Imprimir acórdão
Proc. 218/04
1ª Secção Relator: Cons. Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional:
Em 11MAR2004 foi lavrada a seguinte decisão sumária:
1.1. A. e B. foram condenados no Tribunal Judicial da Comarca de Loures pela autoria de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto nos artigos
21º, n.º1 e 24º, alínea c) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, nas penas de 12 anos e 12 anos e 6 meses de prisão, respectivamente.
A Relação de Lisboa, por via de recurso interposto por aqueles arguidos, alterou esta decisão e, considerando todos os arguidos co-autores materiais de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido no artigo 21º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, condenou-os a 9 anos de prisão.
Inconformados, recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça.
O arguido A. fundamentou o recurso, no que aqui importa e em síntese, em o artigo 410º, n.º3 do Código de Processo Penal dispor que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça pode ainda ter por fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada. É esta a melhor interpretação, afirma, sob pena de a dar-se-lhe outra a mesma ser inconstitucional por contender com o estatuído no artigo 32º, n.º1, da C.R.P. Por outro lado, entende ter sido prejudicado o seu direito à defesa, designadamente em demonstrar que as provas foram obtidas através de métodos proibidos de prova, nomeadamente contraditando as testemunhas, o que no seu entendimento inquina o artigo 323º, al. f) do vício de inconstitucionalidade, por contender com o estatuído no artigo 32º da C.R.P.
Por sua vez, o ora recorrente B. fundamenta o recurso na circunstância de o acórdão padecer dos vícios a que se referem as alíneas do n.º2 do artigo 410º do CPP, suscitando ainda questões já objecto dos recursos interlocutórios entretanto decididos, argui nulidades, insanáveis, que afectariam o processo.
Por acórdão de 11 de Dezembro de 2003 o Supremo Tribunal de Justiça decidiu não tomar conhecimento das questões anteriormente resolvidas nos recursos interlocutórios, e negou provimento ao recurso quanto ao resto.
1.2. Deste acórdão pretendem os arguidos interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
A. fê-lo com fundamento na alínea b) do n.º1 do artigo 70º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC), invocando:
«O douto acórdão recorrido interpretou o artigo 410º n.º3 do CPP com o sentido de que ... está fora do âmbito legal do recurso a reedição dos vícios apontados
à decisão de facto da 1ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento pela relação. Esta interpretação, na medida em que impede o arguido de submeter, mesmo no caso da restrição do recurso a matéria de direito, a um duplo grau de jurisdição em matéria de facto no caso das chamadas nulidades insanadas, é inconstitucional por contender com o estatuído no artigo 32º n.º1 da CRP. A interpretação que melhor se coaduna com aquele comando constitucional deve ser aquela que permita ao arguido suscitar vícios apontados à matéria de facto, mesmo que estejamos perante um caso de restrição da cognição do tribunal de recurso a matéria de direito e se tratem de nulidades insanáveis. Ainda, o douto acórdão da Relação de Lisboa interpretou o artigo 323º al. f) e
327º n.º2 do CPP com o sentido de que não é de admitir que se façam perguntas à testemunha, no decorrer da audiência de julgamento, sobre a intervenção ou não de “um agente infiltrado” na investigação. Esta interpretação, na medida em que impede o arguido de submeter os meios de prova apresentados em audiência ao contraditório, é inconstitucional por contender com o estatuído no artigo 32º da CRP. A interpretação que melhor se coaduna com aquele comando constitucional deve ser aquela que permita ao arguido, perguntar em audiência de julgamento, a uma testemunha, se houve ou não a intervenção de um agente infiltrado e assim garantir-se o contraditório quanto a este meio de prova.»
Por sua vez, B. fundamenta o recurso de constitucionalidade nas alíneas a) e b) do n.º1 do artigo 70º da LTC argumentando que:
«Ao não se pronunciar sobre a totalidade das questões submetidas à sua apreciação, o V.S.T.J., Tribunal ora Recorrido, proferiu Decisão que enferma de vícios que violam princípios e normas constitucionalmente consagradas. Será assim, sempre, necessário e com o devido respeito por melhor e opinião contrária, a pronúncia sobre a legalidade ou não das questões que lhe foram submetidas a decisão e da bondade da interpretação dada pela Decisão em crise, aferindo-se se a mesma enferma ou não de vício face aos precitos constitucionais vigentes...
...visto as consequências das declarações das nulidades suscitadas e arguidas, serem susceptíveis de enquadrar (ou não) situações previstas na Lei fundamental e, na óptica do recorrente com as mesmas colidirem. E, poderem ter efeitos processuais, constitucionalmente consagrados – artigos
18º, 29º e 32º, todos da Constituição da República Portuguesa.»
2. Os recursos foram admitidos mas, como é sabido, tal decisão não vincula o Tribunal Constitucional (n.º3 do artigo 76º da LTC).
2.1. Pretende o recorrente A., com invocação da alínea b) do n.º1 do artigo
70º da LTC, ver apreciada a constitucionalidade da norma do artigo 410º, n.º3 do Código de Processo Penal, por ter sido aplicada por forma a impedir o arguido de submeter a um duplo grau de jurisdição a matéria das chamadas nulidades insanáveis, o que contende com o estatuído no artigo 32º da Constituição.
Aquela decisão fez apelo ao sistema de recursos resultante da reforma processual penal de 1998 para concluir: está fora do âmbito legal do recurso a reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento pela Relação – trecho apontado pelo recorrente como a interpretação inconstitucional do referido artigo.
Pode ler-se no acórdão recorrido:
«Actualmente, com efeito, quem pretenda impugnar um acórdão final do tribunal colectivo, de duas uma: - se visar exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 432º d), dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de Justiça; - ou, se não visar exclusivamente o reexame da matéria de direito, dirige-o, “de facto e de direito”, à Relação, caso em que da decisão desta, se não for “irrecorrível nos termos do art. 400º”, poderá depois recorrer para o STJ (artº 432º b). Só que, nesta hipótese, o recurso – agora, puramente, de revista – terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais vícios, processuais ou de facto, do julgamento de 1ª instância), embora se admita que, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa do Supremo para além do que tenha de aceitar-se já definitivamente decidido pela Relação, em último recurso, aquele se abstenha de conhecer do fundo da causa e ordene o reenvio nos termos processualmente estabelecidos. E é só aqui – com este âmbito estrito – que o Supremo Tribunal de Justiça pode ter de avaliar da subsistência dos aludidos vícios da matéria de facto.»
Quando o recorrente se refere a um duplo grau de jurisdição em matéria de facto parece querer apontar para um duplo recurso, uma vez que a decisão da 1ª instância já tinha sido apreciada por um tribunal superior (o da Relação).
Ora, se o n.º 1 do artigo 32º da Constituição interpreta o direito ao recurso em processo penal como uma das garantias de defesa do arguido, não consagra o direito a um duplo recurso ou a um triplo grau de jurisdição, como parece pretender o recorrente .
Deste modo, e ainda que não seja seguro que tenha sido aplicada na decisão recorrida a norma acusada de inconstitucional, é manifestamente infundado o recurso quanto a esta questão de constitucionalidade.
No que respeita à questão da interpretação da alínea f) do artigo 323º e n.º2 do artigo 327º, ambos do Código de Processo Penal, feita pela decisão da Relação e que, na perspectiva do recorrente, colide com o artigo 32º da Constituição, importa desde logo esclarecer que a decisão aqui recorrida é o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e não aquela outra decisão. Ora, o acórdão recorrido decidiu não tomar conhecimento dessa questão uma vez que, tendo sido objecto de recurso interlocutório para o Tribunal da Relação e não versando sobre o fundo da causa, não podia – nos termos da alínea c) do n.º1 do artigo 400º do Código de Processo Penal – ser objecto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
As referidas normas não foram, portanto, aplicadas na decisão recorrida, falecendo um pressuposto de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º1 do artigo 70º da LTC .
2.2. Quanto ao recurso interposto, ao abrigo das alíneas a) e b) do nº1 do artigo 70º da LTC, por B.:
O recurso previsto na alínea a) cabe das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade.
O recorrente não indicou a norma cuja inconstitucionalidade pretende que o tribunal aprecie, mas é manifesto que o acórdão recorrido não recusou a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade, o que desde logo afasta a possibilidade de recurso nos termos da alínea a) do n.º1 do artigo
70º da LTC.
Mas também se não mostram verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º1 do artigo 70º da LTC.
Com efeito, este recurso cabe das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo e só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da constitucionalidade ou da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (n.º2 do artigo 72º da LTC).
O recorrente não identifica a norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade pretende ver apreciada e também não refere a peça processual onde teria suscitado a questão de constitucionalidade (n.º2 do artigo 75º-A da LTC).
Mas, também neste caso, se não justifica o convite – previsto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 75º-A da LTC – para prestar essas indicações, pois a verdade é que o recorrente não suscitou qualquer questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido, o que se constata pela leitura das alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, além de que, face aos termos em que a questão é colocada, o vício de inconstitucionalidade é imputado à própria decisão recorrida e não a qualquer norma nela aplicada para decidir.
Conforme o Tribunal Constitucional tem afirmado repetidamente, o controlo de constitucionalidade que nos recursos das decisões dos outros tribunais lhe é atribuído só pode ter por objecto normas jurídicas aplicadas em tais decisões, ou normas jurídicas cuja aplicação tenha sido recusada com fundamento em inconstitucionalidade, pois as decisões judiciais, consideradas em si mesmas, não podem ser objecto de tal controlo.
Em suma, não tendo sido suscitada pelo recorrente, de modo processualmente adequado, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, não se mostram preenchidos os requisitos deste tipo de recurso.
3. Pelo exposto e ao abrigo do n.º1 do artigo 78º-A da LTC julga-se manifestamente infundado o recurso respeitante ao n.º3 do artigo 410º do CPP, não se tomando conhecimento dos recursos, quanto ao restante.
Contra esta decisão reclama B. por entender, fundamentalmente, que “poderia e deveria ter sido convidado a suprir as falhas e imprecisões do mesmo
[requerimento], nos termos do preceituado no artigo 75º-A ns 5 e 6 da LTC, pois que peças há nos autos onde se suscitaram questões de constitucionalidade perante o Tribunal recorrido e que não se assacam, propriamente, à decisão impugnada”.
Todavia, conforme aliás se explicou na decisão reclamada, neste caso não se justifica o convite previsto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 75º-A da LTC para que o requerimento de recurso possa ser corrigido, “pois a verdade é que o recorrente não suscitou qualquer questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido, o que se constata pela leitura das alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, além de que, face aos termos em que a questão é colocada, o vício de inconstitucionalidade é imputado à própria decisão recorrida e não a qualquer norma nela aplicada para decidir.”
A verdade é que a presente reclamação em nada infirma esta decisão, nela não se ensaiando, sequer, identificar as questões de constitucionalidade que – ao contrário do que afirmou – o reclamante declara ter adequadamente suscitado.
Em face do exposto, decide-se manter a reclamada decisão de não conhecimento do recurso interposto pelo recorrente B.. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 13 de Abril de 2004
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos