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Proc. n.º 99/01 Acórdão nº
223/01
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Notificado da decisão sumária de fls. 257 e seguintes, na qual se decidiu não tomar conhecimento do recurso por si interposto para este Tribunal, C... dela veio reclamar para a conferência, nos termos do n.º 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 272 e seguintes).
Na reclamação, C... alega, em síntese, o seguinte: a. Só pode proferir-se decisão sumária, nos termos do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, se se entender que não pode conhecer-se do objecto do recurso ou que a questão a decidir é simples; b. A decisão sumária deve ser circunscrita aos casos de incumprimento dos formalismos legais exigidos, procurando sempre não coarctar as garantias de defesa que se encontram mais asseguradas com o julgamento; c. Ao entender não sujeitar a apreciação a aplicação das normas invocadas no processo, a decisão sumária torna-se restritiva e diminui as garantias de defesa do recorrente, impossibilitando-lhe a produção de alegações e o julgamento; d. A interpretação dada na decisão reclamada ao artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional é ela própria limitadora do direito de recurso e das garantias de defesa do arguido, violando o artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa; e. É de conhecer do objecto do recurso relativamente à norma do artigo
201º, n.º 2, do Código de Processo Civil porque, contrariamente ao que se afirma na decisão reclamada, não está em causa a inconstitucionalidade da decisão recorrida mas a da interpretação dada àquela norma, por violação do disposto no n.º 8 do artigo 32º da Constituição, quando admite como meio de prova válido a certidão da Junta de Crédito Público de fls. 10 e 11 dos autos de arrolamento; f. Na verdade, a tutela do segredo do aforro encontra-se prevista no artigo 1º do Decreto-Lei n.º 2/78, de 9-01 e foi já consagrada no Parecer da Procuradoria-Geral da República de 30-11-78, pelo que a prova obtida é ilícita e deve ser considerada inexistente ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 201º do Código de Processo Civil; g. Só deste modo se dá cumprimento ao preceituado no n.º 8 do artigo 32º da Constituição, que proíbe os meios de prova ilícitos, nomeadamente as provas obtidas, como no caso em apreço, mediante violação do segredo profissional e abusiva intromissão na vida privada do recorrente; h. Também se discorda do entendimento constante da decisão sumária reclamada quanto à constitucionalidade da aplicação, na decisão recorrida, da doutrina do acórdão de uniformização da jurisprudência, em violação dos artigos
115º e 112º da Constituição; i. Com efeito, não é correcto afirmar que a doutrina consagrada no acórdão de uniformização da jurisprudência é a que se encontra vertida no artigo
342º, n.º 2, do Código Civil; j. É que o artigo 342º, n.º 2, do Código Civil determina que a prova do facto impeditivo do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita e, pedindo a recorrida a condenação do recorrente como único cônjuge culpado, a invocação pelo recorrente do abandono do lar por parte da recorrida é um facto impeditivo do direito invocado pela recorrida, incumbindo portanto à recorrida a prova de que o abandono não lhe podia ser imputado em termos de culpa; l. Como a doutrina consagrada no acórdão uniformizador contraria a norma do artigo 342º, n.º 2, do Código Civil, invertendo o ónus da prova, não é possível afirmar que 'com o Acórdão Uniformizador ou sem ele a solução dos autos seria sempre aquela que as instâncias acolheram', pois o artigo 115º da Constituição delimita claramente os actos legislativos; m. Atribuir força interpretativa a tal acórdão uniformizador representa a violação do artigo 115º da Constituição, pelo que a decisão recorrida aplicou normas inconstitucionais e a decisão reclamada errou, ao considerar que a decisão da questão da inconstitucionalidade suscitada não pode influir utilmente no julgamento da questão de mérito discutida no processo; n. Deve assim conhecer-se do objecto do recurso.
2. Notificada para se pronunciar sobre a reclamação apresentada, a recorrida respondeu que a mesma deveria ser indeferida. Cumpre apreciar. II
3. É a seguinte a fundamentação da decisão sumária reclamada:
'[...]
5. Resulta do requerimento de interposição do recurso para este Tribunal que o recorrente pretende ver apreciada a conformidade constitucional de três normas: a do artigo 201º, n.º 2, do Código de Processo Civil; a do artigo 653º, n.º 2, do mesmo Código; e, por fim, a do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º
5/94, de 26 de Novembro.
6. No que se refere à norma do artigo 201º, n.º 2, do Código de Processo Civil, decorre do teor do requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, bem como das alegações dos recursos interpostos pelo ora recorrente para a Relação de Lisboa e para o Supremo Tribunal de Justiça, que se pretende a apreciação da sua conformidade constitucional numa determinada interpretação: a de que seria prova válida a (identificada nos autos) certidão da Junta de Crédito Público, obtida mediante violação do segredo bancário e invadindo a vida privada do réu. Todavia, resulta à evidência que tal apontada interpretação da norma do artigo
201º, n.º 2, do Código de Processo Civil se resume à própria decisão do tribunal recorrido acerca da admissibilidade e possibilidade de valoração da referida certidão da Junta de Crédito Público como meio de prova. O que o recorrente verdadeiramente pretende é que o Tribunal Constitucional aprecie se essa certidão foi obtida mediante violação do segredo bancário e invasão da sua vida privada e, concomitantemente, se constitui ou não meio de prova admissível e valorável: em suma, o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional da decisão que, considerando ininvocável o segredo bancário e entendendo inexistir intromissão na vida privada, julgou que certo meio de prova podia ser utilizado no processo. Ora, tal pretensão excede largamente a competência do Tribunal Constitucional, confinado que está à apreciação de questões de constitucionalidade normativa nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da respectiva Lei, que em nada se confunde com um recurso de amparo. O Tribunal Constitucional não pode, naturalmente, controlar a conformidade constitucional da própria decisão recorrida, mas apenas a de normas (ou de normas, numa certa dimensão interpretativa) nela aplicadas. Não pode, consequentemente, conhecer-se do objecto do recurso, no que se refere
à norma do artigo 201º, n.º 2, do Código de Processo Civil, na medida em que, não havendo questão de constitucionalidade normativa a apreciar, tal exorbitaria a competência deste Tribunal.
7. Relativamente à norma constante do artigo 653º, n.º 2, do Código de Processo Civil, é também patente que não pode conhecer-se do objecto do recurso. Com efeito, constitui pressuposto processual do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – aquele que foi interposto pelo recorrente – a aplicação, pela decisão recorrida, da norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada. Ora, percorrendo o texto do acórdão recorrido – o do Supremo Tribunal de Justiça
– facilmente se verifica que tal preceito não é sequer referido. O tribunal recorrido ocupou-se apenas de três questões: omissão de pronúncia do acórdão da Relação de Lisboa; meio ilícito de prova; inexistência de factos que legitimem a procedência do pedido de divórcio da autora. Ao ocupar-se dessas três questões, nenhuma referência fez à norma do artigo 653º, n.º 2, do Código de Processo Civil: e o recorrente, aliás, nenhuma referência lhe fizera nas alegações para o tribunal recorrido. Não tendo tal norma sido aplicada, falta um dos pressupostos processuais do presente recurso, não podendo portanto conhecer-se do respectivo objecto, no que a essa norma diz respeito. De todo o modo, o recorrente não suscitou, de modo processualmente adequado, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa reportada ao artigo 653º, n.º 2, do Código de Processo Civil, pelo que mesmo que tal norma tivesse sido aplicada na decisão recorrida, faltaria outro dos pressupostos processuais do presente recurso (cfr. artigo 70º, n.º 1, alínea b), e artigo 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional): a invocação, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, da inconstitucionalidade dessa norma. Só nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa o recorrente alude à eventual inconstitucionalidade de uma determinada interpretação do artigo 653º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Resulta porém do teor dessas alegações que aquilo que verdadeiramente se questiona é a suficiência da fundamentação da decisão da matéria de facto, e não qualquer interpretação normativa veiculada nessa decisão. Isto é: questiona-se a conformidade constitucional da própria decisão da matéria de facto, por ser alegadamente insuficiente a sua fundamentação, o que de modo nenhum equivale à arguição da inconstitucionalidade da norma do artigo 653º, n.º 2, daquele Código, em qualquer das suas possíveis vertentes interpretativas. Ora, como já antes se referiu (supra, n.º 6), o Tribunal Constitucional não tem competência para apreciar a conformidade constitucional da própria decisão recorrida. Em conclusão: não pode conhecer-se da conformidade constitucional da norma contida no artigo 653º, n.º 2, do Código de Processo Civil, porque tal norma não foi aplicada na decisão recorrida, nem quanto a ela foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, sendo certo que o Tribunal Constitucional não tem competência para apreciar a conformidade constitucional de decisões judiciais.
8. Finalmente, pretende ainda o recorrente «ver declarada a inconstitucionalidade da interpretação feita pelo STJ ao aplicar ao caso a doutrina do acórdão de uniformização de jurisprudência 5/94, de 26/11/94, violando desta forma os arts. 115º e 112º, n.º 1 e 6 da CRP» (cfr. requerimento de interposição do recurso para este Tribunal). Ao que se depreende, pretende, pois, o recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional da norma constante desse acórdão de uniformização de jurisprudência ou, eventualmente, a de norma legal (que não identifica) interpretada à luz da orientação perfilhada nesse acórdão. Seja como for, é óbvio que quanto a tal questão não pode também conhecer-se do objecto do recurso. Como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, o recurso de constitucionalidade tem carácter instrumental, pelo que só cabe apreciar do objecto de um recurso quando a decisão a proferir por este Tribunal possa influir utilmente no julgamento da questão de mérito discutida no processo. Se nos casos em que a decisão do Tribunal Constitucional em nada influi no sentido da decisão recorrida se pudesse conhecer do objecto do recurso, convolar-se-ia este na resolução de uma mera questão académica, perdendo a própria fisionomia de recurso de uma decisão judicial.
É o que sucederia no presente caso. Mesmo que, por hipótese, o Tribunal Constitucional viesse a dar razão ao recorrente, o sentido da decisão recorrida
– quanto à questão de saber a quem cabia o ónus da prova da culpa quanto ao abandono do lar – manter-se-ia na íntegra. E isto porque, como expressamente se refere no acórdão recorrido, «com acórdão uniformizador ou sem ele, a solução dos autos seria sempre aquela que as instâncias acolheram». Com efeito, sob o ponto de vista do tribunal recorrido, a solução da mencionada questão decorre logo do disposto no artigo 342º, n.º 1, do Código Civil, que estabelece que a prova dos factos constitutivos de um direito cabe a quem invoca esse direito, não sendo sequer necessário interpretar tal preceito à luz do acórdão uniformizador. Aliás, se bem se reparar, o texto do acórdão recorrido praticamente não alude, quando trata da questão do ónus da prova da culpa quanto ao abandono do lar, ao referido acórdão de uniformização da jurisprudência: apenas o faz quando rebate a sua pretensa inconstitucionalidade, invocada pelo recorrente. Toda a questão
é, em suma, resolvida mediante a interpretação do artigo 342º, n.º 1, do Código Civil, sem qualquer apelo à autoridade ou ao carácter indicativo daquele acórdão. O que significa que, para além da falta de utilidade no conhecimento do recurso, poderia ainda considerar-se que não houve efectiva aplicação na decisão recorrida da doutrina do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 5/94, de
26 de Novembro. Tendo em conta o carácter instrumental do recurso de constitucionalidade, não pode, assim, conhecer-se do objecto do recurso, no que diz respeito à questão de constitucionalidade reportada ao mencionado acórdão de uniformização de jurisprudência.
[...]'
4. Na reclamação em apreço é suscitada, em primeiro lugar, a questão da inconstitucionalidade da norma contida no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, na interpretação acolhida na decisão sumária reclamada
(supra, 1., alíneas a) a d)). Entende o recorrente que viola o disposto no artigo 32º, n.º 1, da Constituição o proferimento de decisão sumária fora dos casos de 'incumprimento dos formalismos legais exigidos' (supra, 1., alínea b)). Algo contraditoriamente, porém, um entendimento menos restritivo acerca do campo de aplicação do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional é também sustentado no texto da própria reclamação, num trecho anterior ao mencionado: o de que da decisão sumária 'apenas se pode fazer uso se se entender que não pode conhecer-se do objecto do recurso ou que a questão a decidir é simples' (supra,
1., alínea a)). Ora, a decisão reclamada foi proferida justamente por se entender que se não podia tomar conhecimento do objecto do recurso, por falta de preenchimento de certos pressupostos processuais, pelo que no trecho em referência se parece reconhecer a admissibilidade do proferimento da decisão sumária reclamada. De todo o modo, a questão da inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo
78º-A da Lei do Tribunal Constitucional foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional, embora à luz de preceitos constitucionais diversos do invocado. Assim, no ainda inédito acórdão n.º 80/99, de 9 de Fevereiro (proc. n.º 453/98)
– e a propósito da eventual violação, pela norma do n.º 1 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, do disposto nos artigos 280º, 222º e 224º, n.º 2, da Constituição –, entendeu-se o seguinte:
'[...] O artigo 280º da Constituição da República Portuguesa é uma norma atributiva de competência ao Tribunal Constitucional no âmbito da fiscalização concreta, não contendo qualquer regra organizatória interna do Tribunal. Não serve, pois, de suporte à pretensão apresentada na reclamação sub judice. No artigo 222º da Constituição estatui-se sobre a composição do Tribunal Constitucional e sobre o estatuto dos juízes que o compõem, em número de treze. Mas não se indica qualquer regra a que deva obedecer o processo de formação – colegial ou outra – das decisões do Tribunal Constitucional. Afasta-se, por isso, também este fundamento como base de inconstitucionalidade material do artigo 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional. Finalmente, o artigo 224º da Constituição, no seu nº 2, dispõe que:
«A lei pode determinar o funcionamento do Tribunal Constitucional por secções, salvo para efeito de fiscalização abstracta da constitucionalidade e da legalidade». Esta norma constitucional não veda ao legislador ordinário a possibilidade de estabelecer um processo de formação das decisões do Tribunal Constitucional, para os tipos de questões previstas no artigo 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, que assente numa decisão individual. O legislador ordinário goza de liberdade de conformação na definição das regras relativas ao processo de formação das decisões do Tribunal Constitucional. Perante o cada vez maior número de processos no Tribunal Constitucional, o legislador ordinário, sem descurar a necessidade de assegurar uma tutela plena dos direitos dos recorrentes, criou a figura da decisão sumária, para acelerar o processo decisório de determinadas questões. Pode e deve ser proferida decisão sumária relativamente a questões caracterizadas pela sua simplicidade, nesse grupo se incluindo, «designadamente», aquelas que já tiverem sido objecto de julgamento anterior pelo Tribunal Constitucional (cfr. artigo 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional). Prossegue-se, assim, o objectivo da mais célere administração da justiça, em função da menor complexidade do caso, sem esquecer as garantias de defesa das partes. É assegurado o princípio do contraditório, facultando-se ao recorrente a oportunidade de reclamar para a conferência (cfr. nº 3 do referido artigo 78º-A)
– oportunidade que aliás o recorrente utilizou no presente processo. A conferência decide definitivamente as reclamações, desde que haja unanimidade dos juízes intervenientes; não existindo unanimidade, a decisão cabe ao pleno da secção (cfr. nº 4 do mesmo preceito). A Constituição nada determina portanto sobre a organização e o funcionamento das secções do Tribunal Constitucional. Concretamente, não exige a intervenção efectiva de todos os juízes de cada secção em todas as fases do processo. Como ficou dito, segundo o artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, o julgamento em secção realiza-se por diversos modos: decisão individual do relator, decisão pela conferência, decisão pelo pleno da secção. Havendo reclamação da decisão individual do relator, basta que um dos juízes que integram a conferência tenha opinião diferente da do relator para que a decisão final seja tomada pelo pleno da secção. Conclui-se que o regime instituído pelo artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional não contém qualquer violação das regras constitucionais sobre competência, organização e funcionamento do Tribunal Constitucional.
[...].'
No acórdão n.º 550/99, de 14 de Outubro (proc. n.º 305/99), igualmente inédito, também se entendeu que a norma do n.º 1 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional não põe em causa, nem o direito ao recurso, nem o direito de acesso aos tribunais, como afirmara o então reclamante, reiterando-se, pelas razões indicadas no acórdão n.º 80/99, de 9 de Fevereiro, o juízo de não inconstitucionalidade da norma impugnada. A argumentação do ora reclamante não destrói minimamente o entendimento perfilhado nos mencionados acórdãos acerca da conformidade constitucional da norma do n.º 1 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, cuja fundamentação se aceita e para a qual se remete. Acrescente-se, finalmente, que se não alcança o sentido da referência feita pelo reclamante ao disposto no n.º 1 do artigo 32º da Constituição, aliás a única norma constitucional cuja violação é apontada. Na verdade, o processo de que emerge o recurso interposto pelo ora reclamante para o Tribunal Constitucional é um processo de divórcio – isto é, um processo de natureza civil e não um processo de natureza penal –, não tendo qualquer cabimento inferir, da aplicação ao caso do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, uma limitação do direito de recurso e das garantias de defesa do arguido. Resta, portanto, concluir que improcede a questão da inconstitucionalidade da interpretação, perfilhada na decisão reclamada, da norma do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional.
5. Relativamente à parte da decisão sumária reclamada em que se conclui não poder conhecer-se da conformidade constitucional da norma do artigo 653º, n.º 2, do Código de Processo Civil (cfr. n.º 7 da decisão sumária), o reclamante nada alega, pelo que essa parte da decisão é de manter integralmente, na fundamentação e conclusão.
6. Acerca da parte da decisão sumária reclamada em que se conclui não poder conhecer-se do objecto do recurso, no que diz respeito à norma do artigo
201º, n.º 2, do Código de Processo Civil, na medida em que não existe questão de constitucionalidade normativa a apreciar, o reclamante limita-se a alegar o seguinte (supra, 1., alíneas e) a g)):
· Que não imputou a inconstitucionalidade à decisão recorrida, mas à própria norma do artigo 201º, n.º 2, do Código de Processo Civil, quando admite como meio de prova válido uma determinada certidão;
· Que a lei tutela o segredo do aforro e um parecer da Procuradoria-Geral da República consagra-o;
· Que o artigo 32º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa proíbe a utilização de certos meios de prova obtidos mediante violação de certos direitos fundamentais.
Ora, com tal argumentação o reclamante não fundamenta minimamente a sua discordância com a conclusão a que se chegou na decisão sumária. Efectivamente, no recurso que interpôs para este Tribunal pretendia o reclamante a apreciação da norma constante do n.º 2 do artigo 201º do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual seria prova válida a (identificada nos autos) certidão da Junta de Crédito Público, alegadamente obtida mediante violação do segredo bancário e invadindo a vida privada do réu. E na decisão sumária explicou-se que, ao pretender a apreciação dessa interpretação normativa, o recorrente se limitava a questionar a decisão do tribunal recorrido acerca da admissibilidade e possibilidade de utilização de um concreto meio de prova no processo. E não destrói evidentemente esta conclusão a mera alegação de que a lei e a Constituição tutelam o segredo de aforro e a vida privada. Tal alegação apenas indicia que o reclamante pretende afinal a apreciação da conformidade constitucional de uma determinada interpretação – aliás, não identificada – das normas legais que regulam o segredo de aforro ou protegem a vida privada. Normas que, não se confundindo certamente com a do n.º 2 do artigo 201º do Código de Processo Civil e não tendo sido indicadas no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, não podiam ser tidas em conta na decisão sumária reclamada e também não podem ser consideradas na apreciação da reclamação. Na reclamação apresentada não se aduz, portanto, qualquer argumento no sentido de que, no recurso interposto para este tribunal, estava em causa a apreciação da conformidade constitucional de uma interpretação normativa e não de uma decisão judicial. Assim sendo, não existem motivos para alterar a fundamentação e conclusão constantes do n.º 6 da decisão sumária reclamada.
7. Relativamente à parte da decisão sumária em que se conclui, tendo em conta o carácter instrumental do recurso de constitucionalidade, não poder conhecer-se do objecto do recurso quanto à questão de constitucionalidade reportada ao acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 5/94, de 26/11/94
(cfr. n.º 8 da decisão sumária), aduz o reclamante vários argumentos no sentido do conhecimento do objecto do recurso (supra, 1., alíneas h) a n)) que, como se verificará, improcedem totalmente. Segundo o reclamante, o referido acórdão de uniformização de jurisprudência estabeleceria, no que se refere ao ónus da prova dos factos impeditivos de um direito, doutrina contrária à norma do n.º 2 do artigo 342º do Código Civil e, por isso, não seria possível afirmar que 'com o Acórdão Uniformizador ou sem ele a solução dos autos seria sempre aquela que as instâncias acolheram'. Não cabe, naturalmente, ao Tribunal Constitucional determinar se, de acordo com a norma do n.º 2 do artigo 342º do Código Civil, o ónus da prova da culpa no abandono do lar pela recorrida cabia ao recorrente ou à recorrida e, nessa medida, se o referido acórdão uniformizador distribui o ónus da prova de modo diverso. Sempre se dirá, todavia, que carece de sentido a afirmação, constante da reclamação (supra, 1., alínea j)), de que 'nos termos do art. 342º, n.º 2 do CC incumbia à recorrida a prova de que o abandono não lhe poderia ser imputado em termos de culpa', depois de se ter dito que o abandono do lar era um facto impeditivo do direito invocado pela recorrida e, especialmente, depois de se ter reconhecido que o referido preceito do Código Civil determina que a prova do facto impeditivo do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
Ora, não cabendo ao Tribunal Constitucional proceder à interpretação da norma do n.º 2 do artigo 342º do Código Civil e verificar se ela seria aplicável, e em que termos, ao caso dos autos, o único aspecto de que se tratou na decisão sumária foi o de saber se teria alguma utilidade apreciar a questão da conformidade constitucional da norma constante do acórdão de uniformização da jurisprudência apontado pelo reclamante: apreciação que havia sido pedida no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal. E concluiu-se que não, dado que o tribunal recorrido considerou que 'com acórdão uniformizador ou sem ele, a solução dos autos seria sempre aquela que as instâncias acolheram'. E isto porque o tribunal recorrido entendeu que ao caso dos autos seria, sem mais, aplicável o disposto no n.º 1 do artigo 342º do Código Civil. Isto é: o tribunal recorrido entendeu que, nos termos do n.º 1 do artigo 342º do Código Civil, incumbia ao ora reclamante, autor do pedido
(reconvencional) de divórcio, provar que a ré havia abandonado culposamente o lar conjugal, porque a culpa era elemento componente do facto constitutivo do seu direito. O reclamante, pelos vistos, entende que ao caso seria aplicável o n.º 2 do artigo 342º do Código Civil, na interpretação que propugna: isto é, que era à ré que incumbia a prova de que não havia actuado culposamente. E pelos vistos também, da circunstância de não ter encontrado acolhimento na decisão recorrida a interpretação por si defendida do n.º 2 do artigo 342º do Código Civil, e que é a de que a ré do pedido (reconvencional) de divórcio tem o
ónus da prova da ausência de culpa no abandono do lar conjugal – melhor: da circunstância de não ter sido sequer aplicada ao caso a norma do n.º 2 do artigo
342º do Código Civil –, infere que foi aplicada a doutrina do acórdão de uniformização da jurisprudência. Mas esta inferência não obedece a qualquer regra da lógica. Pura e simplesmente, o que sucedeu foi que o tribunal recorrido aplicou a norma do n.º 1 do artigo
342º do Código Civil, como expressamente se refere no texto do acórdão respectivo e se explica na decisão sumária reclamada. E tendo aplicado o n.º 1 desse preceito, não tem qualquer utilidade apreciar a questão colocada pelo reclamante acerca da conformidade constitucional da norma do acórdão de uniformização de jurisprudência e sua eventual contrariedade à norma do n.º 2 do mesmo preceito. Pois que, como se diz no texto da decisão recorrida e mais uma vez se repete, 'com acórdão uniformizador ou sem ele, a solução seria sempre aquela que as instâncias acolheram'. E a circunstância de o reclamante não concordar com tal solução, extraída do n.º 1 do artigo 342º do Código Civil, e propugnar a aplicação do n.º 2 do mesmo preceito, numa certa interpretação, não releva obviamente para a resolução da questão do preenchimento dos pressupostos processuais do recurso para o Tribunal Constitucional.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, julga-se improcedente a alegada inconstitucionalidade da norma do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, e indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão sumária reclamada de não conhecimento do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 22 de Maio de 2001 Maria Helena Brito Vitor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida