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Proc.º n.º 707/2000.
2.ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
(Consª Maria Fernanda Palma)
I
1. Por sentença proferida no 6º Juízo Cível do Tribunal de comarca de Vila Nova de Gaia e em processo de providência cautelar não especificada intentada por A..., foi determinado, ou que a requerida sociedade J..., S.A., se abstivesse de proceder a uma escritura pública por intermédio da qual procederia
à aquisição compulsiva das acções da sociedade S..., S.A., que eram detidas pelos accionistas que não tinham aceite uma oferta pública de venda, ou que, no caso de tal escritura já ter sido realizada, que a dita requerida se abstivesse de proceder ao registo e publicação da aquisição que ocorrera por intermédio dessa escritura eventualmente realizada.
Para assim decidir, inter alia, a Juíza daquele Juízo recusou aplicar, por inconstitucionalidade material, a norma ínsita no artº 490º do Código das Sociedades Comerciais.
Tendo daquela decisão e pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, sido interposto recurso para o Tribunal Constitucional, este órgão de administração de justiça, por intermédio do seu Acórdão nº 442/2000 (que veio a ser publicado na 2ª Série do Diário da República de 5 de Dezembro de 2000), veio a confirmar a decisão sumária proferida pela Relatora e de harmonia com a qual se não tomou conhecimento do objecto do recurso, pois que se entendeu que, '[v]isando os procedimentos cautelares uma solução provisória, [era] no processo principal que
[haviam de] ser dirimidas as questões substantivas, aí decidindo em definitivo a matéria da (in)constitucionalidade, pelo que não [havia] que conhecer do recurso'.
Remetidos os autos ao Tribunal a quo, a requerida agravou para o Tribunal da Relação do Porto. Este Tribunal negou provimento ao agravo por acórdão de 7 de Novembro de 2000, para tanto tendo igualmente recusado a aplicação, fundado num juízo de inconstitucionalidade material, da norma vertida no artº 490º do aludido Código das Sociedades Comerciais.
Desse aresto de novo veio o Ministério Público interpor recurso para o Tribunal Constitucional, estribado nos citados alínea, número e artigo da Lei nº 28/82.
Determinada a feitura de alegações, concluiu o recorrente a por si formulada com as seguintes «conclusões»:-
'1º - A norma constante do artigo 490º do Código das Sociedades Comerciais, ao regular o procedimento de aquisição tendente ao domínio total das sociedades em relação de grupo, institui uma verdadeira expropriação por utilidade particular a favor da sociedade que disponha de 90% do capital da sociedade dominada, facultando-lhe, em termos estritamente p[]otestativos, a aquisição forçada da fracção remanescente do capital de que eram titulares os sócios da sociedade dominada.
2º - Constitui restrição excessiva e desproporcionada ao direito de propriedade destes sócios minoritários sobre os títulos ou quotas que expressam os seus direitos societários a circunstância de tal expropriação por utilidade particular não implicar a necessidade de alegação ou demonstração da essencialidade da pretendida concentração total, como condição necessária e indispensável do êxito do projecto de agrupamento ou concentração de empresas.
3º - Na verdade, tal faculdade da sociedade dominante não pressupõe a existência, real ou plausível, de uma ‘minoria de bloqueio’ por parte dos detentores do capital remanescente, tal como não implica que se alegue ou demonstre, de um ponto de vista de racionalidade económica ou de gestão, a necessidade da pretendida concentração total.
4º - Sendo ainda certo que a norma que constitui objecto deste recurso não tutela satisfatoriamente os interesses dos sócios minoritários a expropriar e excluir do grémio social, já que não lhes permite qualquer participação nas decisões em que se fundamenta a pretendida aquisição total e nem sequer lhes garante plenamente o direito a uma justa indemnização.
5º - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida'.
De sua banda, o recorrido não alegou.
2. Não tendo obtido vencimento o memorando apresentado pela primitiva Relatora no sentido de se tomar conhecimento do objecto do recurso, foram os autos «conclusos» ao primeiro Juiz que obteve vencimento, o qual proferiu «parecer» nos termos do artº 704º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artº 69º da Lei nº 28/82.
O Representante do Ministério Público junto deste órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa, ouvido sobre o
«parecer» elaborado pelo relator por vencimento, veio sustentar que, no caso de decisões puramente precárias e insusceptíveis de impugnação autónoma no ordenamento processual comum, porque necessariamente consumidas por ulterior decisão do tribunal, ou no caso de decisões que carecem em absoluto de verdadeira autonomia, já que se integram e complementam a decisão originariamente proferida, não seria de admitir os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa; mas, nas situações em que em causa estão procedimentos cautelares, então as respectivas decisões, porque até passíveis de impugnação na ordem jurisdicional competente e porque são susceptíveis de afectar direitos e interesses das partes, deveriam admitir aquela espécie de recurso.
O recorrido, por seu turno, não emitiu juízo sobre o aludido
«parecer».
Cumpre decidir.
II
3. Continua este Tribunal a entender que, no caso sub specie, deve ser mantida a sua jurisprudência já firmada por intermédio dos seus Acórdãos números 151/85, 400/97, 664/97 (publicados na 2ª Série do Diário da República de, respectivamente, 31 de Dezembro de 1985, 17 de Julho de 1977 e 18 de Março de 1988) e 442/2000, este já citado.
Neste contexto - e independentemente da questão de saber se, in casu, o não conhecimento do objecto do recurso se poderia fundar na circunstância de, nos vertentes autos, se ter efectivado caso julgado formal quanto ao problema da incompetência do Tribunal Constitucional para curar de um recurso visando a fiscalização concreta da constitucionalidade normativa respeitantemente a decisões aqui tomadas, por isso que se trata de uma providência cautelar - por mera comodidade, ir-se-ão transcrever alguns passos de relevo que foram carreados, à guisa de fundamentação, ao último dos indicados arestos e com os quais a maioria subscritora deste aresto se identifica.
4. Assim, disse-se no Acórdão nº 442/2000:-
'........................................................................................................................................................................................................................................................................................
2. Para justificar que o objecto do recurso deveria ser julgado, o Ministério Público, citando os acórdãos nºs 92/87 e 466/95, começou por relembrar que a jurisprudência do Tribunal Constitucional se encontra dividida quanto à questão ‘de saber se deverá constituir pressuposto dos recursos de fiscalização concreta a exigência de que seja definitiva a decisão recorrida – de modo a denegar a admissibilidade de recurso perante decisões meramente provisórias’.
Em seu entender, deve ser revista a jurisprudência em que se baseou a decisão reclamada.
Em síntese, desde logo, porque não tem cabimento distinguir, para o efeito em causa, decisões sobre matéria adjectiva ‘(admitindo, quanto a elas, a possível interposição de recursos de constitucionalidade)’ e decisões de mérito,
‘concedendo ou denegando a providência requerida, com o argumento de que nela se não contém regulação definitiva do litígio’, até porque aquelas são instrumentais relativamente a estas.
Além disso, e tal como se afirma no citado acórdão nº 466/95, porque as medidas decretadas no âmbito de procedimentos cautelares podem ter efeitos irremovíveis na esfera jurídica das partes, nomeadamente afectando direitos fundamentais seus, de forma a que a decisão a proferir na acção principal os não possa fazer desaparecer, não se justificando que o Tribunal Constitucional não possa fiscalizar uma eventual inconstitucionalidade que afecte a norma que as permitiu.
Finalmente, porque desde a revisão constitucional de 1997 que a justiça cautelar, enquanto meio de garantir o acesso ao direito e aos tribunais em prazo razoável, tem tutela constitucional (nº 5 do artigo 20º da Constituição). Ora seria incompatível com esta protecção ‘a orientação, fundada em acórdão tirado em 1985, que ‘desvaloriza’ tais decisões, privando, em absoluto, do controlo da constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional as decisões judiciais que concedam ou rejeitem as providências requeridas’.
3. Cabe começar por reconhecer que existe efectivamente divergência na jurisprudência constitucional quanto à questão da recorribilidade de que aqui se trata; considera-se, todavia, que é de manter a que é seguida na decisão reclamada, como se passa a justificar.
Assim, e em primeiro lugar, porque a razão que levou à decisão reclamada de não conhecimento do recurso, que se baseou no acórdão nº 151/85, não foi, nem a de que havia que distinguir, para o efeito de admissibilidade do recurso de fiscalização da constitucionalidade, entre decisões adjectivas e decisões de mérito, nem a de que era o carácter definitivo ou provisório da decisão que concedia (ou não) a providência solicitada que relevava.
Em segundo lugar, porque a revisão constitucional operada em 1997 – anterior à prolação do acórdão nº 664/97 – não obriga de forma alguma a resolver de forma diferente a questão de admissibilidade do recurso que aqui se coloca.
4. Com efeito, quando a decisão reclamada, fazendo sua a justificação apresentada no acórdão nº 151/85, julgou não ser admissível o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, não se baseou na circunstância de se pretender a apreciação da constitucionalidade de uma norma claramente substantiva, cuja aplicação era determinante para o juízo de mérito proferido no âmbito da providência requerida; assentou, sim, na verificação de que dessa mesma norma dependia o juízo de mérito a proferir, quer no âmbito da providência, quer no domínio da acção correspondente.
A referência a normas de tramitação dos procedimentos cautelares que aparece no acórdão nº 151/85 é feita, apenas, a título de exemplo. O critério distintivo ali definido assenta, não na natureza adjectiva ou substantiva da norma em causa, mas na circunstância de estar ou não em causa a sua aplicação, simultaneamente, na acção principal e na providência cautelar, o que não é equivalente. Assim, por exemplo, pode ser questionada a constitucionalidade de uma norma que defina os requisitos substanciais de concessão da providência cuja aplicação não tenha cabimento da acção principal.
Ora a circunstância de a mesma norma ser aplicável em ambos os casos
é que torna inadmissível o recurso interposto no âmbito da providência cautelar, atento o valor meramente provisório, não da decisão de mérito nela proferida, como aponta o reclamante, mas do juízo de constitucionalidade emitido igualmente ao julgar a providência cautelar.
5. Na verdade, as duas razões são indissociáveis. Como claramente se afirma no acórdão nº 151/85, seria a natureza provisória do juízo de constitucionalidade efectuado ao julgar a providência cautelar que, fundamentalmente, justifica a inadmissibilidade do recurso.
Com efeito, se fosse julgada a questão de constitucionalidade numa hipóteses destas, ou o julgamento não constituía caso julgado relativamente à acção principal, admitindo-se que, nesta, se viesse a emitir novo julgamento, eventualmente não coincidente, com possibilidade de outro recurso para o Tribunal Constitucional; ou constituía, subvertendo a lógica inerente à relação de instrumentalidade existente entre a acção e o procedimento, pois que a sorte daquela era traçada por uma decisão tomada no âmbito deste.
6. É incontestável a afirmação de que as medidas cautelares podem afectar de forma irreversível a situação das partes. Essa observação – que, aliás, prova demais, pois levaria a que o recurso de constitucionalidade, para além de ser admissível, tivesse sempre efeito suspensivo –, todavia, não conduz
à conclusão sustentada pelo reclamante.
Desde logo, e sendo exacto que esse efeito só é relevante se a providência vier a caducar ou a ser julgada injustificada, a lei prevê a hipótese de o requerente ter de indemnizar o requerido se lhe causou danos culposamente (nº 1 do artigo 390º Código de Processo Civil). Esta obrigação, associada à eventual necessidade de prestação de caução, são os meios através dos quais se tenta proteger a parte prejudicada.
Para além disso, a vantagem eventualmente conseguida não prevaleceria sobre os inconvenientes atrás apontados.
7. Finalmente, não se vê em que medida é que o acrescentamento do nº
5 do artigo 20º da Constituição pela revisão constitucional de 1997 altera a conclusão de que o recurso não é admissível. Na verdade, a consagração constitucional da necessidade de a lei prever procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos’ não obriga a que se considerem recorríveis para o Tribunal Constitucional todas as decisões proferidas nesses procedimentos.
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5. Reeditando-se agora, na sua essencialidade, a transcrita fundamentação, concluir-se-á que do objecto presente recurso não deverá este Tribunal conhecer.
O que se decide.
Sem custas, por o recorrente das mesmas estar isento.
Lisboa, 23 de Maio de 2001- Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma (vencida conforme a declaração de voto junta) Paulo Mota Pinto (vencido nos termos da declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa Declaração de voto
Entendo que o Tribunal Constitucional deveria ter tomado conhecimento do objecto do presente recurso, uma vez que a decisão proferida no
âmbito da providência cautelar modificaria a ordem jurídica, de modo que tornaria necessário o imediato controlo de constitucionalidade. Com efeito, verifica-se, neste caso, a desaplicação de uma norma por inconstitucionalidade que fundamenta exclusivamente a decisão impugnada. A referida desaplicação importa a invalidação de uma norma vigente, da qual resultaria a aquisição compulsiva das acções, e dela depende, consequentemente, o provimento da providência cautelar que suspende tal aquisição. Ao não se tomar conhecimento da questão de constitucionalidade suscitada em relação a tal norma, subsistirá na ordem jurídica uma decisão (o provimento de uma providência cautelar) cujo fundamento é uma alteração do direito vigente em virtude da proclamação de inconstitucionalidade. Na medida em que a providência cautelar se baseou exclusivamente na própria desaplicação, tornou-se definitiva a invalidação da norma projectada convertida no respectivo efeito jurídico - o deferimento da providência cautelar. Ora, não só essa alteração com fundamento na desaplicação por inconstitucionalidade não podia deixar de ser sujeita ao controlo de constitucionalidade, por força da imperatividade do recurso de constitucionalidade pelo Ministério Público [artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional], como também se justificará que uma derrogação da ordem jurídica que a modifica seja objecto imediato do controlo de constitucionalidade para impedir que uma tal modificação opere a produção de efeitos jurídicos - neste caso, o deferimento de providência cautelar suspensiva da aquisição compulsiva das acções. Não terá, assim, cabimento invocar o carácter provisório da decisão impugnada e a consequente possibilidade de duplicar no mesmo processo os recursos de constitucionalidade ou a 'subversão' da lógica inerente à instrumentalidade entre a acção e o procedimento. Na realidade, o não conhecimento do recurso de constitucionalidade da decisão da providência cautelar relativo à desaplicação por inconstitucionalidade permitiria simultaneamente uma alteração do direito vigente para dar provimento a uma providência cautelar e a sua eventual negação na decisão do recurso de constitucionalidade proferido a partir da decisão final, tendo assim a invalidação de uma norma vigente subsistido durante um período temporal sem qualquer controlo de constitucionalidade.
Também os meios de reparação civis que se têm invocado como modo bastante de compensação dos prejuízos das partes inerentes à afectação pela decisão das providências cautelares são manifestamente inadequados para compensar a possibilidade incontrolável, que afectaria a segurança do Direito, de uma decisão provisória ser tomada com fundamento numa alteração do direito vigente. Maria Fernanda Palma
Declaração de voto Votei no sentido da tomada de conhecimento do presente recurso, interposto, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, de decisão que, deferindo uma providência cautelar, cominou à requerida que se abstivesse de proceder à aquisição de acções prevista no artigo 490º do Código das Sociedades Comerciais, por ter julgado esta norma inconstitucional. O tribunal recorrido deferiu a providência cautelar e impôs tal cominação à requerida por ter recusado a aplicação de norma jurídica em vigor, com fundamento na sua inconstitucionalidade. A presunção de constitucionalidade de tal norma foi, pois, afectada por tal decisão judicial. Ora, é justamente por esta razão que a Lei do Tribunal Constitucional (cfr. artigo 70º, n.º 2) admite o recurso imediato de decisões dos tribunais que recusem a aplicação de normas jurídicas com fundamento na sua inconstitucionalidade – isto é, o recurso previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional
–, mesmo que a decisão fosse ainda susceptível de recurso ordinário, com ou sem efeito suspensivo, e quer a decisão recorrida afecte imediatamente a situação jurídica das partes, quer não. Nestes casos, em que a decisão de deferimento da providência cautelar – que, portanto, alterou logo a situação jurídica das partes, pelo menos até ao julgamento da acção principal (o que, como se sabe, sobretudo no domínio mercantil em questão pode levar um tempo incompatível com o requerido pelas necessidades da vida económica) – se baseou na recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, entendo que se deve tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto da decisão da providência cautelar, tal como a lei prevê em geral recurso imediato, sem esgotamento de recursos ordinários, nos casos da alínea a) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional. E a circunstância, considerada decisiva na presente decisão e no Acórdão n.º
442/2000, de a mesma norma ser eventualmente aplicável na providência cautelar e na acção principal (eventualmente, pois quanto a esta o juízo de aplicabilidade não pode ser antecipado) não altera, a meu ver, tal conclusão. Não só não pode falar-se de valor meramente provisório do juízo de constitucionalidade com mais propriedade do que se poderia divisar também um valor provisório no julgamento de constitucionalidade proferido em recurso de decisão ainda susceptível de recurso ordinário, como não se vê por que teria a decisão de constitucionalidade sobre uma norma cuja aplicação foi efectivamente recusada na decisão da providência cautelar de subverter a relação de instrumentalidade entre o procedimento cautelar e a acção principal, apenas porque a decisão desta pode eventualmente vir a depender da aplicação na mesma norma. Teria, por conseguinte, tomado conhecimento do presente recurso.
Paulo Mota Pinto