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Processo n.º 583/02
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional,
I. Relatório
1.A., devidamente identificado nos autos, foi condenado, por acórdão proferido em 8 de Janeiro de 2001, no Círculo Judicial de Évora, pela prática de um crime de falsificação de documentos (artigo 228º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 2 do Código Penal de 1982), na pena de dois anos de prisão e quarenta e cinco dias de multa, à taxa diária de mil escudos, e, pela prática de um crime de burla qualificada (artigos 313º, n.º 1 e 314º, alínea c) do Código Penal de 1982), na pena de quatro anos de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de cinco anos de prisão e quarenta e cinco dias de multa, à taxa diária de mil escudos, com trinta dias de prisão em alternativa.
2.Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, arguindo a nulidade do acórdão por alegadamente se ter baseado em factos (intervenção de um “terceiro personagem”, de nome B.) não constantes nem da acusação nem do despacho de pronúncia e pedindo a absolvição do recorrente ou o reenvio do processo para novo julgamento. Nas conclusões, referiu apenas (fls. 595 verso dos autos), quanto a questões de constitucionalidade relacionadas com esses factos:
“(...)
7º Que nada se comunicou, e, portanto, nada se concedeu para preparar a defesa quanto a esses factos novos, e, imprevistos, de grande importância, pois foram usados para se condenar o recorrente Termos em que
8º - Se violou frontalmente o disposto no art.º 358 do Cód. Proc. Penal, impedindo-se, assim, o recorrente de exercer os princípios constitucionais do contraditório e da salvaguarda de uma defesa eficaz.
(...)”
No texto das alegações, antes de analisar detidamente a matéria de facto, sustentando ter existido alteração não substancial dos factos, disse, quanto a questões de constitucionalidade (fls. 555 e verso), apenas o seguinte:
“(...) Como se sabe, ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL é aquela que, representando embora uma modificação dos factos que constam da pronúncia, não tem por efeito a imputação de um crime diverso, nem tão-pouco a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Foi o que sucedeu no presente caso. Pelo que haveria lugar à aplicação do disposto no art.º 358º do Cód. Proc. Penal, que, como diz Maia Gonçalves, in Cód. Proc. Penal Anot. – 1998 – 9ª edição, é ‘UM IMPERATIVO DO PRINCÍPIO CONTRADITÓRIO E DA SALVAGUARDA DE UMA DEFESA EFICAZ POR PARTE DO ARGUIDO’, princípios que têm consagração constitucional.
(...)”
Em vista do processo, o Ministério Público no Tribunal da Relação de Évora pronunciou-se no sentido de que “aquilo – matéria fáctica – que o recorrente considera como alteração não substancial não tem qualquer relevo neste processo”, tendo os arguidos sido condenados
“pelos factos que se encontravam gizados na pronúncia. A circunstância de poder estar em causa um eventual 3º personagem não teve qualquer interferência na decisão, maxime a nível de escolha ou medida da pena. Tal circunstância foi perfeitamente irrelevante e indiferente ao desfecho dos presentes autos, com condenação dos arguidos. Foi ordenada extracção de certidão do acórdão (v. fls.
542) a fim de ser autuada relativamente ao dito B..
(…)”
Respondendo a este parecer, nos termos do artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recorrente veio afirmar a semelhança do presente caso com o decidido pelo Acórdão n.º 674/99, do Tribunal Constitucional, sendo, porém, que, segundo alegou:
“(…) no presente caso, os factos não só não constavam a acusação e pronúncia, como também de qualquer documento anexo para que a pronúncia remetesse. Efectivamente, No caso dos autos, o respondente diante do Acórdão proferido, foi inteiramente surpreendido com um facto absolutamente novo que nele se considera, e com o qual nunca fora antes confrontado, nem na acusação, nem na pronúncia. Mais, Um facto jamais mencionado em qualquer parte do processo, totalmente alheio ao mesmo, por jamais referido por quem quer que fosse. Como seja, O de ter praticado o crime juntamente com B.. Mais, De o ter praticado, em grande parte, através do mesmo B.. Portanto, Através de um modus operandi totalmente diferente do descrito na pronúncia. Ou seja, Com mais uma pessoa, e, através, em grande parte, dessa mesma pessoa, o já mencionado B..” Assim, defendeu que, no presente caso, tal como no do citado acórdão do Tribunal Constitucional, deveriam ser julgadas
“inconstitucionais as normas contidas nos artigos 358º e 359º do CPP, quando interpretados no sentido de se não entender como alteração dos factos – substancial ou não substancial – a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de execução do crime, que, embora constantes ou decorrentes dos meios de prova juntos aos autos, para os quais a acusação e a pronúncia expressamente remetiam, no entanto aí se não encontravam especificadamente enunciados, descritos ou discriminados, por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32º, n.ºs 1 e 5 da Constituição da República.”
Por acórdão de 11 de Junho de 2002, o Tribunal da Relação de Évora decidiu negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão da 1ª instância, dizendo, quanto à pretendida alteração dos factos:
“Da nulidade do acórdão por alteração não substancial dos factos: O acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos:
- «Tal produto veio a ser carregado para o veículo pesado de matrícula
---------, pertença da sociedade de transportes ‘C.’, contratada para tanto, pelos arguidos, através de B., que de toda a actividade se encontrava a par, tendo ficado encarregue de requisitar o transporte e efectuar o respectivo pagamento em nome de ‘D.’, tal e qual viria a ocorrer»
- «Agiram ambos deliberada, livre e conscientemente, mediante prévio acordo e em conjugação de esforços, juntamente com o supra referido B.» Entende o recorrente que estamos perante uma alteração não substancial dos factos descritos na pronúncia, dado que os mesmos não constavam nem da acusação nem da pronúncia, pelo que o tribunal deveria ter dado cumprimento ao disposto no art. 358º do C.P.P.
(...) Em primeiro lugar, importa saber se se verifica uma alteração não substancial dos factos descritos na pronúncia. Como se decidiu no Ac. do S.T.J. de 22.01.97, proc. n.º 1002/96, citado no Código de Processo Penal anotado de M. Simas Santos e M. Leal Henriques, II vol., 2ª ed., pág. 436 ‘Não há alteração substancial ou não substancial dos factos da acusação ou da pronúncia, quando os factos referidos se traduzem em meros factos concretiza[dores] da actividade criminosa do arguido sem repercussões agravativas ou na estratégia de defesa do arguido’. No mesmo sentido se decidiu no Ac. do S.T.J. de 11 de Novembro de 1992, B.M.J. n.º 421, pg. 309, onde se pode ler a dado passo: ‘... – é que esse facto, como elemento acessório dos actos ilícitos descritos na acusação, poderia, inclusivamente, não constar dessa peça processual sem que, de tal circunstância, resultasse qualquer efeito para a caracterização da respectiva criminalidade ou da gravidade da conduta’. No caso em apreço, entendemos, salvo melhor opinião, que os factos dados como provados são meros factos concretizadores da actividade do arguido. Mas ainda que se entenda que se verifica uma alteração não substancial dos factos, a mesma não tem relevo para a decisão da causa, e, consequentemente, não havia que comunicar ao arguido tal alteração, para os fins e termos do n.º 1 do art.º 358º do Código de Processo Penal. Neste sentido, cfr. Ac. do STJ de 18.06.97, proc. n.º 9/97, citado no Código de Processo Penal anotado de Leal Henriques e Simas Santos, vol. II, 2ª ed., pág.
438, onde se decidiu:
‘1 – Tendo o Tribunal dado como provados determinados factos que são meras concretizações dos constantes da acusação, irrelevantes do ponto de vista da dosimetria da pena e de importância meramente contextual, não se lhe impunha que comunicasse aos arguidos tais alterações, para os fins e termos do n.º 1 do art.º 358º do C.P.P.’ No caso em apreço, os arguidos foram condenados pelo factos constantes da acusação e da pronúncia e a circunstância de se ter dado como provada a existência de uma 3ª pessoa foi perfeitamente irrelevante e indiferente, nomeadamente a nível da escolha ou medida da pena. Não havia, pois, que dar cumprimento ao disposto no art.º 358º, n.º 1, do C.P.P., não tendo sido violados os princípios do contraditório e de defesa. Consequentemente, não se verifica a nulidade prevista no art.º 379º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Penal.”
3.O arguido veio interpor recurso de constitucionalidade deste acórdão, “ao abrigo das alíneas b) e i) do art.º 70 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro”, pretendendo ver apreciada a norma do artigo 358º do Código de Processo Penal,
“Mais concretamente, se o art.º 358º do Cód. Proc. Penal, quando interpretado no sentido de não se entender como alteração não substancial dos factos a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de execução do crime jamais descritos ou narrados na acusação ou na pronúncia viola as garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório consagrados nos n.ºs 1 e 5 do art.º 32º da Constituição da República Portuguesa.” Segundo o recorrente, o acórdão recorrido aplicou esta norma, “em absoluta e total desconformidade com o decidido pelo Douto Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 674/99.” No Tribunal Constitucional, o recorrente foi notificado para produzir alegações, em despacho do relator em que se logo se suscitou, porém, “a questão prévia do não conhecimento do recurso por falta de aplicação da norma impugnada como ratio decidendi pelo Tribunal recorrido”, por na decisão deste se poder ler que, ainda que tenha existido alteração não substancial dos factos descritos na acusação, esta foi “perfeitamente irrelevante e indiferente”.
Nas suas alegações, o recorrente defendeu que a interpretação impugnada foi aplicada pelo acórdão recorrido, “constituindo a razão de ser da decisão proferida”, e que tal interpretação é inconstitucional, concluindo, designadamente, que
“(...)
5º - O arguido elaborou o requerimento de abertura de instrução, ofereceu a contestação, indicou os meios de prova, e realizou-se a totalidade da audiência de julgamento sem, alguma vez, ter sido confrontado ou inquirido acerca da participação do B. no crime por que foi condenado, e, dos factos que, afinal, e, de surpresa, se dizem, no acórdão, praticados por aquele em nome do recorrente. Enfim,
6º - Foi acusado, e defendeu-se, de ter praticado um crime juntamente com o co-arguido E., e só eles, terem desenvolvido a totalidade da actividade necessária para a consumação desse mesmo crime, sem a interferência de qualquer outra pessoa, e disto se defendeu.
7º - Acabou condenado por um crime praticado não só por ele e pelo co-arguido E., mas também pelo referido B., que de toda a actividade se encontrava a par, tendo mesmo praticado actos relevantes em nome do ora recorrente, do que, como é evidente, jamais se defendeu. Ou seja,
8º - Foi acusado, e defendeu-se de um crime praticado por duas pessoas.
9º - E condenado pelo mesmo crime mas praticado por três pessoas, passando parte da actividade que segundo a acusação havia sido desenvolvida directamente pelo ora recorrente, a ser exercida, segundo a decisão de 1ª instância, por esse terceiro autor, até então desconhecido, em nome do ora recorrente, do que jamais se defendeu.
10º - Procedeu, assim, a decisão de 1ª instância, e considerando o que constava da acusação, a uma alteração profunda do modo de execução do crime, sendo certo que o recorrente foi impedido de se defender de tal alteração, por nunca a mesma lhe ter sido comunicada. Chegados aqui,
11º - O Douto Acórdão recorrido, mau grado estarem em causa factos atinentes ao modo de execução do crime, considerou e decidiu que os mesmos não constituíam qualquer alteração não substancial dos factos, mas mesmo que a constituíssem tal alteração não tinha relevo para a decisão da causa.
12º - Tendo, assim, concluído e decidido que não havia que comunicar ao arguido tal alteração, para os fins e termos do n.º1do art. 358º do Cód. Proc. Penal. Temos, assim, que,
13º - O Douto Acórdão recorrido interpretou, e, aplicou o art. 358º do Cód. Proc. Penal no sentido de permitir a condenação do arguido pela prática do crime de que vinha acusado, mas através da descrição de um modus operandi diverso, resultante da alteração dos factos introduzida pela decisão condenatória. Ou, concretizando,
14º - O Douto Acórdão recorrido, na interpretação efectuada, e, aplicada, não considerou como alteração não substancial as alterações dos factos que configuram um diverso modo de comissão ou prática do mesmo crime, relativamente ao que vinha configurado na acusação ou pronúncia. E, por isso mesmo,
15º - Ou melhor, por essa única razão não concedeu provimento ao recurso, declarando a nulidade do Douto Acórdão de 1ª Instância, como se impunha, por incumprimento do art.º 358º do Cód. Proc. Penal. Sucede que,
16º - A interpretação adoptada, e, aplicada pelo Douto Acórdão recorrido, quanto ao mencionado art.º 358º, se mostra totalmente desconforme com a Constituição da República Portuguesa, sendo inconstitucional, por manifesta violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, consagrados nos n.ºs 1 e 5 do art. 32º da referida Constituição. Na realidade,
17º - Ao permitir a sua condenação, sem que ao recorrente fosse dada a mínima hipótese de se defender dos factos novos, e, imprevisíveis surgidos no Acórdão, retirou-se ao recorrente toda a possibilidade de proceder a uma defesa eficaz pela reorganização da mesma face à alteração que sempre desconheceu. Termos em que,
18º - Se deve declarar inconstitucional o art. 358º do Cód. Proc. Penal, na interpretação efectuada e aplicada pelo Douto Acórdão recorrido.
19º - Revogando-se o mesmo, afim de ser reformado em conformidade com a Constituição da República Portuguesa, quanto à interpretação do art.º 358º do Cód. Proc. Penal, e, consequentemente, declarar a nulidade da decisão da 1ª Instância, por incumprimento do mencionado artº358º, concedendo-se, assim, ao recorrente o exercício dos direitos de defesa que a Constituição da República lhe concede.
20º - Decidindo-se, como decidiu, o Douto Acórdão recorrido violou, além do mais, o disposto nos arts. 358º do Cód. Proc. Penal, e, o estipulado nos n.ºs 1 e 5º do art. 32º da Constituição da República Portuguesa.”
Nas suas contra-alegações, o Ministério Público defendeu o não conhecimento do recurso, concluindo:
“1 – Não se verificando os pressupostos do recurso interposto pelo arguido, fundado cumulativamente nas alíneas b) e i) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º
28/82, não deve conhecer-se do respectivo objecto.
2 – Na verdade, a decisão recorrida não aplicou norma de direito internacional convencional em contradição com a precedente jurisprudência do Tribunal Constitucional.
3 – E – no que se reporta ao recurso da alínea b) – não interpretou a norma constante do artigo 358º do Código de Processo Penal com o sentido que lhe atribui o recorrente, de permitir a condenação com base numa inovatória consideração de factos atinentes ao modo de execução do crime de burla e falsificação que ditou a condenação.
4 – Considerando-se expressamente que os factos ‘novos’ são tipicamente irrelevantes, surgindo como meramente contextuais ou instrumentais, nada tendo a ver com o ‘processo fraudulento’ que caracteriza o crime de burla e com o processo causal que determina o prejuízo patrimonial para o ofendido.” Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos
4.O presente recurso foi intentado cumulativamente ao abrigo do disposto nas alíneas b) e i) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Esta alínea i) dispõe que cabe recurso para este Tribunal das decisões dos tribunais que “recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional.” No presente caso não está, porém, em causa – nem sequer foi invocada pelo recorrente – qualquer contrariedade a uma norma de direito internacional convencional, que tenha fundado, quer uma recusa de aplicação de uma norma legal, quer a sua aplicação em contradição com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional. Não poderia, pois, tomar-se conhecimento do recurso interposto ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por manifesta falta de verificação dos seus pressupostos.
O recorrente invoca, porém, a contradição da decisão recorrida com um anterior acórdão do Tribunal Constitucional – o Acórdão n.º 674/99, publicado no Diário da República [DR], II série, de 25 de Fevereiro de 2000 –, constituindo tal contradição um dos seus argumentos centrais, destacado no requerimento de recurso. Poderá, pois, admitir-se que tenha pretendido antes interpor recurso ao abrigo também da alínea g) – e não i) – do n.º 1 do citado artigo 70º, nos termos da qual cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que “apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional (...) pelo próprio Tribunal Constitucional”.
E, admitindo esta hipótese, importa apurar se estão verificados os requisitos para se poder tomar conhecimento deste recurso, interposto ao abrigo das referidas alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
5.Como se sabe, segundo o nosso sistema de fiscalização concentrada de constitucionalidade, apenas as normas são objecto de fiscalização concentrada em via de recurso (cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
18/96, publicado no DR, II Série, de 15 de Maio de 1996, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra,
1998, p. 821), com exclusão dos actos de outra natureza (políticos, administrativos, ou judiciais, em si mesmos). E, como também é sabido, para se poder conhecer do recurso de constitucionalidade interposto nos termos das alínea b) e g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, torna-se necessário, além do mais, que a norma ou dimensão normativa impugnada tenha sido aplicada, como ratio decidendi, pelo tribunal recorrido.
Este requisito – comum tanto ao recurso previsto na alínea b), como ao previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – resulta do facto de a intervenção do Tribunal Constitucional em sede de recurso se dar para reapreciação ou reexame de uma decisão de uma questão de constitucionalidade que surgiu incidentalmente num processo concreto, e, portanto, com uma natureza instrumental em relação à decisão do mesmo processo. Só, na verdade, se a norma ou dimensão normativa (isto é, uma certa interpretação do preceito) cuja apreciação sub specie constitutionis é requerida a este Tribunal tiver sido aplicada como ratio decidendi pelo Tribunal recorrido
é que a decisão sobre a questão de constitucionalidade se poderá projectar com utilidade no processo, confirmando essa decisão ou conduzindo à sua reformulação. Caso contrário, qualquer que fosse a decisão sobre a questão de constitucionalidade, ela não poderia alterar a decisão recorrida, projectando-se utilmente no processo.
E o mesmo se deve dizer se na decisão recorrida se encontrar, além da norma cuja constitucionalidade é impugnada, outro fundamento por si só bastante para a ela chegar – outra ratio decidendi. Também neste caso não deverá o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade, atenta a natureza instrumental deste e a impossibilidade de a sua decisão vir a alterar o decidido pelo tribunal a quo.
6.Como se pode ler no requerimento de interposição do presente recurso, com este pretende ver-se apreciada pelo Tribunal Constitucional a constitucionalidade do artigo 358º do Código de Processo Penal, “quando interpretado no sentido de não se entender como alteração não substancial dos factos a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de execução do crime jamais descritos ou narrados na acusação ou na pronúncia.” É esta também a dimensão interpretativa do citado artigo cuja desconformidade constitucional o recorrente suscitou perante o tribunal a quo, e cuja alegada aplicação estará em desconformidade com o anterior decidido sobre ela pelo Tribunal Constitucional, no referido aresto.
Consultando o acórdão do Tribunal da Relação de Évora recorrido, facilmente se conclui, porém, que este não aplicou o artigo 358º do Código de Processo Penal com o sentido impugnado pelo recorrente, e que este pretende ver apreciado pelo Tribunal Constitucional.
Na verdade, segundo a decisão recorrida, os factos em questão nada têm a ver com o modo de execução dos crimes de burla e de falsificação de documentos pelos quais o recorrente foi condenado.
Desde logo, e como salienta o Ministério Público nas suas alegações, não se consegue divisar como pode a eventual “existência de uma co-responsabilidade de um terceiro, traduzida em o contrato de transporte – referente ao veículo em que foi carregada a cortiça obtida dos lesados, mediante a manobra fraudulenta dos arguidos – ter sido celebrado através de B.”, relevar para o processo ou manobra fraudulenta que constitui elemento típico do crime de burla qualificada. As circunstâncias em causa, atinentes à intervenção de uma terceira pessoa, nada têm, pois, a ver com o modo de execução dos crimes pelos quais o arguido foi condenado.
E, de qualquer modo, tais circunstâncias foram expressamente qualificadas, no acórdão recorrido, como indiferentes e irrelevantes para a condenação do arguido, incluindo a escolha e a medida da pena. Foram, assim, consideradas
“meros factos concretizantes da actividade criminosa do arguido”, tendo a
“circunstância de se ter dado como provada a existência de uma 3ª pessoa” sido qualificada como “perfeitamente irrelevante e indiferente, nomeadamente a nível da escolha ou medida da pena”. A factualidade em questão foi, pois, considerada irrelevante, não só ao nível da tipicidade, mas também da escolha e da medida da pena, sem qualquer possível repercussão agravativa ou na estratégia de defesa do arguido – e, seguramente, não foi, nem pode ser, considerada como atinente ao modo de execução dos crimes de burla e de falsificação de documentos, pelos quais aquele foi condenado.
Tem, pois, de concluir-se que o artigo 358º do Código de Processo Penal não foi aplicado, como ratio decidendi, com o sentido ou na interpretação impugnados, pelo que não pode tomar-se conhecimento do presente recurso.
III. Decisão Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do presente recurso e condenar o recorrente em custas, com 10 (dez) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 12 de Novembro de 2003
Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos