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Proc. n.º 162/03 TC - 1ª Secção Rel.: Consº Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 - O Ministério Público interpõe recurso para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70º n.º 1 alínea a) da LTC, da sentença de fls. 123 e segs. que recusou, por inconstitucionalidade material (violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 29º n.º 1 da CRP) a aplicação do artigo 40º n.º
2 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na interpretação de que é criminalmente punível o consumo de estupefacientes em que a quantidade detida exceda o necessário para o consumo médio individual durante o período de dez dias.
Nas suas alegações, o recorrente formula as seguintes conclusões:
'1 - A apreciação da questão da manutenção em vigor do disposto no artigo 40º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, de modo a abarcar situações de consumo de estupefacientes em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias, por não Ter sido revogado pelo artigo 28º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, não consubstancia uma questão de inconstitucionalidade normativa, por eventual violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 29º n.º 1 da Constituição.
2 - Apenas está em causa o mérito de uma determinada decisão judicial interpretativa da norma, face à existência daquele princípio, cuja apreciação está excluída da competência do Tribunal Constitucional, pelo que não deverá tomar-se conhecimento do objecto do presente recurso.'
Não houve contra-alegações.
Cumpre decidir.
2 - Como se deixou transcrito, o recorrente limitou-se nas suas alegações a suscitar a questão prévia do não conhecimento do objecto do recurso, por não estar em causa uma questão de inconstitucionalidade normativa.
Vejamos se é assim.
A sentença recorrida, na parte em causa, afrontou a questão de saber se, com a norma revogatória constante do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 30/2000, teria sido descriminalizada a detenção para consumo de estupefacientes em quantidade que exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
A esta questão havia já sido dada resposta negativa por Acórdão da Relação de Lisboa e é tomando em conta a interpretação feita neste aresto que a sentença ora recorrida afasta a aplicação do disposto no artigo 40º do Decreto-Lei n.º 15/93 em termos de abarcar aquela situação.
O fundamento desta recusa de aplicação assenta claramente no que na sentença se considera ser o apelo à analogia.
Escreve-se, na referida sentença:
'Afigura-se que há, realmente, uma lacuna da regulamentação legal no que toca às comprovadas situações de consumo de estupefacientes em que a quantidade detida exceda o necessário para o consumo médio individual durante o período de dez dias.'
E mais adiante:
'O douto Acórdão da Relação de Lisboa proferido nos autos apensos de recurso (...) dá conta da lacuna legal e intenta resolvê-la de uma forma que, salvo o devido respeito, mais não representa do que o recurso à analogia.
Crê-se que é ao legislador e não ao aplicador da Lei que cumpre atalhar a tal lacuna legal: esta é a exigência do princípio da legalidade
(...).'
Nesta medida, a sentença impugnada recusa a aplicação da norma por violação do artigo 29º n.º 1 e 1º da CRP.
Ora, sobre a violação do princípio da legalidade em matéria de incriminação, decidiu o Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 674/99), numa linha jurisprudencial que, embora não pacífica, aqui se segue:
'50. O Tribunal Constitucional, pela sua 2ª Secção, começou por considerar que, em tais casos, se estaria perante «a inconstitucionalidade do acto de julgamento, e não a inconstitucionalidade de uma norma jurídica», pelo que se lhes não aplicaria o sistema de fiscalização da constitucionalidade, ao qual estão «apenas sujeitos os actos do poder normativo» (cfr. Acórdão nº
353/86, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8º vol., págs. 571 e segs.).
Contudo, mais tarde, no Acórdão nº 141/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., págs. 599 e segs.), o Tribunal Constitucional, pela sua 1ª Secção, embora com o voto de vencido do Exmº Presidente, Consº Cardoso da Costa, deu resposta afirmativa ao problema. Afirmou-se então:
De facto, poderia sustentar-se que o Tribunal Constitucional carecia de competência para conhecer do objecto deste recurso, porquanto não estaria em causa propriamente matéria normativa (norma inconstitucional, numa certa interpretação da mesma), mas matéria decisória (o Supremo Tribunal de Justiça, ao confirmar a decisão condenatória da primeira instância, teria aplicado analogicamente uma norma incriminatória, em contravenção imediata ao disposto no artigo 1º, nº 3, do Código Penal, só mediatamente se podendo considerar que esta decisão judicial teria violado os nºs. 1 e 3 do artigo 29º da Constituição
[...].
Não obstante o carácter sugestivo deste raciocínio, crê-se que o mesmo não procede. De facto, o recorrente suscitou no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a questão de inconstitucionalidade da norma [...]. Sustentou aí que o tribunal havia interpretado extensivamente ou aplicado analogicamente certa norma incriminatória, sendo tal interpretação ou aplicação analógica através da criação de uma norma análoga aplicável a um caso omisso, contrárias à Constituição (no caso de se estar perante uma interpretação extensiva, seria também esta inconstitucional tal como o seria, por idêntica razão, o nº 3 do artigo 1º do Código Penal).
Ora, num plano perfunctório de análise de verificação dos pressupostos do recurso de constitucionalidade, ou seja, numa avaliação prima facie de tais pressupostos, entende-se que os mesmos se verificam no caso concreto. Saber se a interpretação perfilhada foi ou não inconstitucional faz parte já do conhecimento da questão de fundo ou de mérito. [...]
51. Esta última jurisprudência, porém, não se sedimentou. Com efeito, posteriormente, o Tribunal Constitucional veio a entender, nomeadamente no Acórdão nº 634/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29º vol., págs. 243 e segs.), no Acórdão nº 221/95, (Diário da República, II Série, de 27 de Junho de
1995), no Acórdão nº 756/95, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., págs. 775 e segs.), no Acórdão nº 682/95, (inédito) ou, mais recentemente, no Acórdão nº 154/98 (inédito), que hipóteses em que se questionem certas interpretações normativas por ofensa do princípio da legalidade penal - ou hipóteses idênticas, no âmbito do respeito pelo princípio da legalidade fiscal - não traduzem verdadeiras questões de inconstitucionalidade normativa, mas reflectem antes questões de inconstitucionalidade da própria decisão recorrida ou do acto de julgamento.
Assim, pode ler-se no citado Acórdão nº 221/95:
Portanto, o que a recorrente questiona, no essencial, no recurso interposto no tribunal a quo, não é a norma [...] interpretada em desarmonia com a Constituição, mas, antes, a decisão judicial [...] que, inconstitucionalmente, e na sua tese, tê-la-ia prejudicado, ao aplicar certa norma ao seu caso, através de um método de interpretação colidente com as regras gerais de interpretação das leis fiscais e os princípios constitucionais na matéria [...].
E, por outro lado, escreveu-se no já mencionado Acórdão nº
154/98:
Pretende o recorrente que o Tribunal recorrido interpretou a norma do artigo 292º do Código Penal de forma extensiva, aplicando-o analogicamente, desde logo violando o disposto no nº 1 do artigo 29º da Constituição.
No entanto, não é o controlo normativo - legitimante do recurso de constitucionalidade - que está em causa.
[...]
Ora, esse objectivo não se compagina com aquele controlo normativo, abrindo via, quando muito, a um recurso de amparo que não está entre nós previsto.
E sublinhe-se também que no anteriormente referido Acórdão nº
682/95 se entendeu sugestivamente que, em tais hipóteses, «o que está em causa não é uma específica dimensão normativa do preceito», mas antes «a determinação do seu âmbito de aplicação, de acordo com a sua ratio», tarefa que «corresponde apenas à subsunção jurídica do caso, não havendo nenhum sentido específico da norma confrontável com a Constituição». Por isso, aí mesmo se concluiu que não estaria em causa «qualquer específica questão de constitucionalidade, mas apenas um problema de averiguação da intenção normativa, objectivamente considerada, e de subsunção».
52. Mais recentemente, porém, esta posição do Tribunal - que já não era totalmente unânime (cfr. declarações de voto do Exmo. Conselheiro José de Sousa Brito apostas ao Acórdão nº 634/94 e ao Acórdão nº 756/95) - parece ter-se inflectido através do Acórdão nº 205/99 (Diário da República, II Série, de 5 de Novembro de 1999) e do Acórdão nº 285/99 (Diário da República, II Série, de 21 de Outubro de 1999).
Com efeito, entendeu-se no citado Acórdão nº 205/99:
É objecto do presente recurso de constitucionalidade o confronto de uma interpretação do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982 com os artigos 29º, nºs 1 e 2 e 32º, nºs 1 e 4, da Constituição.
Consubstancia um tal confronto uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa para cujo conhecimento o Tribunal Constitucional tem competência ou estar-se-á, apenas, perante o pedido de apreciação de uma eventual contradição da decisão recorrida, na sua substância meramente decisória, com a Constituição?
Impõe-se o entendimento segundo o qual o Tribunal Constitucional se confronta, neste caso, com uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, apesar de tal questão resultar de o tribunal recorrido ter atingido um resultado interpretativo eventualmente proibido, em face das restrições interpretativas impostas pelo princípio da legalidade em direito penal.
Com efeito, várias razões intercedem a favor de que a questão colocada não pretende suscitar o mero controlo pelo Tribunal Constitucional da decisão recorrida.
Assim, desde logo, o recorrente não submete à apreciação do Tribunal Constitucional um processo interpretativo utilizado pontualmente na decisão recorrida, isto é, a inserção do caso concreto num âmbito normativo pré-determinado pelo julgador. Não é um tal momento de sotoposição do caso no quadro lógico decorrente da interpretação da norma o que verdadeiramente se questiona, mas antes um certo conteúdo interpretativo atribuído ao artigo 120º, nº 1, alínea a), o qual é identificado. Questiona-se, sem dúvida, se a fixação de sentido da norma, segundo a qual esta abrangerá, em geral, na interrupção da prescrição, a notificação ao arguido do despacho do Ministério Público para interrogatório no inquérito e a realização deste“ é uma interpretação normativa compatível com a Constituição, em face dos artigos 29º, nºs 1 e 3 e 32º, nºs 1 e
4. É, assim, o conteúdo final da interpretação, ou dito de outro modo, o resultado interpretativo pelo qual se atinge a norma que decide o caso, norma que eventualmente não tem competência constitucional para o decidir, que é submetido ao controlo de constitucionalidade.
A isto acresce que o referido conteúdo interpretativo não é apenas determinado pelo caso concreto, mas é referido com elevada abstracção, na base de uma linha jurisprudencial anterior que utilizou a mesma perspectiva interpretativa para casos idênticos.
Emerge, assim, claramente, de um momento interpretativo a questão de constitucionalidade. Não se trata de um momento meramente aplicativo da norma ao caso concreto, isto é, de uma situação em que o recorrente suscite apenas a correcção lógico-jurídica da inclusão do caso na norma. Trata-se, antes, da indicação, com suficiente autonomia, dos critérios jurídicos genérica e abstractamente referidos pelo julgador ao texto legal para decidir casos semelhantes. Neste caso, foi enunciada pelo julgador uma dimensão normativa que, segundo o recorrente, não corresponde fielmente às palavras do legislador, violando, por isso, o princípio da legalidade, sendo essa dimensão normativa que o recorrente pretende ver apreciada.
Ora, o Tribunal Constitucional não pode deixar de controlar dimensões normativas referidas pelo julgador a uma norma legal ainda que resultantes de uma aplicação analógica, em casos em que estejam constitucionalmente vedados certos modos de interpretação ou a analogia. O resultado do processo de interpretação ou criação normativa (tanto de meras dimensões normativas como de normas autónomas), ínsito na actividade interpretativa dos tribunais, não pode deixar de ser matéria de controlo de constitucionalidade pelos tribunais comuns e pelo Tribunal Constitucional, quando a própria Constituição exigir limites muito precisos a tais processos de interpretação ou criação normativa, não reconhecendo qualquer amplitude criativa ao julgador.
Questão afim da anterior é a de saber se o objecto do recurso é efectivamente o artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal ou antes uma norma construída pelo julgador através de um processo de integração de lacuna por analogia, nos termos do artigo 10º, nºs 1 e 2, do Código Civil. Note-se, porém, que em ambos os casos estaremos confrontados com uma norma cuja conformidade à Constituição é sindicável perante o Tribunal Constitucional. Na primeira hipótese, concluir-se-á que a aplicação analógica ainda constitui uma actividade interpretativa, em sentido amplo, dando como resultado uma certa dimensão normativa que pode contrariar normas ou princípios constitucionais. Na segunda hipótese, estará em causa uma norma não escrita igualmente susceptível de afrontar a Constituição quer quanto ao seu conteúdo quer quanto à sua génese (a circunstância de ser obtida mediante uma aplicação analógica vedada pelo artigo
29º, nºs 1 e 3, da Constituição feri-la-á de inconstitucionalidade material).
Todavia, esta questão acaba por ser de cunho puramente teorético na medida em que estará sempre em causa a questão de saber se é compatível com a Constituição a norma que determina a interrupção da prescrição obtida a partir do artigo 120º, nº 1, alínea a) do Código Penal. E, independentemente de estar em causa uma interpretação extensiva ou aplicação analógica desta norma legal, o que se pergunta é se a norma, dimensão, sentido ou interpretação obtidos contrariam ou não, na sua génese, o princípio da legalidade e, em concreto, a exigência de lex certa que lhe é ínsita.
Também este aresto não obteve unanimidade.
Com efeito, o Exmo. Conselheiro-Presidente manifestou opinião contrária à doutrina que obteve vencimento - em voto de vencido que juntou a este mesmo Acórdão nº 205/99 - tendo então considerado que se não deveria conhecer do recurso, «por entender que o seu objecto extravasa o âmbito da competência e do poder de cognição do Tribunal», e que a argumentação desenvolvida em contrário no acórdão não punha em crise a conclusão «de que, ao cabo e ao resto, já não está em causa, na situação, uma questão de inconstitucionalidade “normativa” – tal como o não estava nos casos versados nos Acórdãos nº 682/95 e 221/95, os quais [...] não são “estruturalmente” diferentes do ora em apreço».
Posição idêntica de afastamento relativamente a esta nova corrente jurisprudencial viria também posteriormente a ser manifestada pelo ora relator, através de declaração de voto aposta, por sua vez, ao mencionado Acórdão nº 285/99.
53. Acerca da questão em apreço, designadamente da eventual extensão do sistema de controlo da constitucionalidade às normas que se extraem da integração de lacunas, afirma Rui Medeiros (A Decisão de Inconstitucionalidade - Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999, págs.
340 a 342):
A conclusão adoptada não significa, porém, que o Tribunal Constitucional possa fiscalizar a constitucionalidade, não já da norma determinada através do processo de integração de lacunas, mas antes do próprio processo de obtenção da regra aplicável. A questão ganha particular relevância nos domínios em que existe uma proibição constitucional de recurso à analogia. É o que sucede, concretamente, com o princípio constitucional da legalidade em matéria penal.
Há quem entenda que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que, aplicando analogicamente uma norma incriminadora, violam o princípio constitucional da legalidade em matéria penal.
Não duvidamos que essa é a solução mais consentânea com a lógica do recurso de amparo ou da queixa constitucional. Mas, já o sabemos, o legislador constitucional português não quis introduzir um sistema semelhante ao da acção constitucional de defesa de direitos fundamentais. Ora, independente da questão de saber se a violação do nullum crimen sine lege stricta envolve ou não uma inconstitucionalidade directa, a verdade é que, quando invoca a proibição da analogia, o que o recorrente suscita é «a inconstitucionalidade do acto de julgamento e não a inconstitucionalidade de uma norma jurídica». Sem dúvida que, nos casos em que um tribunal interpreta uma lei em desconformidade com a Constituição, a inconstitucionalidade não pode apenas ser imputada ao legislador, pois, sendo possível atribuir à lei um sentido conforme com a Constituição, a disposição legal em si é válida. Mas, na hipótese aqui em apreciação, a inconstitucionalidade, ainda que se convole numa inconstitucionalidade material, reporta-se unicamente ao processo de integração de lacunas adoptado pelo tribunal. Ora, uma coisa é dizer que a norma que um tribunal extrai, ainda que por analogia, de um acto normativo pode ser fiscalizada pelo Tribunal Constitucional, outra, bem diferente, á afirmar que a própria decisão jurisdicional constitui um acto normativo sindicável pelo Tribunal Constitucional. De resto, se assim não fosse, «todas as decisões judiciais, enquanto tais, susceptíveis de fiscalização da constitucionalidade
(...). E assim se defraudaria a Constituição, que expressamente pretendeu que o controlo da constitucionalidade fosse um controlo eminente normativo.
Tudo somado, é possível concluir que, nos casos em que o próprio legislador pode (sem ofender a Constituição) estabelecer por via legislativa solução idêntica àquela que resultava da interpretação ou integração inconstitucional da lei realizada pelo tribunal a quo, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso.
É para a transcrita fundamentação lógica - válida necessariamente, tanto para as formas não admissíveis de interpretação extensiva, como para a interpretação analógica - que ora se remete, assim se confirmando a jurisprudência deste Tribunal seguida entre 1994 e 1998 e vertida nos arestos anteriormente citados.
Com efeito, o recorrente não questiona que o conteúdo da norma, com a interpretação adoptada, seja compatível com o texto constitucional
– nomeadamente, não questiona que a norma em causa pudesse proceder, por opção expressa do legislador, à referida incriminação quando ocorresse apenas reserva mental de incumprimento. O que vem questionado pelo recorrente nos presentes autos é tão-só que o julgador possa alcançar esse mesmo conteúdo normativo através de um processo interpretativo, já que, ao fazê-lo através de uma forma desrespeitadora dos limites fixados à interpretação da lei criminal, viola necessariamente o princípio da legalidade penal. Ou seja, não se questiona que o comportamento do recorrente possa ser objecto de uma incriminação, apenas se questiona se ele preenche efectivamente o tipo legal do crime de burla.
Conclui-se, assim, inequivocamente, que o que vem impugnado pelo recorrente não é a norma, em si mesma considerada, mas antes, a decisão judicial que a aplicou, por via de um processo interpretativo constitucionalmente proibido.
Ora, tal questão – por não respeitar a uma inconstitucionalidade normativa, mas antes a uma inconstitucionalidade da própria decisão judicial - excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, uma vez que, entre nós, não se encontra consagrado o denominado recurso de amparo, designadamente na modalidade do amparo contra decisões jurisdicionais directamente violadoras da Constituição.
De todo o modo, mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma «operação equivalente», designadamente a uma interpretação «baseada em raciocínios analógicos» (cfr. declaração de voto do Consº Sousa e Brito ao citado Acórdão nº 634/94, bem como o já mencionado Acórdão nº 205/99), o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade.
Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal). E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se dedicam os tribunais – designadamente os tribunais supremos de cada uma das respectivas ordens -, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu
«sentido natural» (e qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica.
Ora, um tal entendimento - alargando de tal forma o âmbito de competência do Tribunal Constitucional - deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade normativa. Assim, por exemplo, e no caso dos autos, para decidir a questão de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional seria, em primeira linha, chamado a resolver as controvérsias doutrinais respeitantes à factualidade típica do crime de burla (cfr., verbi gratia, José de Sousa e Brito, A burla do artigo 451º do Código Penal – Tentativa de sistematização, Scientia Ivridica, Tomo XXXII, 1983, págs. 131 e segs.; e Maria Fernanda Palma e Rui Pereira, O Crime de Burla no Código Penal de 1982-95, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXV, 1994, págs. 321 e segs.). '
O entendimento que se acaba de transcrever e - como se disse
- aqui se segue, foi adoptado no âmbito de recurso interposto ao abrigo do artigo 70º n.º 1 alínea b), ou seja em recurso onde o recorrente questionava a constitucionalidade da norma aplicada com fundamanto em violação do princípio da legalidade.
O facto, porém, de o presente recurso, interposto ao abrigo do artigo 70º n.º 1 alínea a) da LTC, recair sobre uma recusa de aplicação de norma com aquele mesmo fundamento, não altera os termos da questão, uma vez que o thema decidendum acaba de igual modo por se traduzir na sindicância do processo interpretativo (aqui, do processo de integração de lacuna) e não da norma (desaplicada), o que está fora da competência do Tribunal Constitucional.
Tem, pois, razão, o Recorrente quando sustenta que o Tribunal não pode conhecer do objecto do recurso.
3 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, não se conhece do objecto do recurso.
Sem custas.
Lisboa, 15 de Julho de 2003 Artur Maurício Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Luís Nunes de Almeida
Declaração de voto
Diferentemente da opinião que fez vencimento, entendi, em consonância com o decidido designadamente nos Acórdãos nºs. 205/99, 285/99 e
122/00, que o Tribunal deveria ter conhecido do objecto do recurso. Na impossibilidade de expor agora em detalhe as razões que me conduziram a esta conclusão, e que no essencial coincidem com a exposta na fundamentação daqueles acórdãos e em declaração de voto da Conselheira Maria dos Prazeres Beleza anexa ao Acórdão nº 383/2000, limitar-me-ei a referir que, no meu entender, a questão posta pelo requerente – a da eventual manutenção em vigor do disposto no artigo
40, nº 2, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, de modo a abarcar situações de consumo de estupefacientes em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias, por não ter sido revogado pelo artigo 28º da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro – se apresenta como uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, como tal necessariamente abrangida pela competência deste Tribunal. Na verdade, a sentença contestada fez manifestamente aplicação de um critério normativo de decisão válido para toda a gama de casos que apresentem idênticas características, de uma regra abstractamente enunciada para uma aplicação genérica, que por isso há-de ser visto como uma norma, para efeitos do recurso de inconstitucionalidade previsto na alínea b) do número 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Não constitui obstáculo a esta conclusão a circunstância de tal norma resultar de uma interpretação de um ou mais preceitos normativos. Como igualmente não procede, a meu ver, para contrariar aquela conclusão, o argumento
(extrínseco à questão que nos ocupa) de tal norma ter sido obtida em violação do princípio da legalidade criminal. Embora esse facto fosse por si só constitucionalmente censurável, não se vê que isso baste (ou seja sequer pertinente) para questionar a natureza normativa do critério aplicado na decisão recorrida, e que nela é visto essencialmente como um resultado interpretativo susceptível de ser aplicado a uma pluralidade de situações, conquanto se apresente como o fruto de um determinado processo hermenêutico.
Ademais, pretender que a sindicância de um tal resultado pelo Tribunal Constitucional implica que à apreciação deste se submeta toda a interpretação judicial das normas penais é esquecer que os vícios de que esta actividade pode enfermar ultrapassam claramente o plano da desconformidade às regras constitucionais.
Votei assim no sentido do conhecimento do objecto do recurso e, pelas razões constantes do Acórdão nº 295/2003, que subscrevi, não me pronunciaria pela inconstitucionalidade da interpretação normativa mediatizada pela decisão recorrida.
Rui Moura Ramos