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Proc. n.º 368/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Foi, a fls. 325 e seguintes, proferida decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A. e mulher, pelos seguintes fundamentos:
“[...]
9. Constitui pressuposto processual do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – aquele que foi interposto no caso dos autos –, a invocação pelos recorrentes, durante o processo, da questão de inconstitucionalidade normativa que pretendem ver apreciada pelo Tribunal Constitucional. O artigo 72º, n.º 2, da mesma Lei concretiza tal pressuposto, ao estabelecer que esse recurso só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer. O sentido funcional que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem atribuído à exigência constitucional e legal de que a inconstitucionalidade seja invocada durante o processo tem em vista dar ao tribunal recorrido a oportunidade de se pronunciar sobre tal questão, de modo que o Tribunal Constitucional venha a decidir em recurso. Deve portanto em princípio a questão de inconstitucionalidade ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido. Só em casos muito particulares, em que o recorrente não tenha tido oportunidade de suscitar a questão de inconstitucionalidade é que este Tribunal tem considerado admissível o recurso de constitucionalidade sem que sobre tal questão tenha havido uma anterior decisão do tribunal a quo (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 232/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º vol., p. 1119 ss).
10. No caso em apreciação, pretendem os recorrentes que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional da norma contida no artigo
5º, n.º 4, do Código do Registo Predial, numa determinada interpretação, que identificam nos termos constantes da resposta ao despacho de aperfeiçoamento
(supra, 8.). Ora, os recorrentes não suscitaram, perante o tribunal a quo, a questão de inconstitucionalidade normativa que pretendem ver apreciada pelo Tribunal Constitucional. Assim, não admira que, na decisão recorrida (supra, 2.), não surja tratada qualquer questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 5º, n.º 4, do Código do Registo Predial, na interpretação assinalada pelos recorrentes. Na verdade, os ora recorrentes, nas alegações produzidas junto do Supremo Tribunal de Justiça (o tribunal ora recorrido), limitaram-se a colocar, de modo não inteiramente claro, um problema de eventual violação do artigo 112º da Constituição da República Portuguesa (cfr. supra, 4.), problema substancialmente diferente da questão de inconstitucionalidade que agora pretendem ver apreciada pelo Tribunal Constitucional. Apenas na resposta ao despacho de aperfeiçoamento proferido já no Tribunal Constitucional vieram os recorrentes imputar a uma determinada interpretação do artigo 5º, n.º 4, do Código do Registo Predial a violação do artigo 62º da Constituição, o que é manifestamente extemporâneo, atendendo ao disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional e ao artigo
72º, n.º 2, da mesma Lei, já referidos. Os ora recorrentes tiveram, no entanto, oportunidade processual de suscitar a questão de inconstitucionalidade em momento anterior (concretamente, nas contra-alegações apresentadas perante o Supremo Tribunal de Justiça), sendo certo que a questão jurídica suscitada nos autos e no recurso de revista consiste precisamente na apreciação da prioridade, ou não prioridade, do registo da penhora (que deu lugar à venda executiva do prédio a favor [de] B. e mulher) sobre o registo da escritura de compra e venda do mesmo prédio a favor de A. e mulher, aqui recorrentes. Aliás, quer o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, quer as alegações de recurso produzidas por B. e mulher perante o Supremo Tribunal de Justiça, se referiam extensamente ao conceito de “terceiros” para efeitos de aplicação do regime constante do Código do Registo Predial (e, concretamente, ao artigo 5º, n.º 4, desse Código), bem como ao acórdão de uniformização de jurisprudência n.º
3/99 do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Maio de 1999 (publicado no Diário da República, I Série-A, de 10 de Julho do mesmo ano). Sendo previsível – ou melhor, sendo certo, nas circunstâncias do processo – que a norma do artigo 5º, n.º 4, do Código do Registo Predial haveria de ser convocada para a decisão pelo Supremo Tribunal de Justiça, aos ora recorrentes cabia suscitar perante esse tribunal a questão da inconstitucionalidade de determinada interpretação da norma em causa, interpretação que correspondia à que sempre fora sustentada durante o processo por B. e mulher (cfr., designadamente, o texto das alegações apresentadas no Supremo Tribunal de Justiça, a fls. 187). Só assim poderia dar-se como cumprido o ónus de invocação da questão de inconstitucionalidade normativa durante o processo, a que se referem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional. Não o tendo feito, não pode considerar-se preenchido um dos pressupostos processuais do presente recurso e, consequentemente, não pode do mesmo tomar-se conhecimento.”
2. Notificados desta decisão sumária, A. e mulher vieram reclamar para a conferência (fls. 344 e seguintes), sustentando, em síntese, o que segue:
a) No caso dos autos não era exigível aos recorrentes o cumprimento do ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidade normativa antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, “porque o teor da interpretação da norma legal operada pelo acórdão do STJ posto em crise é perfeitamente anómalo e excepcional”, face à evolução legislativa que descrevem, e porque o Supremo considerou que “a grande questão dos autos e do recurso de revista consistiu na apreciação da prioridade ou não prioridade do registo da penhora sobre o registo da escritura de compra e venda”, quando, em sua opinião,
“a grande questão dos autos e do recurso consistiu na prioridade ou não prioridade da aquisição feita pelos recorrentes através de escritura pública sobre a aquisição feita posteriormente pelos recorridos em venda executiva”;
b) A decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça
“emerge de um lapso grave e flagrante: o de considerar que a aquisição do direito de propriedade pelos aqui recorrentes sobre o prédio em causa não se encontra registada, o que não é verdade”;
c) Esse lapso “não foi rectificado na sequência do pedido formulado pelos aqui recorrentes, antes se preferindo mantê-lo ainda que através de decisão que é tomada à revelia das premissas explanadas na fundamentação do acórdão e, o que é mais grave, em violação clara da letra da lei;
d) E não pode dizer-se, como se diz na decisão sumária reclamada, que “a questão da prioridade da penhora sobre o direito de propriedade dos recorrentes, adquirido antes mas registado depois, foi levantada nas doutas alegações de recurso que os réus B. e mulher interpuseram da douta decisão proferida no Tribunal de segunda instância”;
e) “Essa prioridade, porque expressamente afastada pelo n.º
4 do artigo 5º do Cód. Reg. Predial, era já na altura uma falsa questão, tratando-se de problema que, perante a letra da lei, deixara de existir” e, por isso, “os ali recorridos entenderam que não deveriam entediar os Juízes Conselheiros com considerações sobre uma questão jurídica que, já na altura, deixara de ter relevância prática”.
3. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional respondeu à referida reclamação (fls. 354), sustentando a sua improcedência nos seguintes termos:
“1 – A presente reclamação carece de fundamento.
2 – Na verdade – e perante o objecto do litígio que opunha as partes
– não pode considerar-se decisão-surpresa a proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça em termos de desonerar os reclamantes do ónus de suscitação, tempestiva e adequada, da questão de inconstitucionalidade normativa que só tardiamente colocaram”.
4. Também o recorrido B. se pronunciou no sentido do indeferimento da reclamação apresentada (fls. 355 e seguintes).
O recorrido C. não respondeu.
Cumpre apreciar.
III
5. Na decisão sumária reclamada decidiu-se não conhecer do objecto do recurso interposto por se entender que “os recorrentes não suscitaram, perante o tribunal a quo, a questão de inconstitucionalidade normativa que pretendem ver apreciada pelo Tribunal Constitucional” e por se entender que os mesmos recorrentes “tiveram oportunidade processual de suscitar a questão de inconstitucionalidade em momento anterior [ao do requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional] (concretamente, nas contra-alegações apresentadas perante o Supremo Tribunal de Justiça), sendo certo que a questão jurídica suscitada nos autos e no recurso de revista consiste precisamente na apreciação da prioridade, ou não prioridade, do registo da penhora (que deu lugar à venda executiva do prédio a favor de B. e mulher) sobre o registo da escritura de compra e venda do mesmo prédio a favor de A. e mulher, aqui recorrentes”.
Na reclamação agora apresentada, os reclamantes não põem em causa o primeiro fundamento, isto é, não põem em causa que não tenham suscitado perante o tribunal a quo a questão de inconstitucionalidade normativa que pretendem ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
Com efeito, toda a sua argumentação é no sentido de justificar que não era exigível aos recorrentes o cumprimento do ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidade normativa antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal que proferiu a decisão recorrida.
Ora, essa fundamentação assenta essencialmente em dois argumentos:
– primeiro, o de que “a grande questão dos autos e do recurso de revista” não é a que foi identificada pelo Supremo Tribunal de Justiça – isto é, a “apreciação da prioridade ou não prioridade do registo da penhora sobre o registo da escritura de compra e venda” – mas sim a “apreciação da prioridade ou não prioridade da aquisição feita pelos recorrentes através de escritura pública sobre a aquisição feita posteriormente pelos recorridos em venda executiva”;
– segundo, o de que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça “emerge de um lapso grave e flagrante: o de considerar que a aquisição do direito de propriedade pelos aqui recorrentes sobre o prédio em causa não se encontra registada, o que não é verdade”.
5.1. Reafirma-se que, na aferição do preenchimento dos pressupostos processuais exigidos pelos artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, não é possível considerar os ora reclamantes desonerados do ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo.
Com efeito, tendo em conta as circunstâncias do processo, e designadamente, a questão jurídica suscitada nos autos e no recurso de revista, verifica-se que eles tiveram oportunidade processual de suscitar tal questão em momento anterior ao do requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional (concretamente, nas contra-alegações apresentadas perante o Supremo Tribunal de Justiça).
A questão jurídica suscitada nos autos e no recurso de revista centrava-se na apreciação da prioridade, ou não prioridade, do registo da penhora (que deu lugar à venda executiva do prédio a favor de B. e mulher, aqui recorridos) sobre o registo da escritura de compra e venda do mesmo prédio a favor de A. e mulher, aqui recorrentes e ora reclamantes.
É o que claramente decorre dos elementos do processo.
O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, depois de se referir extensamente ao conceito de “terceiros” para efeitos de aplicação do regime constante do Código do Registo Predial (e, concretamente, ao artigo 5º, n.º 4, desse Código), bem como ao acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 3/99 do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Maio de 1999 (publicado no Diário da República, I Série-A, de 10 de Julho do mesmo ano), concluiu do seguinte modo a sua apreciação do recurso interposto pelos ora reclamantes e ao qual concedeu provimento:
“[...] No caso vertente, os Réus não são considerados terceiros para efeitos do artigo
5º, n.º 1, do Cód. Reg. Predial, pelo que os Autores podiam opor relevantemente o seu direito de propriedade, apesar de registado posteriormente ao registo da penhora” [itálico aditado agora].
E, nas alegações de recurso produzidas por B. e mulher perante o Supremo Tribunal de Justiça, pode ler-se:
“[...] o que está em causa é a penhora do prédio em causa, cujo registo é anterior [ao da aquisição por A. e mulher].
[...] IX) Não obstante o prédio estar registado em nome da executada e figurar na matriz como tal até hoje, só muitos anos depois promoveram o registo da escritura de compra e venda que invocam, aliás muitos meses depois de se ter tornado público o registo da penhora, contra o qual não reagiram, assim contribuindo decisivamente para que o arrematante, ora recorrente, se convencesse de que comprava bem para o seu casal”.
Nestas circunstâncias, era portanto previsível, ou melhor, era certo
– face à conclusão da decisão proferida pela Relação e ao teor das alegações produzidas pelos então recorrentes – que a norma do artigo 5º, n.º 4, do Código do Registo Predial haveria de ser convocada para a decisão pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Aos recorridos (ora reclamantes) cabia suscitar, nas contra-alegações apresentadas perante esse tribunal, a questão da inconstitucionalidade de determinada interpretação da norma em causa, interpretação que aliás correspondia à que sempre fora sustentada durante o processo pela outra parte (B. e mulher, aqui recorridos).
Não pode portanto julgar-se pertinente o argumento utilizado na reclamação em análise, segundo o qual os recorridos (ora reclamantes) não responderam à alegação da outra parte, porque entenderam que a questão da prioridade identificada no processo “era já na altura uma falsa questão”. É que, no caso dos autos, o objecto de litígio que opunha as partes identificava-se mesmo com essa questão e assentava numa interpretação normativa que, na perspectiva dos recorridos (ora reclamantes), contrariava a Constituição. Competia-lhes, por isso, confrontar o Supremo Tribunal de Justiça com tal questão de inconstitucionalidade.
Só desse modo seria possível dar como cumprido o ónus, a que se referem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, de invocação da questão de inconstitucionalidade normativa durante o processo.
Não o tendo feito, há que concluir que não se encontra preenchido um dos pressupostos processuais do recurso interposto e que, consequentemente, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do objecto do presente recurso.
5.2. Quanto ao segundo argumento invocado pelos ora reclamantes – o de que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça “emerge de um lapso grave e flagrante” –, trata-se obviamente de questão que não cabe na competência do Tribunal Constitucional e que por isso não pode aqui ser apreciada.
Não existem, portanto, razões para alterar a decisão sumária reclamada.
III
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária que concluiu no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 11 de Novembro de 2003 Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos