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Processo n.º 592/02
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A., B., C. e D. intentaram, em 16 de Abril de 1992, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 822.º do Código Administrativo, recurso contencioso (acção popular) da deliberação de 22 de Janeiro de 1992 da Câmara Municipal de Lisboa, que aprovou o projecto de construção, constante do processo n.º 2102/0B/91, apresentado pela E., para os terrenos envolventes do Cinema --------, deferindo assim o respectivo projecto de licenciamento de obras. Imputaram à deliberação impugnada vício de violação de lei, por ofensa do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 166/70, de 15 de Abril, e no artigo 3.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38 382, de 7 de Agosto de
1951, já que o projecto aprovado excedia o coeficiente máximo de ocupação do solo consentido pelo Regulamento do Plano Geral de Urbanização da Cidade de Lisboa, aprovado pela Portaria n.º 274/77, de 19 de Maio, instrumento de gestão territorial que entendiam ser o aplicável, já que o Plano Morfológico da Avenida da Liberdade, aprovado por despacho do Secretário de Estado do Urbanismo e Habitação, de 22 de Fevereiro de 1974 – conhecido por “Plano Vieira de Almeida”
–, e à luz do qual o projecto foi apreciado, seria ineficaz por falta de publicação no jornal oficial.
A entidade recorrida e a recorrida particular contestaram, propugnando a primeira a rejeição do recurso com base na intempestividade da sua interposição e no carácter meramente confirmativo do acto impugnado e ambas a rejeição do recurso com base na ilegitimidade dos recorrentes (todos eles, à data, Vereadores da Câmara Municipal de Lisboa, o que, segundo parecer de F. e G., os impediria de impugnar as deliberações desse
órgão, invocando o direito de acção popular), ou, se assim se não entendesse, a improcedência do recurso, por inexistência do vício arguido.
Após resposta dos recorrentes, foram, por despacho de 11 de Março de 1993, julgadas improcedentes as questões prévias suscitadas. A entidade recorrida e a recorrida particular interpuseram recursos contra este despacho, os quais, porém, viriam a ser julgados desertos por falta de alegações.
Prosseguindo seus termos o recurso contencioso, com apresentação de alegações, foi, por sentença de 15 de Março de 1994, o mesmo julgado improcedente, basicamente por se haver entendido que o Plano Vieira de Almeida, sendo um plano de pormenor, não estava sujeito a publicação no Diário do Governo, e que, sendo esse o plano vigente para a zona em causa, não vinha alegado ou demonstrado que a obra licenciada não obedecia aos parâmetros contidos nesse instrumento de gestão territorial, pelo que não padecia o acto impugnado do arguido vício de violação de lei.
Contra esta sentença interpuseram os recorrentes recurso jurisdicional para o Supremo Tribunal Administrativo, que, por acórdão de 11 de Abril de 2002, lhe concedeu provimento. Nesse acórdão, após se julgar improcedente arguição de nulidade da sentença por omissão de pronúncia, enfrentou-se a questão de saber se o Plano Vieira de Almeida estava sujeito a publicação, sob pena de ineficácia jurídica, tendo, a este propósito, sido expendido o seguinte:
“2. Cabe, agora, apreciar da procedência ou não desta alegação, ao impugnar a sentença, por nela se ter decidido que não era legalmente obrigatória a publicação do indicado Plano Vieira de Almeida e que este era eficaz independentemente dessa publicação.
Como se viu, para assim decidir a sentença baseou-se na consideração de que no Decreto n.º 560/71, de 17 de Dezembro, se faz distinção entre «planos gerais e parciais» e «planos de pormenor» e, ainda, de que no respectivo artigo
14.º, n.º 2, se exige, apenas, a publicação das plantas de síntese e dos regulamentos dos planos gerais ou parciais cuja aprovação competia ao Ministro das Obras Públicas (n.º 1).
Desta disposição legal a sentença retira a conclusão de que o legislador quis tornar «obrigatória a publicação no Diário do Governo dos planos gerais ou parciais de urbanização com exclusão dos planos de pormenor».
Perante o que sustentam os recorrentes que o facto de aquele preceito legal (n.º 2 do artigo 14.º do Decreto n.º 560/71) nada dizer sobre a publicação dos planos de pormenor e estabelecer a obrigatoriedade da publicação das plantas de síntese e regulamentos dos planos gerais ou parciais de urbanização não permite inferir, sem mais, que aqueles não estejam também sujeitos a publicação.
E defendem, ainda, os recorrentes que a obrigatoriedade de dar publicidade aos planos de pormenor não pode deixar de ser também procurada em outras normas do ordenamento jurídico, nomeadamente as que, ao tempo, regulavam, de uma forma geral, a publicação dos actos administrativos e dos regulamentos do Governo.
Procede esta alegação dos recorrentes.
Como refere o acórdão de 11 de Maio de 2000 (recurso n.º 44 128), a necessidade da publicação dos planos de urbanização, e designadamente dos planos de pormenor, era referida no Decreto-Lei n.º 77/84, de 8 de Março, e mantida no Decreto-Lei n.º 69/90, de 2 de Março, que parcialmente o revogou.
O artigo 18.º deste último diploma legal (Decreto-Lei n.º 69/90), vigente na data da deliberação contenciosamente impugnada, dispõe que «1. A planta de síntese e o regulamento dos planos municipais ratificados ou registados, quando se trate de planos não sujeitos a ratificação, são publicados em simultâneo na 2.ª série do Diário da República e no boletim municipal ou, quando este não exista, por editais nos lugares de estilo». E o n.º 3 do mesmo artigo 18.º preceitua que «O plano entra em vigor na data da sua publicação no Diário da República, adquirindo plena eficácia».
Para além disso, o artigo 122.º, n.º 2, da Constituição da República (artigo 119.º, na actual redacção), invocado pelos recorrentes, dispõe que «a falta de publicidade (...) de qualquer acto de conteúdo genérico dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local, implica a sua ineficácia jurídica». Como anotam G. Canotilho / V. Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, pág. 551, a expressão «acto de conteúdo genérico» é suficientemente ampla para abranger não apenas os regulamentos não abarcados no n.º 1 (v. g., regulamentos dos órgãos do poder local) mas também os actos administrativos de carácter genérico (mesmo que sem natureza regulamentar) dos
órgãos de soberania ou do poder local.
Na doutrina é pacífico o reconhecimento da índole jurisgénica dos planos, designadamente, as respectivas disposições directa e imediatamente vinculativas dos particulares, apesar de se discutir se terão natureza materialmente regulamentar ou deverão ser havidos como actos administrativos gerais de conteúdo normativo, preceptivo ou conformativo (vide Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, vol. I, pág. 401).
Por seu turno, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem afirmado, reiteradamente, o entendimento de que os planos municipais de ordenamento do território, em que se integram os planos de pormenor (vide artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 69/90, citado), têm a natureza de regulamento administrativo (vide acórdão de 17 de Outubro de 1995, recurso n.º 27 930, de
17 de Outubro de 1995, recurso n.º 35 829, de 8 de Abril de 1997, recurso n.º
38 991, de 8 de Julho de 1997, recurso n.º 38 632, e de 30 de Setembro de 1997, recurso n.º 39 991).
Em face do que haverá de concluir-se que o questionado Plano Vieira de Almeida, embora anterior à Constituição de 1976 e, por isso, não vinculado ao requisito formal de publicação no Diário da República estabelecido no citado artigo 122.º, estava abrangido pela exigência de publicação decorrente do princípio da publicidade consagrado no citado preceito constitucional.
É que «este princípio – o princípio da publicidade – é, também ele, uma exigência material, e não apenas formal, do Estado de direito; neste, os cidadãos têm, de facto, o direito de conhecer facilmente o ordenamento jurídico que regula a vida em sociedade» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 234/97, Diário da República, II Série, de 25 de Junho de 1997, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36.º vol. (1997), pág. 525 e seguintes).
No mesmo sentido, afirmam G. Canotilho / V. Moreira (obra citada, pág. 547) que «o princípio da publicidade dos actos com conteúdo genérico dos
órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local, bem como dos principais actos políticos, é uma exigência do Estado de direito democrático. É elemento irrenunciável do sistema jurídico democrático que os cidadãos conheçam e tenham fácil acesso ao direito vigente e fiquem a saber das principais decisões dos órgãos do poder político».
Ora, como refere a sentença recorrida, é incontroverso que quer o Plano Vieira de Almeida quer o despacho do membro do Governo que o aprovou nunca foram objecto de publicação.
Pelo que, ao contrário do que decidiu aquela sentença, tal plano não era juridicamente eficaz e não podia, em consequência, servir de parâmetro de legalidade do projecto aprovado pela deliberação contenciosamente impugnada.
Neste sentido, como refere o já citado acórdão de 11 de Maio de
2000, é o entendimento jurisprudencial maioritário deste Supremo Tribunal, que, repetidamente, tem sublinhado a necessidade da publicação dos planos de urbanização como condição da sua eficácia jurídica (cf., por todos, os acórdãos de 17 de Outubro de 1995, recurso n.º 27 930, de 6 de Novembro de 1997, recurso n.º 41 156, e do Pleno de 5 de Março de 1997, recurso n.º 26 340).
Decisão:
Com os fundamentos expostos, acordam em conceder provimento ao recurso jurisdicional, revogando a sentença recorrida e ordenando a baixa dos autos ao Tribunal recorrido, a fim de se conhecer dos vícios imputados à deliberação contenciosamente impugnada, se a tal, entretanto, nada obstar.”
Contra este acórdão interpôs a recorrida particular E., recurso para este Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por
último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), fundado na “recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade por violação do princípio da publicidade consagrado no artigo 122.° da CRP (actual artigo 119.°), do referido Plano Vieira de Almeida”, constante do acórdão recorrido e acrescentando que “o carácter normativo do Plano Vieira de Almeida, enquanto parâmetro conformador de decisões individuais e concretas como a que está em causa nos autos, resulta da própria fundamentação do acórdão recorrido, determinando o Supremo Tribunal Administrativo que a validade da licença de construção seja novamente aferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo, já não com base no Plano Vieira de Almeida – dada a invocação de desconformidade superveniente deste Plano com o artigo 122.° da CRP (actual artigo 119.°) e sua consequente ineficácia jurídica (artigo 122.°, n.º 2) – mas com base em diferentes parâmetros normativos, pelo que se verificou recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade, pressuposto de interposição do presente recurso”.
O primitivo Relator emitiu decisão sumária no sentido do não conhecimento do recurso, por entender não ter o acórdão recorrido recusado a aplicação do questionado Plano Vieira de Almeida com fundamento em inconstitucionalidade.
A recorrente reclamou para a conferência, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, tendo, pelo Acórdão n.º 71/2003, de 12 de Fevereiro de 2003, sido deferida a reclamação, revogada a decisão sumária reclamada e determinado o prosseguimento dos autos, com base na seguinte argumentação:
“3. Da leitura da fundamentação do acórdão recorrido (...) resulta que aí, após se recordar a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo que reconhece natureza regulamentar aos planos municipais de ordenamento do território, se atribuiu ao preceituado no artigo 122.º, n.º 2 (actual artigo
119.º, n.º 2), da CRP uma dupla dimensão:
– enquanto estabelece um requisito formal, exigindo a publicação de certos diplomas em determinados locais; e
– enquanto consagra o princípio da publicidade como uma exigência material, e não apenas formal, do Estado de direito democrático, pois neste os cidadãos têm o direito de conhecer facilmente o ordenamento jurídico que regula a vida em sociedade.
Ora, se é certo que o acórdão recorrido entendeu que o questionado
«Plano Vieira de Almeida», por ser anterior à Constituição de 1976, não estava vinculado ao requisito formal de publicação no Diário da República estabelecido no citado artigo 122.º (seguramente de acordo com o princípio de aplicação das normas constitucionais no tempo, que restringe aos actos praticados após o início da sua vigência a vinculação às regras de índole formal e orgânica), não menos certo é que o mesmo acórdão explicitamente reconheceu aplicável àquele regulamento a «exigência de publicação decorrente do princípio da publicidade consagrado no citado preceito constitucional», isto é, considerou-o abrangido pela segunda dimensão (material) ao mesmo assinalada. E foi justamente por considerar que este princípio constitucional de
índole material (aplicável ao direito ordinário pretérito) teria sido violado que o acórdão recorrido recusou a aplicação do dito Plano para «servir de parâmetro de legalidade do projecto aprovado pela deliberação contenciosamente impugnada».
Assim sendo, mostra-se preenchido o requisito de admissibilidade do recurso previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – ter o tribunal recorrido recusado a aplicação de uma norma, com fundamento em inconstitucionalidade –, sendo irrelevante, para este efeito, que o acórdão recorrido haja considerado que a inconstitucionalidade detectada geraria ineficácia (e não invalidade); aliás, a CRP começou, na sua versão originária, por considerar que a falta de publicidade implicava a inexistência jurídica do acto, e, desde a revisão de 1982, associa a esse vício a ineficácia jurídica.”
Notificadas as partes para produzirem alegações, a recorrente apresentou as suas, que culminam com a formulação das seguintes conclusões:
“A) O juízo do Tribunal a quo no sentido de ter por inaplicável e de recusar a aplicação, para aferição da legalidade de um acto administrativo, ao Plano Morfológico e de Cérceas da Avenida da Liberdade («Plano Vieira de Almeida»), que tem a natureza de plano de pormenor, por ofensa do princípio da publicidade consignado no artigo 122.°, n.° 2, da Constituição de 1976 (hoje artigo 119.°, n.° 2), traduz-se num juízo de inconstitucionalidade superveniente, em virtude de o plano haver sido aprovado antes da entrada em vigor da Constituição, e como tal se auto-afirma.
B) Representa jurisprudência constante, fundamentada e correcta desse Tribunal Constitucional que a figura da inconstitucionalidade superveniente só cabe relativamente a inconstitucionalidades materiais, valendo para os requisitos orgânicos, formais e procedimentais, pura e simplesmente, o princípio tempus regit actum.
C) A publicação, quando necessária, representa um requisito procedimental e não um requisito material.
D) A circunstância de se encontrar em causa um princípio material ou com dimensão material não converte a questão em questão de inconstitucionalidade material: também o princípio da separação e interdependência de poderes é um princípio material e a sua violação traduz-se em inconstitucionalidades orgânicas; também os princípios da legalidade penal ou tributária são princípios substanciais e a sua violação pode traduzir-se em inconstitucionalidades orgânicas ou formais.
E) Conforme o Tribunal Constitucional e a doutrina têm afirmado, o que caracteriza a inconstitucionalidade material é a circunstância de a contrariedade com a Constituição se situar no conteúdo do acto ou da norma ordinária.
F) Ora, nada no conteúdo do «Plano Vieira de Almeida» contraria qualquer norma constitucional, nem se arguiu que contrarie.
G) Nunca o «Plano Vieira de Almeida» poderia ter sido julgado inconstitucional por preterição de um requisito procedimental, ainda que resultante de um princípio material, que só subsequentemente à sua aprovação veio a ser constitucionalmente estabelecido.
H) A consideração de que a falta de publicação determinaria ofensa do princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança supervenientemente estabelecido implicaria ilegítima aplicação retroactiva de tal princípio.
I) De toda a maneira, não há afectação relevante de confiança quando um plano urbanístico serve de parâmetro para a concessão – e não para a denegação – de uma licença, sendo certo ainda que, no caso dos autos, os recorrentes no contencioso administrativo são autores populares, sem interesse pessoal.
J) Houve, de resto, conhecimento público do «Plano Vieira de Almeida».
L) Assim, o «Plano Vieira de Almeida» não é nem deve ser julgado inconstitucional.”
Nem os recorrentes contenciosos nem a entidade recorrida apresentaram alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
À data da aprovação do “Plano Vieira de Almeida” estava em vigor, no que respeita à tipologia e requisitos de validade e eficácia dos planos urbanísticos, o Decreto-Lei n.º 560/71, de 17 de Dezembro, que distinguia entre “planos gerais ou parciais” (artigo 1.º) e “planos de pormenor” (artigo
2.º). Estes eram aprovados pelas câmaras municipais se incidissem sobre sectores urbanos de áreas já abrangidas por planos gerais ou parciais de urbanização aprovados (artigo 7.º, n.º 1) ou pelo Ministro das Obras Públicas quando a área por eles abrangida ainda não estivesse sujeita a plano aprovado, geral ou parcial, ou quando implicassem alteração aos planos em vigor (artigo 7.º, n.º
2). Estabelecia o artigo 14.º, n.º 2, do citado diploma que seria publicada no Diário do Governo a portaria do Ministro das Obras Públicas que aprovasse os regulamentos dos planos gerais ou parciais de urbanização, acompanhada de uma planta de síntese das disposições do plano e do respectivo regulamento. A circunstância de esta norma se referir apenas a planos gerais ou parciais sempre foi entendida, pela jurisprudência administrativa, como significando que esse diploma não impunha a publicação no jornal oficial dos actos de aprovação dos planos de pormenor, categoria em que inquestionavelmente se inseria o
“Plano Vieira de Almeida”.
A questão que o presente recurso suscita é a de saber se
– como o entendeu o acórdão recorrido – as normas integrantes desse Plano se tornaram supervenientemente inconstitucionais face à consagração no artigo
122.º da Constituição da República Portuguesa de 1976 (CRP), correspondente ao actual artigo 119.º, do princípio da publicidade, visto como exigência material do Estado de direito (e não do requisito formal de publicação no Diário da República, tido por inaplicável ao direito ordinário anterior à Constituição).
Sendo entendimento pacífico o de que a inconstitucionalidade superveniente só opera relativamente a inconstitucionalidades materiais, que não a inconstitucionais orgânicas ou formais (cf. Acórdãos n.ºs 29/83, 313/85, 201/86, 261/86, 468/89, 330/90,
352/92, 597/99, 556/2000, 110/2002, largamente citados nas alegações da recorrente), o cerne da questão agora em apreço consiste na correcta qualificação do vício derivado da violação do princípio da publicidade.
O acórdão recorrido entendeu que, sendo o princípio da publicidade um princípio material ou com uma dimensão material, a sua violação gera inconstitucionalidade material, inquinando, por isso, a legislação ordinária anterior à CRP que o desrespeite.
Contrariamente, sustenta a recorrente que “a contradição com princípios materiais não se traduz necessariamente em inconstitucionalidade material”, recordando que “também o princípio da separação e interdependência de poderes é um princípio material e a sua violação exprime-se em inconstitucionalidades orgânicas” e que “igualmente substancial é o princípio da legalidade penal ou da legalidade tributária e a sua ofensa pode traduzir-se em inconstitucionalidades orgânicas e formais”. Em seu entender “aquilo que caracteriza a inconstitucionalidade material é que a contrariedade com a Constituição se localiza no conteúdo do acto ou da norma ordinária”, sendo certo que “em nada o conteúdo do Plano Vieira de Almeida contraria qualquer norma constitucional – nem se arguiu que contrarie”, limitando-se o acórdão recorrido a dizer “que lhe faltou publicação, a qual constitui um requisito formal ou de procedimento”.
É este último o entendimento correcto. Como refere J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2003, págs. 959-960), ao distinguir entre vícios formais, vícios materiais e vícios procedimentais originados pela desconformidade dos actos normativos com o parâmetro constitucional, enquanto os vícios formais
“incidem sobre o acto normativo enquanto tal, independentemente do seu conteúdo e tendo apenas em conta a forma da sua exteriorização” e os vícios procedimentais (autonomizados pela doutrina mais recente, mas englobados nos vícios formais pela doutrina clássica) “são os que dizem respeito ao procedimento de formação, juridicamente regulado, dos actos normativos”, os vícios materiais “respeitam ao conteúdo do acto, derivando do contraste existente entre os princípios incorporados no acto e as normas ou princípios da constituição”. No presente caso, jamais foi imputada a concretas normas do
“Plano Vieira de Almeida”, atendendo ao seu conteúdo, qualquer desconformidade com princípios ou normas da Constituição (designadamente as que protegem o direito de propriedade ou o ambiente); o que se questiona é a forma de exteriorização desse acto normativo enquanto tal. Está, pois, em causa, uma inconstitucionalidade formal, que não material, a tal não obstando a circunstância de aquela inconstitucionalidade pretensamente resultar da violação de um princípio material da Constituição. Não se tratando de inconstitucionalidade material, a regra é a da não superveniência de inconstitucionalidade das normas de direito ordinário anterior alegadamente violadoras dos princípios da nova Constituição.
Com relevância para esta questão recorde-se que o Tribunal Constitucional, a propósito do Plano de Urbanização da Costa do Sol, já teve oportunidade, no Acórdão n.º 234/97 (Diário da República, II Série, n.º
144, de 25 de Junho de 1997; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36.° vol., pág. 525), de explanar o seguinte:
“O sentido do artigo 290.°, n.° 2, da Constituição – que dispõe que o direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição mantém-se, desde que não seja contrário à Constituição ou aos princípios nela consignados (cf. artigo
293.°, n.° l, na redacção original) – é o de que todo o direito ordinário anterior, vigente à data da entrada em vigor da Constituição, se mantém, desde que o seu conteúdo não seja materialmente incompatível com as normas ou princípios da nova Constituição. E isso, independentemente da sua conformidade ou desconformidade com a ordem constitucional anterior e independentemente também da sua conformidade ou desconformidade com as novas normas constitucionais relativas à forma e à competência dos actos normativos. Estas últimas normas (as normas da Constituição de 1976 relativas à forma e à competência dos actos normativos) apenas se aplicam para futuro (isto é, aos actos normativos produzidos no período de vigência da Constituição de 1976): cf., neste sentido, o Acórdão n.° 332/94 (Diário da República, II Série, de 30 de Agosto de 1994); cf. também J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p.
1073).
Assim, não faz nenhum sentido averiguar se, à luz do artigo 122.° da Constituição da República, as normas do mencionado Plano de Urbanização deviam ou não ser publicadas no Diário da República para serem válidas e eficazes.
O artigo 122.°, no que respeita aos actos normativos, é, com efeito, uma norma relativa à sua publicidade – ou seja: a um requisito formal (e, assim, relativo ainda à sua forma), que não à sua substância ou conteúdo. Por isso, não vale ele para o direito pré-constitucional.”
Ponderou ainda o referido Acórdão n.º 234/97 – atendendo
à circunstância de o princípio da publicidade ser também uma exigência material, e não apenas formal, do Estado de direito, que assegura aos cidadãos o direito de conhecer facilmente o ordenamento jurídico que regula a vida em sociedade –, a possibilidade de ocorrer violação dos princípios da segurança e da protecção da confiança com a aplicação de normas do Plano de Urbanização da Costa do Sol não publicadas, tendo respondido negativamente por o Decreto-Lei n.º 37 251, de 28 de Dezembro de 1948, que aprovou esse Plano, ter sido publicado no Diário do Governo, e por, na época, ser habitual a publicação apenas do diploma legal de aprovação do plano, e não também a deste.
Há que salientar que no caso sobre que recaiu o citado acórdão estava em causa uma recusa de licenciamento com fundamento em plano com regulamento não publicado, enquanto que no presente caso está em causa a impugnação de acto de licenciamento de edificação de acordo com as regras do
“Plano Vieira de Almeida”, desencadeada por vereadores da Câmara Municipal, embora sob a veste de autores populares, pelo que a questão da violação do princípio da confiança se coloca em termos não exactamente idênticos. Na verdade, na primeira hipótese estava em causa a negação de pretensão de cidadãos com fundamento em normas a cujo conhecimento os mesmos não podiam aceder com facilidade, enquanto no presente caso está em causa a tentativa de eliminação de um direito concedido com base em diploma que, apesar de “não publicado”, os interessados, a Administração e os impugnantes demonstraram conhecer.
Dir-se-á que a exigência de publicidade visa igualmente tutelar a generalidade dos cidadãos e não apenas os directamente participantes no procedimento administrativo em causa e, estando em jogo pretensões edificativas, visa especialmente tutelar os interesses dos proprietários vizinhos e mesmo os titulares de interesses difusos, como o ambiente, a qualidade de vida e o património cultural. No entanto, como a recorrente demonstra, sem contestação dos recorridos, a existência do “Plano Vieira de Almeida”, geograficamente delimitado a uma avenida da cidade de Lisboa, era facilmente cognoscível pelos eventuais interessados, dado que pelo Decreto n.º
208/72, de 22 de Julho, publicado no Diário do Governo, anunciando estar em estudo esse plano, foram estabelecidas “medidas preventivas para a área por ele abrangida, por forma que a sua execução não seja comprometida por alterações entretanto ali realizadas”, ficando proibida, pelo prazo de um ano, na área representada na planta anexa a esse diploma, a prática de diversos actos ou actividades, como a construção, reconstrução ou ampliação de edifícios ou outras instalações e o derrube de árvores (artigo 1.º). E a Câmara Municipal de Lisboa fez publicar no Diário Municipal, n.º 11 534, de 21 de Julho de 1973, Aviso de que fora “aprovada na reunião pública da Câmara Municipal de Lisboa no dia 28 de Junho de 1973 o Estudo Morfológico da zona da Avenida da Liberdade”, considerando-se “do maior interesse que os proprietários dos edifícios situados nesta zona da cidade, ou seus legítimos representantes, tomem conhecimento do estudo na parte que directamente lhes interessa”, tendo sido fixado um calendário de reuniões entre os interessados e os serviços camarários, por quarteirão, que se estendeu de Julho a Outubro de 1973.
Neste contexto, nem sequer se poderia dar por violado o princípio (material) da publicidade, entendido este como a proibição de “actos normativos secretos, contra os quais [os cidadãos] não se podem defender” (J. J. Gomes Canotilho, obra citada, pág. 878).
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucionais as normas do “Plano Morfológico e de Cérceas da Avenida da Liberdade”, conhecido por “Plano Vieira de Almeida”, aprovado por despacho do Secretário de Estado do Urbanismo e Habitação, de 22 de Fevereiro de 1974; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrido em conformidade com o precedente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 21 de Abril de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Silva Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos