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Proc. 216/04
3ª Secção Rel. Cons. Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. e marido B. reclamam, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo
76º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do despacho do Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra que lhes não admitiu o recurso que, para o Tribunal Constitucional, pretenderam interpôr do despacho de 20 de Janeiro de
2004 que julgou improcedente o incidente de suspeição da Juíza do 4.ºJuízo Cível de Viseu que haviam deduzido no Processo n.º 995/03.2TBVIS, em que é exequente a C. e os ora reclamantes são executados.
Concluem a reclamação nos termos seguintes:
“a) Os Reclamantes deduziram um incidente e suspeição; b) Articularam factos e juntaram provas (certidões judiciais) de que por intervenção do Exmo. Magistrado Judicial suspeito o processo não era equitativo; c) Requereram a aplicação directa do art. 20º, nº 4, da Const. Rep. Portuguesa por considerarem que o art. 127º do Cód. Proc. Civil não garante em absoluto os princípios da equidade e da imparcialidade; d) Segundo os Reclamantes o art. 127º do Cód. Proc. Civil ao tipificar os casos de suspeição afasta todos os outros que não se conformam com essa tipicidade; e) Os Reclamantes não foram condenados como litigantes de má-fé; f) Por decaimento no incidente interpuseram os Reclamantes Recurso para o Tribunal Constitucional; g) Os casos de suspeição de um Magistrado Judicial não podem estar dependentes do conhecimento pelos Oponentes do facto que a montante influenciou a(s) sua(s) Decisão (ões); h) Para que essa natureza subjectiva do facto a montante seja integrado num dos tipos insertos nas alíneas do nº 1 do art. 127º do Cód. Proc. Civil; i) A falta de imparcialidade tem que ser, objectivamente, inferida de factos praticados pelo mesmo Magistrado Judicial e sustentada por provas; j) O caso de suspeição suscitado pelos Reclamantes não se enquadra nos tipos do art. 127º do Cód. Proc. Civil; k) Motivo porque se deveria ter aplicado, directamente, o disposto no art. 20º, nº 4, da Constituição interpretado à luz do art. 10º da declaração Universal dos Direitos do Homem; l) O Venerando Despacho reclamado, com todo o respeito que é muito, enferma de erro; m) Em resultado desse erro foram os Reclamantes vencidos, imediatamente, quanto
á questão da suspeição; n) E, mediatamente, quanto á problemática da inconstitucionalidade do art. 127º do Cód. Proc. Civil; o) Fazendo, ainda, o dito Despacho tábua raza do art. 20º da Constituição.”
O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência da reclamação, do seguinte teor:
“A presente reclamação é manifestamente improcedente. Na verdade, os reclamantes não suscitaram, em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para servir de base ao recurso de fiscalização concreta interposto – limitando a enumerar vicissitudes processuais e a concluir pela “insuficiência” da previsão normativa do art. 127º do CPC, sem especificarem, em termos inteligíveis, qualquer sentido da interpretação normativa que consideram colidente com a Lei Fundamental.”
2. O recurso foi interposto de uma decisão proferida pelo Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra num incidente de suspeição oposta pelas partes ao juiz (recusa).
Antes de mais, não parece que possa ser posto em causa o enquadramento deste despacho na categoria “decisões dos tribunais” para efeitos do disposto no n.º1 do artigo 280º da Constituição e do artigo 70º da LTC. A lei processual civil ao atribuir a competência para julgar a suspeição, em primeira e única instância – por despacho irrecorrível (artigo 130º, n.º 3, do Código de Processo Civil) – ao presidente da Relação, estrutura a recusa como incidente do próprio processo. Ao julgá-lo – note-se que apenas nos referimos, porque só isso interessa para o caso, ao incidente de recusa (suspeição oposta pela parte) e não à escusa (pedido de dispensa) –, o presidente da Relação exerce uma competência jurisdicional, relativa à regularidade de composição do tribunal da causa, numa das suas vertentes materiais que é da garantia do juiz imparcial, e não uma competência administrativa de mera gestão dos juizes. Embora configurando-o de modo diverso daquele que adopta quando está em apreciação a existência de causas de impedimento – em que o próprio juiz impedido é chamado a decidir, com recurso para o tribunal imediatamente superior
(cfr. artigo 123º, n.º 1,do CPC) – a lei qualifica expressamente e manda processar a recusa como incidente (artigo 129º do CPC) e reconhece implicitamente a natureza judicial da decisão respectiva ao proscrever a possibilidade de recurso (ordinário). Comete a decisão ao presidente da Relação
– atribuindo-lhe uma competência jurisdicional própria de 1º grau (não inserida nas competências do órgão judicial de que é membro e que não tem por objecto ou pressuposto uma decisão anterior) – como corolário da proibição de que o juiz se declare “voluntariamente” suspeito (artigo 126º, n.º 1,do CPC).
3. Como se relatou, o recurso foi interposto ao abrigo do disposto no artigo
70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Convém começar por lembrar as linhas essenciais das condições de admissibilidade deste recurso que hão-de constituir a matriz de apreciação da reclamação, segundo a jurisprudência sedimentada deste Tribunal.
Assim, para que o recurso possa ser admitido, é necessário que tenha havido aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, de norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, considerada esta norma na sua totalidade, em determinado segmento ou segundo certa interpretação mediatizada pela decisão recorrida. Sendo a competência do Tribunal Constitucional, em processos de fiscalização concreta, restrita à constitucionalidade (ou ilegalidade) de normas, não lhe cabe apreciar questões de constitucionalidade dirigidas à decisão judicial, em si mesma considerada.
Por outro lado, quando pretenda ver apreciada a constitucionalidade de uma determinada interpretação normativa, é necessário que o recorrente especifique o sentido da norma tido por inconstitucional e que a decisão recorrida aplicou, de modo que, se o recurso vier a ser provido, fique precisamente determinado qual o sentido com que a norma não pode ser aplicada na reforma da decisão pelo
órgão jurisdicional a quo.
4. O despacho reclamado não admitiu o recurso por considerar que os recorrentes “não ficaram vencidos na questão da inconstitucionalidade” uma vez que “[o] que se entendeu é que os fundamentos invocados não constituem fundamento da suspeição, mesmo aplicando os preceitos que invocam [o nº 4 do artigo 20º da CRP e o artigo 10ºda Declaração Universal dos Direitos do Homem], para além do art. 127”.
Efectivamente, a argumentação jurídica do requerimento de suspeição pode reduzir-se à seguinte expressão simplificada: o n.º 4 do artigo 20º da CRP assegura o direito a um processo equitativo (incluindo a garantia de um juiz imparcial) e é de aplicação directa; a situação descrita demonstra que o juiz do processo não é imparcial; apesar disso, não cabe em nenhuma das hipóteses previstas no artigo 127º do CPC; logo, este preceito é inconstitucional e a pretensão de recusa do juiz deve ser directamente subsumida naquele preceito constitucional.
A isto, a decisão de que se pretende recorrer respondeu nos seguintes termos:
“[ ... ] Ou seja, o sentido das decisões proferidas pelos Juízes nos processos não podem constituir fundamento de suspeição. Tal seria, pura e simplesmente, acabar com a independência e imparcialidade dos Juízes. As circunstâncias ou factos que podem constituir fundamento de suspeição situam-se necessariamente a montante da decisão. O recusante tem de alegar, e provar, factos ou circunstâncias que levam a suspeitar que o Juiz não vá decidir com isenção e imparcialidade. Porque ocorre este facto ou aquela circunstância pode suspeitar-se que o Juiz seja tentado a decidir, não de harmonia com o que livre e independentemente entende, mas sob influência, ainda que inconsciente, do facto ou circunstância. Essas circunstâncias ou factos que podem levar à suspeita objectiva sobre a imparcialidade do Juiz, estão enumeradas no art. 127º do C. P. Civil. Pelo menos, não consigo imaginar qualquer outra.
É óbvio que, se outra existir de natureza subjectiva que possa enquadrar nos preceitos citados pelos reclamantes, nada obsta à sua ponderação para se decidir se esses preceitos são aplicáveis ou não. Só que a apreciação tem de incidir sobre o que, para além da consciência do Juiz e sua livre aplicação da Lei de harmonia com essa consciência, a montante, influenciou essa decisão. Agora, o sentido da própria decisão não pode constituir fundamento de suspeição. Nem o Presidente da Relação tem jurisdição para sindicar essas decisões, em sede de incidente de suspeição. Elas só podem ser sindicadas através de recurso ou reclamação. Por isso, o fundamento invocado pelos reclamantes não integra qualquer fundamento de suspeição, não se enquadrando quer no art. 127. Do C. P. Civil quer nos preceitos por eles invocados. A imparcialidade da Senhora Juíza não está minimamente beliscada.”
Perante esta fundamentação, tem de concordar-se com a afirmação do despacho reclamado de que “os recorrentes não foram vencidos na questão da inconstitucionalidade”, entendendo-a como referida à inconstitucionalidade de normas, que é a única que abre a via de recurso para o Tribunal Constitucional.
Efectivamente, extrai-se de quanto os reclamantes alegaram no requerimento em que pediram o afastamento da juíza titular do processo que a inconstitucionalidade do artigo 127º do CPC residiria na tipicidade dos fundamentos de suspeição do juiz que nele se consagra. Há, segundo o que sustentam, um deficit de concretização da garantia da imparcialidade do juiz que resulta de situações que demonstram falta de imparcialidade do juiz do processo não se enquadrarem em qualquer das causas de recusa desenhadas nas diversas alíneas do artigo 127ºdo CPC (Neste momento ainda não interessa saber se este recorte meramente negativo da questão da inconstitucionalidade seria suficiente para que se considere existir uma questão de constitucionalidade normativa definida com o grau de precisão necessária para que o recurso possa ser admitido e ter seguimento).
Ora, o despacho recorrido não excluiu a possibilidade de, por aplicação directa das disposições invocadas pelos recorrentes – o n.º4 do artigo
20º da CRP e o artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem –, outras circunstâncias ou factos não enquadráveis em qualquer das alíneas do n.º
1 do artigo 127º do CPC poderem constituir fundamento de recusa do juiz. Só que considerou que o fundamento invocado pelos reclamantes, consistindo nas decisões anteriormente tomadas pela juíza que se quer ver afastada e não em factos ou circunstâncias extrínsecas que as possa ter influenciado, não se enquadrava no artigo 127º do CPC nem demonstrava a falta de imparcialidade daquela juíza.
Vale isto por dizer que a ratio decidendi do indeferimento da pretensão dos reclamantes não foi a atribuição ao artigo 127º do CPC do sentido que eles dizem inconstitucional (o carácter de tipicidade fechada das causas de suspeição : “ as partes só podem opor suspeição ao juiz nos casos seguintes”). No despacho de que se pretende recorrer fez-se acrescer ao não preenchimento de qualquer das alíneas do artigo 127º, um outro fundamento jurídico decisivo: a situação de facto denunciada também não viola o conceito constitucional (ou constitucionalmente recebido) de juiz imparcial.
De modo que o indeferimento da pretensão dos reclamantes não resultou da aplicação, como ratio decidendi, da norma do n.º 1 artigo 127º do CPC na única dimensão em que pode considerar-se suscitada perante o juiz a quo uma questão de inconstitucionalidade normativa, pelo que o recurso não pode ser admitido ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC. [Recorde-se que os reclamantes nunca passaram, na enunciação da questão, do estádio destrutivo
(aquele que consiste em afastar a dimensão normativa que se exprime pela expressão “só podem”) para um estádio construtivo (a enunciação do teor normativo sem o qual a previsão do legislador ordinário é constitucionalmente deficitária ou redutora do âmbito da garantia constitucional), que poderia colocar problemas de outro tipo – cfr. Acórdão n.º 626/98. Como salienta o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, mesmo na reclamação para este Tribunal, os reclamantes limitaram-se a enumerar vicissitudes processuais e a concluir pela
“insuficiência” da previsão normativa do artigo 127º do Código de Processo Civil, sem especificar, para além da regra da tipicidade, qual o sentido interpretativo adoptado na decisão que consideram colidir com a garantia de imparcialidade do juiz ínsito no n.º 4 do artigo 20º da Constituição].
Será legítima a interrogação sobre se o discurso fundamentador do despacho de 20 de Janeiro de 2004 não significa – ou não deve ser tratado como significando, para efeitos dos mecanismos de fiscalização concreta da constitucionalidade - uma recusa implícita de aplicação do n.º 1 artigo 127º do CPC no segmento em que estabelece ( ... “só podem”) o caracter típico das causas de suspeição que as partes podem opor ao juiz. Mas a resposta a esta questão é irrelevante porque o recurso não é interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da LTC (Aliás, o recorrente não teria legitimidade para tanto, porque aí não seria, seguramente, vencido).
5. Acresce que o teor da reclamação demonstra que o objectivo dos reclamantes com o recurso para o Tribunal Constitucional é – ultrapassada que foi a questão da tipicidade das causas de suspeição oponíveis pelas partes - discutir o erro do despacho reclamado quanto à aplicação directa do artigo 20º, n.º 4 da Constituição, interpretado à luz do artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, isto é, quanto à directa subsunção da conduta judicial que denunciam no referido preceito constitucional. Pretendem, portanto, ver apreciada pelo Tribunal Constitucional a vulneração da garantia constitucional de imparcialidade do juiz que referem directamente à decisão judicial impugnada e não a uma norma interposta.
Ora, como começou por dizer-se uma tal finalidade não é consentida pelo sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade consagrado no nosso sistema jurídico, que não adoptou um recurso do tipo do amparo espanhol ou da queixa constitucional alemã.
6. Decisão
Pelo exposto, decide-se a) Indeferir a reclamação do despacho que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional; b) Condenar os reclamantes nas custas, fixando a taxa de justiça em 15
(quinze) unidades de conta.
Lisboa, 15 de Abril de 2004
Vítor Gomes Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida