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Processo nº 350/02
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, proferiu o Relator a seguinte DECISÃO SUMÁRIA:
'1. F..., com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional, ‘ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artº 280º da Constituição da República Portuguesa e da alínea b) do nº 1 do artº
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro’, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (5ª Secção), de 11 de Abril de 2002, pretendendo que ‘seja apreciada a constitucionalidade das normas constantes dos artºs 71º e 72º do Cód. Penal,
343º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, 32º nºs 1 e 2 da CRP e 4º do DL 401/82, de 23 de Setembro, na interpretação que lhes foi dada por esse Venerando Tribunal, no acórdão recorrido’ e esclarecendo que a ‘inconstitucionalidade das referidas normas foi suscitada pelo recorrente no pedido de reforma do acórdão proferido pelo S.T.J., sendo certo que o apontado vício apenas se suscitou com a prolacção do aresto de que ora se recorre e não antes’.
2. Do teor do requerimento acabado de transcrever ressalta que, embora não venha identificado o acórdão pretensamente recorrido, ele só pode ser aquele de 11 de Abril de 2002, que, julgando ‘na improcedência da reclamação’, negou ‘o pedido de reforma ‘apresentado pelo recorrente ao abrigo do disposto na al. a) do nº 2 do artº 669º do C.P.C., aplicável ex vi do artº 4º do C.P.P.’, do anterior acórdão que, ‘negando provimento ao recurso’, confirmou a decisão condenatória das instâncias (‘na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão’ aplicada ao recorrente, pela ‘prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artº 21º, nº 1, do Dec.-Lei nº 15/93, de 22/01, com referência às tabelas anexas I–A e I-B’). E não pode ser aquele anterior acórdão de 24 de Janeiro de 2002, desde logo pela simples razão de que o recorrente não confrontou o Supremo Tribunal a quo com nenhuma questão de
(in)constitucionalidade, limitando-se a invocar na motivação que o acórdão da Relação ‘violou o disposto nos artºs 71º do Código Penal e 374º nº 2 do C.P.P., incorrendo, ainda, na nulidade prevista na alínea c) do artº. 379º deste último diploma legal’. Ora, nesse acórdão de 11 de Abril de 2002 não foi aplicada nenhuma das normas identificadas pelo recorrente no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, pois limitou-se a apreciar ‘a pretensa ‘reforma’’ do anteriormente decidido, aliás, considerando, à partida, que tal pedido ‘não logra previsão processual no diploma adjectivo subsidiário do Código de Processo Penal já que este, prevendo as possibilidades de ‘correcção da sentença’ – artº
380º - não alberga neste ponto qualquer omissão legislativa, logo a tornar ilegítima a invocação da disciplina do artigo 4º da lei adjectiva penal’. E depois, afastando-se ‘de todo o modo energicamente’, qualquer ‘pretenso erro de julgamento’ – ‘há que ter bem presente que todo o acto que importe intromissão no conteúdo do julgado, ainda que a pretexto de simples correcção da sentença, está vedado ao julgador’ – conclui-se no acórdão ‘quanto à sorte do pedido de reforma’: ‘(...)o requerente discorda do modo como o Supremo Tribunal decidiu o seu recurso, enfim do modo como aplicou o direito, o qual tem como errado. E culmina o seu pedido com a reposição da sua pretensão central recursiva, qual seja, como se disse, a aplicação a final ao recorrente, de um a pena situada entre os dois e os três anos de prisão, a qual deverá ser suspensa na sua execução por um período não inferior a quatro anos. Enfim, um pedido de satisfação impossível para um tribunal que em julgamento já desatendeu tal pretensão, e que mesmo sendo o Supremo Tribunal de Justiça esgotou o seu poder jurisdicional. Tanto mais que, lendo-se o aresto reclamado, facilmente se apreende, não só o seu conteúdo cristalino, como o inteiro sentido da deliberação que encerra e que corresponde, nos seus precisos termos, ao que estava no pensamento do Tribunal’. Este, pois, o quadro normativo processual em que se movimentou o acórdão. Falta, assim, um pressuposto processual específico do tipo de recurso de que se serviu o recorrente, o da aplicação de norma arguida de inconstitucionalidade durante o processo. Em todo o caso, sempre se dirá que seria inoportuno o momento processual que o recorrente adianta ter sido aquele em que suscitou (e terá mesmo suscitado?) a questão de inconstitucionalidade – o do ‘pedido de reforma do acórdão proferido pelo S.T.J.’-, pois podia perfeitamente ter feito a suscitação antes de proferido esse acórdão, cumprindo a exigência do nº 2 do artigo 72º da Lei nº
28/82 (de modo processualmente adequado para obrigar o tribunal a pronunciar-se). Se, como se diz no acórdão de 11 de Abril de 2002, a ‘pretensão central recursiva’ era ‘a aplicação afinal ao recorrente, de uma pena situada entre os dois e os três anos de prisão, a qual deverá ser suspensa na sua execução por um período não inferior a quatro anos’, e esta matéria tinha relação com as normas identificadas pelo recorrente, então ele devia ter confrontado o Supremo Tribunal de Justiça com as questões de inconstitucionalidade que, na sua perspectiva, seriam pertinentes com essa tal pretensão, mas não o fez aquando da apresentação da motivação. Com o que não pode tomar-se conhecimento do presente recurso.
3. Termos em que, DECIDINDO, não tomo conhecimento do recurso e condeno o recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em cinco unidades de conta'.
B. Dela veio, 'ao abrigo do disposto no artº 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual redacção, apresentar RECLAMAÇÃO', o recorrente, sustentando que é 'claro que a constitucionalidade das normas em causa no presente recurso foi suscitada durante o processo, no momento próprio e pelo
único meio processual disponível, e referiu-se a uma decisão que se apropriou de outra anterior, que aplicou normas cuja inconstitucionalidade, na interpretação que lhes foi dada, é por demais evidente', para o que adiantou a seguinte argumentação que, por comodidade, se transcreve:
'O ora recorrente interpôs recurso da decisão proferida pela 5ª Vara Criminal de Lisboa, por entender que a mesma padecia da nulidade prevista nos artºs 374º nº
2 e 379º nº 1 al. a), ambos do C.P.P. e por discordar da medida concreta da pena que lhe foi aplicada. Inconformado com o acórdão proferido pela 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa interpôs o recorrente novo recurso, agora para o S. T .J . , por entender que o acórdão proferido por aquele Venerando Tribunal incorreu na nulidade prevista na al. c) do artº 379º do C.P.P. e interpretou incorrectamente a norma prevista no artº 4º do Dec.-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro). Por acórdão de 24 de Janeiro de 2002, veio o S.T.J. suscitar, pelo menos, duas questões que nunca antes se haviam suscitado no âmbito dos presentes autos:
- a da tendencial não aplicação da atenuação especial da pena, prevista no artº
4º do Dec.-Lei nº 401/82, quando a pena de prisão aplicada for superior a dois anos e;
- a da postura processual do arguido, ora reclamante, manifestada, de forma exuberante quanto censurável, quando a dado passo do acórdão se diz: ‘Aliás o silêncio (no sentido de não confissão dos factos a que se remeteu em julgamento, em nada o revela cooperante com a Justiça nomeadamente, no que tange à interiorização da ilicitude do facto através v. g. da confissão’. Ora, a interpretação que o S. T .J . fez das normas previstas, designadamente, no aludido artº 4º do Dec.-Lei nº 401/82 e no artº 343º nº 1 do C.P.P., colidem, no entender do recorrente, flagrantemente com os comandos constitucionais vertidos no artº 32º nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa. Contudo, como já se disse, tais fundamentos, invocados pelo S.T.J . para rejeitar o recurso interposto pelo arguido, só foram trazidos à colação pelo próprio S. T.J., sendo a sua decisão irrecorrível. Nenhum outro mecanismo processual restava ao recorrente que não o previsto no artº 669º nº 2 al. a) do C.P.C. Mecanismo que, contrariamente ao sustentado pelo S. T.J., entendemos ser subsidiariamente aplicável, por via do disposto no artº 4º do C.P.P., uma vez que este último diploma não prevê um outro semelhante ao da lei processual civil e porque seria inaceitável, no âmbito do direito penal - em que estão em jogo direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos - inexistir a possibilidade de requerer a reforma de decisões, quando as mesmas incorrem em manifesto erro na aplicação do direito, como sucedeu, a nosso ver, no caso vertente.
Só assim o recorrente podia discutir as questões suscitadas no presente recurso, pois que as demais instâncias nunca se pronunciaram sobre as mesmas. Não se concorda, pois, com a opinião vertida no despacho reclamado, segundo a qual o recorrente ‘podia perfeitamente ter feito a suscitação antes de proferido’ o acórdão do S.T.J., de 24. 01. 2002. Muito pelo contrário, ao recorrente está vedado apontar vícios não suscitados às decisões de que recorre, seja por uma questão de economia processual, seja porque o recorrente não tem o dom de adivinhar os fundamentos da decisão a proferir pela última instância jurisdicional do país. Assim, entende o ora reclamante que suscitou a questão da constitucionalidade da interpretação das normas em causa no único momento oportuno e através do único meio processual de que dispunha. Refira-se, ainda, que, apesar do presente recurso ter sido interposto do acórdão proferido pelo S.T.J., em 11. 04. 2002, isso não significa, no entender do reclamante, que tal recurso não tenha sido interposto de decisão que aplicou norma arguida de inconstitucionalidade durante o processo.
Na verdade, o referido acórdão, ao indeferir o pedido de reforma interposto pelo recorrente, independentemente dos fundamentos com que o fez, apropriou-se necessariamente do conteúdo do acórdão de 24. 01.2002. Apropriação que resulta, de resto, bem clara do trecho que nos permitimos transcrever: ’lendo-se o aresto reclamado, facilmente se apreende, não só o seu conteúdo cristalino, como o inteiro sentido da deliberação que encerra e que corresponde, nos seus precisos termos, ao que estava no pensamento do Tribunal’'.
C. Respondeu o 'representante do Ministério Público junto deste Tribunal', expressando o entendimento de que a 'presente reclamação é claramente improcedente', porquanto:
'2 – Na verdade, e mesmo admitido que o recurso de constitucionalidade interposto se reporta à impugnação do acórdão de fls. 240 e segs., é manifesto que o nele decidido quanto à medida da pena, concretamente aplicável ao arguido, se não pode obviamente configurar como ‘decisão-surpresa’, de conteúdo insólito e imprevisível – e, nessa medida, susceptível de isentar o arguido de suscitar, durante o processo, as questões de constitucionalidade que tivesse por pertinentes acerca das dimensões normativas incidentes sobre a escolha, determinação e medida da pena.
3 – Acresce que, em rigor, a questão suscitada pelo recorrente –e atinente exclusivamente à determinação da pena concretamente aplicável ao arguido – por irremediavelmente ligada a uma concreta e casuística ponderação de todas as circunstâncias do facto e do agente – carece de carácter normativo, não sendo, deste modo, sequer objecto idóneo de um recurso de constitucionalidade'.
D. Cumpre decidir.
É facto, como reconhece o reclamante, que o presente recurso foi 'interposto do acórdão proferido pelo S.T.J. em 11.04.2002', talqualmente se fixou na DECISÃO reclamada, pois, segundo ele, não lhe restava 'outro mecanismo processual (...) que não o previsto no artº 669º, nº 2, al. a) do C.P.C.', para atacar o primitivo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Janeiro de 2002 (e neste, segundo o reclamante, 'a interpretação que o S. T .J . fez das normas previstas, designadamente, no aludido artº 4º do Dec.-Lei nº 401/82 e no artº
343º nº 1 do C.P.P., colidem, no entender do recorrente, flagrantemente com os comandos constitucionais vertidos no artº 32º nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa').
Só que o reclamante não destrói a consideração a que se chegou na DECISÃO reclamada de que falta 'um pressuposto processual específico do tipo de recurso de que se serviu o recorrente, o da aplicação de norma arguida de inconstitucionalidade durante o processo', pois o acórdão recorrido, debruçando-se sobre o tal 'mecanismo processual' de que fala o reclamante, moveu-se no quadro normativo da 'pretensa ‘reforma’' do anteriormente decidido no acórdão de 24 de Janeiro de 2002. Em todo o caso, e admitindo, segundo um critério de bondade, que o presente recurso de constitucionalidade também se reporta àquele aresto – o referido acórdão, 'ao indeferir o pedido de reforma interposto pelo recorrente, independentemente dos fundamentos com que o fez, apropriou-se necessariamente do conteúdo do acórdão de 24. 01.2002', talqualmente se expressa o reclamante, -, a verdade é que, como diz o Ministério Público, 'é manifesto que o nele decidido quanto à medida da pena, concretamente aplicável ao arguido, se não pode obviamente configurar como ‘decisão-surpresa’, de conteúdo insólito e imprevisível', acrescendo que, 'em rigor, a questão suscitada pelo recorrente –e atinente exclusivamente à determinação da pena concretamente aplicável ao arguido – por irremediavelmente ligada a uma concreta e casuística ponderação de todas as circunstâncias do facto e do agente – carece de carácter normativo, não sendo, deste modo, sequer objecto idóneo de um recurso de constitucionalidade'. Nada mais interessa adiantar para concluir que tem de improceder a presente reclamação. E. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação e não se toma conhecimento do recurso, condenando-se o reclamante nas custas, com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta. Lisboa, 3 de Julho de 2002- Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa