento quando a eventual decisão da questão de constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional puder implicar com a decisão recorrida. O recurso tem sempre por objecto uma decisão judicial e visa sempre alterar a decisão recorrida; logo, ele só tem sentido quando a decisão que o Tribunal Constitucional deva tomar sobre a questão da constitucionalidade puder implicar alteração da decisão recorrida. Isto é, o recurso só deve prosseguir, se se admitir que, quanto à questão de fundo, a decisão não permaneceria incólume caso o Tribunal Constitucional viesse a alterar o juízo do Tribunal recorrido quanto
à questão da constitucionalidade. Ao invés, se é seguro que a decisão quanto ao fundo ficaria intocada mesmo que o Tribunal viesse a alterar o juízo do tribunal recorrido sobre a questão de constitucionalidade, então esta é, em princípio, irrelevante e o recurso não deve ter lugar”], igualmente o facto de, no caso, uma eventual decisão de inconstitucionalidade não ser susceptível de se projectar sobre a decisão recorrida – alterando-a –, sempre existiria, também, obstáculo a que este Tribunal Constitucional conhecesse do recurso.
C - Decisão
12. Destarte atento o exposto, este Tribunal Constitucional decide julgar procedente a questão prévia suscitada pelo Ministério Público e, em consequência, não tomar conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, com 15 UC de taxa de justiça.
Lisboa, 7 de Novembro de 2003 Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos