Imprimir acórdão
Processo n.º 516/03
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - A., B. e C., identificados nos autos, foram condenados, por acórdão do Tribunal Colectivo do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, de 15 de Julho de 2002, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pela alínea c) do artigo 24º e nº1 do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, respectivamente, nas penas de 12 anos de prisão, 12 anos de prisão e 9 anos de prisão, e ainda na pena de expulsão de Portugal pelo período de 10 anos.
Deste aresto interpuseram os arguidos recurso para o Tribunal da Relação de Évora, reclamando a sua absolvição ou, caso assim se não entenda, o reenvio do processo para novo julgamento, com fundamento na insuficiência da matéria de facto provada para sustentar a condenação e erro notório na apreciação da prova, invocando ainda a inconstitucionalidade dos artigos 40º e 43º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, se interpretados no sentido de não obstaram a que os arguidos sejam julgados por juizes que já tiveram contacto com o processo.
2. - Por acórdão de 19 de Novembro de 2002, o Tribunal da Relação de Évora negou provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.
Inconformados com esta decisão interpuseram os arguidos recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, pedindo a anulação do acórdão recorrido e o reenvio do processo para novo julgamento, invocando a violação dos artigos 374º, 410º, nº2, alínea a), do Código de Processo Penal, e 71º do Código Penal , ou, caso seja concedido provimento ao recurso no que concerne à questão de constitucionalidade dos artigo 40º e 43º n.ºs. 1 e 2, do Código de Processo Penal, na interpretação já mencionada, pedem a revogação da decisão recorrida e a sua reformulação em conformidade com o juízo formulado.
Em resposta o Ministério Público pugnou pelo não provimento do recurso.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 30 de Abril de 2003, julgou improcedente o recurso, confirmando o acórdão recorrido.
3. - É, pois, deste aresto que foi interposto pelos arguidos o presente recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na alínea b) do nº1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, tendo por objecto a apreciação das normas dos artigos 40º e 43º, nº1 e 2, do Código de Processo Penal “no sentido de permitirem que os arguidos possam ser julgados por juízes que antes já haviam participado no primeiro julgamento do qual houve sentença, anulado, porém, com a finalidade de se proceder à documentação das declarações prestadas em audiência”.
Entendem os recorrentes que tal interpretação normativa, assim aplicada no acórdão recorrido, viola os “artigos 20º, nº1, primeira parte, nº4, parte final, 13º, nº1, 203º, primeira parte, 18º, nº1, e 8º, nº1, - todos da CRP – por referência ao artigo 6º, nº1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda o artigo 16º, nº2, da CRP, por referência aos artigos 7º e 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem”.
4. - Determinado o prosseguimento dos autos para alegações cumpriram os recorrentes esse desiderato apresentando a respectiva peça processual, que concluíram nos seguintes termos:
1. “Os ora recorrentes foram julgados no dia 7 de Junho de 2001, no 2° Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado. p. e p. pelo n° 1 do artº 21° e art° 24º al. c) ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
2. O colectivo de juízes que procedeu ao julgamento era integrado pelos Meretíssimos Juízes Drs. D. que presidiu, E. e F..
3. Por acórdão desse mesmo tribunal. foram os ora recorrentes condenados, respectivamente, nas penas de 12 e 9 anos de prisão, e bem assim de expulsão de Portugal por 10 anos. tendo sido declarados perdidos a favor do Estado o barco e a droga apreendidos.
4. No início desse julgamento. os recorrentes requereram ao tribunal que fosse feita a gravação das declarações ali prestadas oralmente, requerimento esse que foi indeferido .
5. Inconformados, os arguidos recorreram desse indeferimento e também do acórdão final condenatório para o Tribunal da Relação de Évora.
6. Por acórdão prolatado em 23 de Outubro de 2001, o Tribunal da Relação de Évora decidiu dar provimento ao recurso e consequentemente revogar o despacho que indeferiu a requerido gravação da prova que deve ser substituído por outro que defira aquele requerimento; anular a audiência de julgamento e actos subsequentes, devendo aquele ser repetido com a respectiva gravação da prova; não conhecer dos recursos interpostos do acórdão final.
7. Em cumprimento do referido acórdão foi marcado novo julgamento no processo em causa a ser realizado pelo Tribunal Colectivo do 2° Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Faro.
8. Tendo tomado conhecimento que o colectivo seria composto por dois dos Senhores Juízes que haviam integrado o anterior colectivo, concretamente os senhores Drs. D. e E., o ora recorrente C., escudando-se no preceituado nos art.ºs 43° n.ºs. 1, 2 e 3 e 45° n° 1, al. a) do C.P.P. requereu a recusa daqueles magistrados. com o fundamento de os mesmos terem participado em anterior julgamento contra o requerente e que o Tribunal da Relação de Évora havia anulado .
9. Levado o pedido ao tribunal competente - Tribunal da Relação de Évora
- foi o mesmo indeferido, por decisão de 02.01.22. proferida nos Autos de recurso penal n° 120/02, o que não mereceu a concordância do peticionante que dela recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por acórdão de 15 de Maio de 2002, rejeitou o recurso por o mesmo visar uma decisão irrecorrível.
10. O segundo julgamento veio efectivamente a ser realizado no mesmo 2° Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, por um colectivo composto pelos Meretíssimos Juízes Drs. D., que presidiu, E. e G..
11. O dito Tribunal Colectivo proferiu novo acórdão que. com iguais fundamentos do anterior acórdão, voltou a condenar os arguidos nas mesmas penas, isto é, na pena de 12 anos de prisão os irmãos A. e B. e 9 anos de prisão o arguido C., com a consequente expulsão de todos, de Portugal, por 10 anos e a declarar perdidos a favor do Estado o barco e a droga apreendidos.
12. Desse Acórdão foi interposto recurso pelos arguidos, para o Tribunal da Relação de Évora que veio a negar provimento ao mesmo, confirmando o acórdão recorrido .
13. Do douto acórdão da Relação de Évora foi interposto novo recurso, agora para o Supremo Tribunal de Justiça que também julgou improcedente o recurso, confirmando o douto acórdão recorrido .
14. Nos recursos interpostos pelos arguidos. quer para o Tribunal da Relação de Évora, quer para o Supremo Tribunal de Justiça, alegaram estes nas respectivas motivações, por entre o mais que ora não releva. que a interpretação. a que procedeu o acórdão recorrido. dos art.ºs. 40° e 43°, n.ºs.
1 e 2 do C.P.P., no segmento que permite que os arguidos possam ser julgados por juízes que já antes haviam participado no primeiro julgamento, anulado com a finalidade de se proceder a documentação das declarações prestadas em audiência,
é inconstitucional. por violadora das normas dos «art°s. 20º n.º 1, primeira parte, nº4 , parte final, 13º, n.º 1, 203º, primeira parte, 18º, n.º 1, e 8º n.º 1 (todos da CRP) por referência aos art.ºs. 7º e 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem».
15. A decisão proferida no segundo julgamento, em tudo igual à primeira demonstra, a final, terem esses Senhores Magistrados Judiciais, que integraram o primeiro e segundo colectivos que procederam ao julgamento dos arguidos, ficado desde logo com uma fortíssima convicção quanto à culpabilidade dos arguidos e à gravidade das respectivas condutas, traduzida nas pesadas penas então impostas aos arguidos, convicção essa que não deixou de se reflectir no segundo julgamento, atentas as mesmas penas impostas aos arguidos;
16. Os artigos 20° n.º 1, primeira parte, n° 4 parte final, 13° n.º 1, 203° primeira parte, 18° n° 1 e 8° nº1, todos da Constituição, por referência ao artigo 6° n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e ainda 16° n° 2 da Constituição por referência aos artigos 7° e 10° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, garantem a todos os arguidos que hajam de ser submetidos a julgamento, acusados da prática de uma infracção criminal, que o tribunal que vai conhecer do pleito se moverá na estrita observância das regras da independência e da imparcialidade;
17. E quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade sejam justificadamente postas em causa, como sucede no caso em apreço, então os senhores Magistrados visados não estarão em condições de
«administrar justiça», podendo e devendo declarar-se ou ser declarados iudex inhabilis e, consequentemente, estar-lhe ou ser-lhe vedada toda e qualquer intervenção num segundo julgamento decidido por anulação do primeiro;
18. Na verdade, também aqui se pode dizer que os senhores Magistrados Judiciais em questão ficaram com uma convicção de tal forma arreigada quanto ao peso dos elementos de prova carreados nos autos e produzidos em audiência do primeiro julgamento, prova essa sobre a qual necessariamente formularam um juízo de valor que depois plasmaram no acórdão prolatado, que, «objectivamente - e sem prejuízo da independência interior que eles forem capazes de preservar - fica inexoravelmente comprometida a sua independência e imparcialidade na fase do segundo julgamento» .
19. A interpretação segundo a qual resulta do nosso sistema legal a não verificação de impedimento do juiz para intervir na repetição do julgamento, decidida em consequência da omissão, em anterior audiência em que participara, da documentação das declarações orais nela produzidas, é desconforme com a nossa Lei Fundamental, porque violadora, entre outros dos artigos 20° n° 1, primeira parte, n.º 4 parte final, 13° n° 1, 203° primeira parte, 18° n° 1 e 8° n.º 1, todos da Constituição, por referência ao artigo 6° n° 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e ainda 16° n° 2 da Constituição por referência aos artigos 7° e 10° da Declaração Universal dos Direitos do Homem.”
O Ministério Público contra-alegou e formulou as seguintes conclusões:
1. “São situações perfeitamente diferenciadas, na lei adjectiva penal, o reenvio do processo para novo julgamento, em consequência de a própria decisão proferida sobre a matéria de facto padecer das insuficiências, contradições ou incongruências intrínsecas tipificadas no n.º 2 do artigo 410° do Código de Processo Penal, e a simples anulação do julgamento como mero reflexo do cometimento de uma nulidade de processo, susceptível de se repercutir na tramitação ulterior da causa.
2. Só na primeira daquelas situações - de particular gravidade, por traduzir a existência de vícios lógicos e intrínsecos do conteúdo da decisão tomada sobre a matéria de facto - prevê a lei de processo penal o impedimento dos juízes que intervieram na prolação da decisão anulada, determinando o consequente desaforamento do processo para o tribunal colectivo mais próximo
(artigos 426° e 436° do Código de Processo Penal).
3. Porém, carece de fundamento bastante tal suspeição quanto à objectividade e imparcialidade do julgador a quem é cometida a repetição do julgamento quando o tribunal 'ad quem' se haja limitado a anular o processado subsequente ao cometimento de certa nulidade de processo, a qual implica reflexamente a anulação dos termos ulteriores da causa.
4. Não violando, deste modo, o princípio das garantias de defesa e da imparcialidade decisória do tribunal a circunstância de - não estando em causa as nulidades de sentença resultantes dos vícios tipificados no n.º 2 do artigo
410° do Código de Processo Penal - não ficarem impedidos de funcionar os juízes que intervieram no primeiro julgamento, reflexamente anulado.
5. Termos em que deverá ser julgado improcedente o presente recurso.”
Cumpre decidir.
II
1. - O presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade visa as normas dos artigos 40º e 43º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, que são do seguinte teor:
“Artigo 40º
(Impedimento por participação em processo)
Nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão em que tiver proferido ou em que tiver participado ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido ou em que, no inquérito ou na instrução, tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido.”
“Artigo 43º
(Recusas e escusas)
1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.
(...)”
Tal como os recorrentes o delimitaram no requerimento de interposição e nas conclusões das suas alegações, o recurso tem apenas por objecto as normas dos artigos 40º e 43º, nº1 e 2, do Código de Processo Penal “no segmento que permite que os arguidos possam ser julgados por juízes que antes já haviam participado num primeiro julgamento, do qual houve sentença, anulado com a finalidade de se proceder à documentação das declarações prestadas em audiência”.
Entendem os recorrentes que esta interpretação normativa, assim aplicada no acórdão recorrido, viola os “artigos 20º, nº1, primeira parte, nº4, parte final, 13º, nº1, 203º, primeira parte, 18º, nº1, e
8º, nº1, - todos da CRP – por referência ao artigo 6º, nº1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e ainda o artigo 16º, nº2, da CRP, por referência aos artigos 7º e 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem”.
2. - Conforme se verifica da análise dos autos, no julgamento efectuado, em 15 de Julho de 2002, no 2º Juízo Criminal do Tribunal Colectivo da Comarca de Faro, intervieram no Colectivo dois dos juízes que haviam participado no primeiro julgamento realizado nestes autos, em 7 de Junho de 2001, e que foi anulado pelo acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 23 de Outubro de 2001.
Neste aresto, o Tribunal da Relação decidiu revogar o despacho que indeferiu o requerimento feito pelos arguidos no início do julgamento para que se procedesse à gravação das declarações prestadas oralmente na audiência, determinando a sua substituição por outro que defira o pedido, e anulou o julgamento e actos subsequentes, ordenando a sua repetição com a respectiva gravação da prova.
Ou seja, a repetição do julgamento foi ordenada na sequência da verificação da nulidade decorrente do acto que indeferiu a gravação da prova prestada oralmente em audiência de julgamento, e não na sequência da ocorrência dos vícios do nº2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, que implicam o reenvio do processo para novo julgamento, a efectuar por tribunal diferente do que realizou o julgamento anulado, como decorre dos artigos 426º e
426º-A do Código de Processo Penal.
Aliás, foi este o entendimento perfilhado no acórdão recorrido e com base no qual interpretou e aplicou os preceitos da lei processual penal agora impugnados.
3. - A este respeito escreveu-se no aresto recorrido:
“Como bem acentua e justifica o douto acórdão recorrido, da conjugação dos arts
40°, 43°, 426° e 426-A do C.P.P. resulta o sentido de que, no caso referido da repetição do julgamento determinado pela omissão da documentação das declarações orais prestadas oralmente em audiência, não há impedimento de intervenção no julgamento repetido dos Juízes que compuseram o Tribunal Colectivo quando da primeira audiência. Fundamentando: Uma das exigências do sistema de justiça é o da garantia objectiva da imparcialidade dos juízes, inerente à da sua independência, instrumento indispensável do princípio fundamental, com assento constitucional, da independência dos Tribunais (cf. art. 203° da C.R.P. e ainda art. 6°, n° 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem). Com vista à preservação dessa garantia da imparcialidade do juiz penal e da confiança dos sujeitos processuais e do público em geral nessa imparcialidade, o C.P.P. estabelece os seguintes instrumentos:
1) A estatuição de impedimentos do juiz, por motivos objectivos que podem pôr em causa a objectividade do seu julgamento ou a confiança da comunidade nessa objectividade de apreciação e decisão, por virtude do tipo de relação familiar ou equiparada do juiz ou de seus familiares próximos com os sujeitos processuais, ou em razão de sua anterior intervenção profissional, em diferente qualidade, no processo, ou ainda da circunstância de, no processo, ter sido ouvido ou dever sê-lo como testemunha (art. 39°);
2) A imposição de impedimento de intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver participado como juiz e ainda de intervir no julgamento de processo a cujo debate instrutório tiver presidido ou em que, no inquérito ou na instrução, tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido (art. 40°);
3) A determinação de que, no caso de decisão, por tribunal de recurso, de reenvio do processo para novo julgamento, em razão de se entender verificarem-se os vícios referidos nas alíneas do n° 2 do art. 410° do C.P.P., esse novo julgamento deverá ser efectuado não pelo Tribunal que efectuou o julgamento e pronunciou a decisão sofrendo desses vícios, mas por um diferente Tribunal, de categoria e composição idênticas à do Tribunal que proferiu essa decisão recorrida ( cf. arts. 426° e 426°-A);
4) A possibilidade de requerimento, pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis, de recusa de intervenção de juiz no processo quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, podendo constituir fundamento de recusa a intervenção do juiz noutro processo ou em fase anterior do mesmo processo fora dos casos do citado art. 40°, acima referidos sob o n° 2), (art. 43°, n.ºs 1,2 e 3);
5) A possibilidade de o juiz pedir escusa de intervir por se verificarem as condições acima mencionadas sob o n° 4) (art. 43°, n° 4). No caso concreto não se verificam as situações acima referidas sob os n.ºs 4) e
5), desde logo porque não foi requerida recusa nem pedida escusa. Também é evidente a falta de integração da hipótese sintetizada sob o n° 1). Resta apreciar se o caso dos autos se integra em alguma das situações aludidas sob os n.ºs 2) e 3), correspondentes às previsões dos citados arts. 40° e 426° e
426-A, que abrangem situações, como sucede no caso dos autos, de anterior intervenção do juiz no mesmo processo.
É manifesto que o caso dos autos não é contemplado na letra dessas disposições. Mas estará abrangido pelo espírito de alguma delas, situando-se a letra aquém do espírito da lei, pelo que se impõe uma interpretação extensiva, de forma a dar à letra um alcance conforme ao pensamento legislativo? Ou, se assim não for, deve entender-se que o reconhecimento do impedimento deriva de integração da lei, nos termos do art. 10° do C.C. ? Como é bem conhecido, a interpretação extensiva fundamenta-se no argumento de identidade de razão ou no argumento de maioria de razão. Importa por isso que comecemos por verificar a razão de ser dos aludidos arts.
40° e 426-A do C.P.P. Afigura-se-nos resultar do conteúdo e contexto dessas normas que as razões do sentido do pensamento legislativo inspiradoras desses dispositivos legais são fundamentalmente as seguintes: quando seja posta em causa, em recurso ou pedido de revisão, anterior decisão que o juiz tiver proferido ou em que tenha participado (1ª parte do art. 40°), o impedimento é estatuído para que não possa ajuizar, decidindo, sobre o seu próprio entendimento, no caso de este ser objecto de impugnação, situação que, naturalmente, poderia comprometer a referida objectividade em si mesma e na sua imagem face ao sujeitos processuais e à comunidade; quando o tribunal de recurso anular decisão que o juiz tenha proferido ou em que tenha participado, tendo como fundamento enfermar a decisão de vícios referidos nas alíneas do n° 2 do art. 410° do C.P.P., com reflexo na decisão de facto e não podendo o tribunal de recurso decidir a causa (arts. 426° e 426°-A), a razão do impedimento do juiz reside na necessidade de evitar que, intervindo no novo julgamento, possa, na decisão de facto e/ou sua fundamentação e/ou na sua valoração jurídica, ser influenciado ( ou considerado como tal pelos destinatários directos e a comunidade) pelas circunstâncias que determinaram a anterior decisão padecendo dos referidos vícios tidos por verificados pelo tribunal de recurso; por sua vez a razão do impedimento de intervir no julgamento de um processo a cujo debate instrutório o juiz tiver presidido ou em que, no inquérito ou na instrução, tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido, filia-se no conhecido principio da separação entre o juiz da instrução e o do julgamento, decorrente do princípio do acusatório, que, embora mitigado, constitui elemento fundamental do nosso sistema, apontando para a necessidade de a prova determinante ser a que, beneficiando da imediação e sob o controle do contraditório, é produzida oralmente em audiência, só ela podendo servir de fundamento à decisão. Prova que, por isso, não deve ser apreciada por juiz que possa sofrer (ou parecer sofrer) a possível influência, na formação da sua convicção, do seu contacto significativo com a apreciação de provas em fases anteriores. Nenhum destes fundamentos vale, por identidade ou maioria de razão, para a hipótese a que corresponde o caso dos autos, em que a repetição do julgamento é determinada apenas pela falta de documentação, na anterior audiência, das declarações orais aí prestadas. Verifica-se efectivamente que não foi posto em causa, ou sequer considerado, pelo tribunal de recurso o conteúdo da decisão sobre a apreciação da matéria de facto, mas apenas o acto prévio da omissão da referida documentação; e constata-se também que não se está face ao contacto significativo com diferentes elementos de prova em fase do processo anterior à audiência, não resultando assim da circunstância da necessidade de repetição do julgamento apenas para cumprimento da estatuição legal da referida documentação qualquer motivo para, no quadro da teleologia, acima salientada, das referidas normas, justificar, ainda que por sua interpretação extensiva, a existência do impedimento objectivo defendido pelos recorrentes. Só circunstâncias concretas do caso poderiam porventura levar a ter por integrada a previsão do n° 2, referido ao n° 1, do art. 43° do C.P.P. Contudo, para além de nada sequer as indiciar, elas não foram invocadas como fundamento de requerimento de recusa ou pedido de escusa, como seria indispensável ao seu conhecimento.”
Deste modo, e afastando a necessidade de recorrer ao processo de integração da lei nos termos do artigo 10º do Código Civil, por entender não se estar perante a existência de uma lacuna do sistema, concluiu o aresto recorrido que “resulta do nosso sistema legal a não verificação de impedimento do juiz para intervir na repetição do julgamento, decidida em consequência da omissão, em anterior audiência em que participara, da documentação das declarações orais nela produzidas” e que na interpretação conducente a esta conclusão não ocorriam as inconstitucionalidades suscitadas pelos recorrentes.
4. - É significativa a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a questão dos impedimentos do julgador em processo penal, com particular enfoque nas situações projectadas no artigo 40º do Código de Processo Penal, quer na redacção inicial do preceito, quer na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, que ora nos ocupa, de que o acórdão 297/2003 (ainda inédito, mas acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm) faz um resumo circunstanciado.
Mas, já no domínio do Código de Processo Penal de 1929, esta questão foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 135/88 (publicado no Diário da República, II Série, de 8 de Setembro de 1988, e ATC, 11º vol., págs
945 e segs), que julgou inconstitucional a norma do artigo 116º daquele Código, na parte em que proibia que o juiz se declarasse impedido em acções penais por virtude de ofensas que lhe tivessem sido feitas na sua presença e no exercício das suas funções, obstando, ainda, a que se lhe pudesse opor impedimento.
Já então o que se punha em causa eram as garantias de imparcialidade e de objectividade do julgador, necessárias para a administração da justiça e exigíveis pelas garantias de defesa dos arguidos constitucionalmente consagradas.
Como se salienta no Acórdão 297/2003, já referido:
«É nos Acórdãos n.ºs 219/89 e 124/90 in ATC 13º - II vol., págs.703 e segs e 15º vol., págs. 407 e segs., respectivamente, que o Tribunal Constitucional vem a desenvolver a sua doutrina sobre a acumulação de funções, orgânica ou subjectiva, do juiz em processo penal, face ao disposto no artigo 6º n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, enquanto confere ao arguido o direito a que a sua causa seja examinada por um tribunal imparcial, e ao consagrado no artigo 32º n.º 5 da Constituição enquanto impõe a estrutura acusatória para o processo penal; estava, então, em causa a constitucionalidade das normas dos artigos 365º do CPP de 1929, 59º da Lei n.º 82/77, de 6 de Dezembro e 8º do Decreto-Lei n.º 269/78, de 1 de Setembro, por força das quais as funções de emitir o despacho de pronúncia e de julgar se congregavam no mesmo juiz. Considerou-se, no primeiro acórdão citado, que o princípio do acusatório impunha a separação da função de investigação e acusação da função de julgamento como garantia de imparcialidade do julgador. Mas como se entendeu que a pronúncia, no caso de se manter nos limites da acusação, não participa do acto acusatório, assumindo uma dimensão 'puramente garantística' - o despacho de pronúncia limitar-se-ia 'a evitar a ida a julgamento de indivíduos injustamente acusados'
- concluiu-se que as referidas normas não padeciam de inconstitucionalidade. A mesma tese vem a fazer vencimento no segundo acórdão, onde se acentua que 'o despacho de pronúncia não representa (...) uma qualquer antecipação de um juízo de condenação do arguido' e que 'destinando-se (...) a evitar que se seja submetido a julgamento por um crime grave, nem o arguido nem o público em geral podem ver no juiz que profere esse despacho alguém que está predisposto a condená-lo'. As garantias de imparcialidade e objectividade no julgamento continuam a ser o elemento determinante de aferição da constitucionalidade, mas neste último aresto retoma-se (no Acórdão n.º 135/88 a questão foi - como se viu - aflorada) a ponderação da aparência de imparcialidade do julgador - a imparcialidade 'aos olhos do público'.»
No âmbito do Código de Processo Penal de 1987, o Tribunal Constitucional pronunciou-se pela primeira vez sobre a estrutura acusatória do processo penal e a exigência constitucional de independência dos juízes, no Acórdão n.º 114/95
(publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Abril de 1995), quando chamado a ajuizar da constitucionalidade da norma do artigo 40º, na versão originária, em que estava em causa a intervenção do julgador que no início do inquérito ordene a emissão de mandatos de busca.
Neste acórdão, depois de se citar a doutrina sustentada nos Acórdãos n.ºs 219/89 e 124/90 e a jurisprudência do TEDH sobre o artigo 6º n.º 1 da CEDH que
'reflecte a exigência de um juízo imparcial não apenas numa perspectiva subjectiva - o que o juiz pensa no seu foro íntimo em determinada circunstância
é uma vertente da imparcialidade que se presume até prova em contrário - mas também numa visão objectiva, de modo a dissiparem-se quaisquer reservas: deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos (...)', escreveu-se:
'3.1 - O artigo 40º do CPP é, a esta luz, um dos instrumentos legais accionáveis, se postos em causa os valores ínsitos na estrutura acusatória do processo criminal. Não obstante, transparece dos autos uma consensual maneira de entender o preceito, não compaginável com mera interpretação literal: a letra do preceito, cingida à situação de presidência do debate instrutório, deve ser entendida como abrangendo outras situações em que um ou mais membros do tribunal desempenharam no processo outras funções de modo a considerar-se abalada a exigência de imparcialidade, como índice de crise da confiança geral na objectividade da jurisdição. A chave da questão reside, precisamente, neste ponto.
3.2 - Com efeito, nem sempre uma acumulação subjectiva funcional colocará em crise os valores acautelados. No caso sub judicio, chega-se, por maioria de razão, à conclusão que nem a imparcialidade do juiz nem a estrutura acusatória (...) fazem perigar esses valores. Na verdade, em causa está, apenas, o controle judicial da existência de indícios de ocultação, em casa habitada, de quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova (Código de Processo Penal, artigos 174º n.º 2,
177º n.º1 e 269º n.º 1 alínea a)). A intervenção do juiz é exigida pela preocupação de controlar a legalidade da diligência e, bem assim, garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, no caso, o direito à inviolabilidade do domicílio, o que, por outras palavras, vale dizer ser a intervenção do juiz, in casu, de dimensão exclusivamente garantística - e não de valoração de provas.
(...) o juízo sobre a concreta existência de indícios de ocultação de objectos relacionados com o crime ou que possam servir de prova é frequentemente um juízo de natureza perfunctória, feito a partir de segmentos de prova num momento em que o objecto do processo, designadamente ao nível dos factos e respectiva imputação subjectiva, está longe de ser definido, pelo que tal juízo será até, muitas vezes por insuficiência de elementos probatórios, inidóneo para fundamentar pré-juízos relativamente à matéria dos autos. No caso vertente, aliás, os mandados de busca foram emitidos no início do inquérito, em momento em que não havia qualquer referência ao recorrente, e nem sequer foram cumpridos. A intervenção do magistrado que agora preside à audiência de julgamento foi meramente ditada pela preocupação de garantir o direito à inviolabilidade do domicílio, não envolveu assunção de direcção da instrução ou exercício da acusação. Numa palavra, a conduta do juiz que, na fase inicial do inquérito, ordenou a emissão de mandados de busca, aliás não executados, não se mostra idónea para, aos olhos dos sujeitos processuais e do público, abalar a independência e imparcialidade exigidas, nem envolve confusão censurável, no ponto de vista do princípio do acusatório, entre a entidade que faz a instrução, a que deduz a acusação e a que preside ao julgamento. Não se mostra, por conseguinte, abalada a imparcialidade objectiva do julgador.'
Como se refere no Acórdão n.º 297/2003, a que nos temos reportado nesta síntese:
«Os acórdãos que depois o Tribunal Constitucional proferiu sobre a matéria
(Acórdãos n.ºs 935/96, 284/97 e 481/97, o primeiro publicado in ATC 34º vol., págs. 347 e segs.,) centram-se na interpretação da mesma norma, ínsita no artigo
40º do CPP, ainda na sua versão originária, em termos de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, na fase do inquérito decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido; o parâmetro de aferição da constitucionalidade da norma foi, fundamentalmente, a norma do artigo 32º n.º 5 da Constituição. O primeiro daqueles acórdãos, para que os restantes remetem, acolhendo a doutrina exposta no Acórdão n.º 124/90, começa por analisar a situação em que o juiz, durante o inquérito, simplesmente decreta a prisão preventiva do arguido
(que não era o caso dos autos); e admite ('numa determinada visão das coisas' é a expressão utilizada) que se não verifique infracção ao princípio do acusatório
'desde logo porque a decisão do juiz sobre a prisão preventiva (...) assenta
(...) num juízo indiciário e, por natureza, precário, periodicamente revisível'; e conclui:
'Não representando a intervenção pontual do juiz, na fase do inquérito, de decretamento ou manutenção da prisão preventiva - intervenção essa imposta por preocupações de garantia dos direitos do arguido -, a assunção da direcção da instrução ou da autoria da acusação, continua a existir distinção entre a entidade que faz a instrução e deduz a acusação e aquela que procede ao julgamento. Além disso, sendo diferentes os universos e as exigências das provas que possibilitam a imposição da prisão preventiva e que fundamentam a condenação, o juiz que, na fase do inquérito, decide acerca da prisão preventiva do arguido não deixa de ser um juiz independente e imparcial para julgar o feito penal.' Esta orientação situa-se na linha do que, adiante, o mesmo acórdão afirma -
'(...) a solução de estender o impedimento do artigo 40º do Código de Processo Penal a todos os actos isolados susceptíveis de serem praticados pelo juiz de instrução na fase preliminar do processo penal apresentar-se-ia, na generalidade dos casos, totalmente inadequada e desnecessária, em virtude de muitos deles não colocarem minimamente em causa as garantias de independência e de imparcialidade do tribunal, ínsitos no princípio da acusação, consagrado no artigo 32º, n.º 5 da lei fundamental.' Simplesmente, como se disse, esta não era a situação dos autos: o juiz do julgamento decretara e posteriormente mantivera a prisão preventiva, na fase do inquérito; ou seja, nas palavras do acórdão, a norma 'foi aplicada, in casu, numa dupla dimensão: naquela em que o juiz decretou, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, a prisão preventiva e naquela em que, em data posterior, já bem próxima da data da acusação, confirmou a prisão preventiva '. Esta circunstância leva, decisivamente, o Tribunal a julgar violadora do princípio da acusação, constante do artigo 32º n.º 5 da Constituição, a interpretação normativa em causa, nos seguintes termos:
'Na verdade, quando o juiz reaprecia a subsistência da prisão preventiva que antes decretou, num momento em que o inquérito está quase a chegar ao fim e em que já existem no processo quase todos os elementos que é possível carrear sobre a autoria do crime imputado ao arguido e sobre a sua gravidade, pode dizer-se que fica com uma convicção de tal modo arreigada quanto a estes aspectos do processo, que objectivamente - e sem prejuízo da independência que lhe for capaz de preservar - - fica inexoravelmente comprometida a sua independência e imparcialidade na fase do julgamento.' Tirados no mesmo sentido os Acórdãos n.ºs 284/97 e 481/97 e assim verificado o pressuposto contido no artigo 82º da LTC, o Acórdão n.º 186/98 in ATC 39º vol., págs. 87 e segs., veio a declarar, com força obrigatória geral, 'a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 40º do CPP, na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido, por violação do artigo
32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa .' A fundamentação deste acórdão é basicamente a que fora adoptada no Acórdão n.º
935/96, pelo que se torna inútil repeti-la. O que dela se retira com interesse para o caso é o particular enfoque do tipo e frequência da intervenção que o julgador teve, na fase do inquérito, com especial relevância do momento em que, dentro dessa fase, ela ocorreu (o mesmo acto pode ser valorado de modo diverso consoante o desenvolvimento da investigação).
É da conjugação destes factores que há-de resultar o juízo sobre a isenção, imparcialidade e objectividade do juiz enquanto julgador. A declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 40º do CPP, foi a causa da alteração da redacção deste preceito, nos termos da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, a ele sendo aditado, como causa de impedimento, o facto de o juiz, no inquérito ou na instrução, ter 'aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido'. Mas foi ainda sobre a constitucionalidade da norma do artigo 40º do CPP, na sua versão originária, que o Acórdão n.º 29/99, in ATC 42º vol., págs. 153 e segs., se pronunciou, estando, então, concretamente em causa, a prática de um acto de manutenção da prisão preventiva do arguido, no contexto do reexame trimestral dos pressupostos daquela medida de coacção. O acórdão não se distancia, substancialmente, do entendimento que conduzira à decisão do Acórdão n.º 186/98, 'numa lógica de reiteração e de verificação de circunstâncias especiais que afectam a imparcialidade e isenção do juiz (...)', deixando, no entanto, claro que, no caso, a concreta dimensão normativa declarada inconstitucional não se verificava no caso. Tendo como parâmetros de constitucionalidade as normas do artigo 32º n.ºs 1, 2 e
5 da CRP, o aresto conclui no sentido da não inconstitucionalidade (...)
É ainda na mesma versão originária que o artigo 40º do CPP vem a ser objecto de pronúncia de constitucionalidade no Acórdão n.º 338/99 (inédito), estando então em causa uma interpretação da norma constante daquele preceito legal em termos de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, presidindo ao primeiro interrogatório dos arguidos, lhes decretou a prisão preventiva. O acórdão salienta, desde logo, a diferença substancial entre o caso em apreço
(a dimensão normativa do artigo 40º do CPP cuja aplicação fora recusada na decisão recorrida por inconstitucionalidade) e o que determinara a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral no citado Acórdão n.º 186/98 - neste estava em causa uma dupla intervenção sucessiva do juiz na fase de inquérito e, no caso, uma intervenção isolada - evidenciando que tal acórdão expressamente alerta 'para a relevância da circunstância, entendida como decisiva na sua própria lógico argumentativa, de a intervenção do juiz na fase de inquérito não ser uma intervenção esporádica ou isolada, mas ser, pelo contrário, uma intervenção reiterada ou repetida' e 'de o juiz não se ter limitado a, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido, decretar a respectiva prisão preventiva', mas 'ter, em data posterior, já bem próximo da data da acusação, confirmado essa mesma prisão preventiva'. Seguindo a tese que fizera vencimento nos acórdãos anteriores, o acórdão n.º
338/99 reitera que 'não é qualquer intervenção na fase de inquérito por parte do juiz que depois há-de participar no julgamento que é apta a justificadamente pôr em causa a sua independência e imparcialidade - ou a confiança do arguido e do público nessa mesma independência e imparcialidade - em termos de dever considerar-se que a norma que a permita é inconstitucional por violação do disposto no artigo 32º n.º 5 da Constituição', dando como exemplos a ordem de uma busca domiciliária (caso versado pelo Acórdão n.º 114/95) ou o despacho de manutenção da prisão preventiva anteriormente aplicada ao arguido (caso do Acórdão n.º 29/99). Conferindo, como na jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional, importância decisiva, para aferir da constitucionalidade da norma (ou de uma sua interpretação) do artigo 40º do CPP, a um critério assente na frequência, intensidade ou relevância da intervenção do juiz no inquérito, o acórdão conclui que não enferma de inconstitucionalidade a norma recusada em termos de permitir que intervenha no julgamento o juiz que se limitou a, findo o primeiro interrogatório do arguido detido, decretar a prisão preventiva, sem qualquer outra intervenção no decurso do inquérito. Finalmente, o Acórdão n.º 423/00, in ATC 48º vol., págs. 243 e segs.,, versou sobre a constitucionalidade da norma do artigo 40º do CPP, já na redacção dada pela Lei n.º 59/98, na interpretação que permite a intervenção como julgador do juiz que na fase de inquérito procedeu ao primeiro interrogatório do arguido, determinando a respectiva libertação mediante a adopção de medidas de coacção não privativas de liberdade e posteriormente as manteve. Uma vez mais, seguindo a fundamentação dos acórdãos anteriores, o Tribunal Constitucional considerou que aquela primeira intervenção do juiz no inquérito,
'numa fase bastante embrionária do processo', em que, citando o alegado pelo Ministério Público, 'carece ostensivamente de sentido sustentar que o juiz formulou logo aí uma convicção segura sobre a culpabilidade da arguida', não permite 'que se formule uma dúvida séria sobre as suas condições de imparcialidade e isenção ou a gerar uma desconfiança geral sobre essa mesma imparcialidade e independência'. E o mesmo se concluiu, considerando aquela intervenção em conjugação com a que o juiz posteriormente teve - manutenção das medidas de coacção decretadas.»
Seguindo esta linha de orientação, o citado acórdão
297/2003, não julgou inconstitucionalidade a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, na interpretação de que permite intervir em julgamento o juiz que, no início do inquérito, interroga os arguidos que lhe são apresentados detidos e decreta a prisão preventiva desses arguidos, autorizando no mesmo dia uma busca domiciliária.
5. - Ora, a situação em causa nos presentes autos, sem prejuízo de igualmente fazer apelo aos princípios da independência e da imparcialidade do julgador ou da confiança do público nessa imparcialidade, situa-se num plano diferente. É que, enquanto naqueles casos o que se discute é o impedimento do juiz de julgamento por ter intervindo na prática de actos processuais na fase do inquérito ou de instrução, estando em causa a estrutura acusatória, aqui o enfoque da questão reside unicamente no impedimento do juiz de julgamento, por ter participado num anterior julgamento no mesmo processo que foi anulado por não ter sido efectuada a gravação da prova prestada oralmente em audiência.
Convém salientar, como refere o Ministério Público nas suas alegações, que, no caso concreto, não está em causa a aplicação dos artigos
426º e 426º-A do Código de Processo Penal - que só são convocadas quando o tribunal ad quem julgue verificados vícios intrínsecos quanto ao conteúdo da decisão tomada sobre a matéria de facto pelo tribunal recorrido, tipificados no nº2 do artigo 410º do Código de Processo Penal -, mas tão só a mera anulação do processado a partir de determinado acto – no caso, o despacho que indeferir a gravação da prova -, em consequência de ter ocorrido uma nulidade processual, susceptível de reflexamente se repercutir nos ulteriores termos da causa, incluindo o próprio julgamento.
Os vícios tipificados no artigo 410º, nº2 ,do Código de Processo Penal, reportam-se a vícios intrínsecos quanto ao conteúdo da decisão tomada sobre a matéria de facto – insuficiência ou contradição dos factos e razões que suportam a própria decisão -, ou de erros ostensivos ou patentes na valoração da prova, que pela sua natureza e gravidade constituem verdadeira nulidade de sentença, justificando o reenvio para julgamento noutro tribunal.
Já assim não é quando a anulação do julgamento decorre, não por vícios intrínsecos e lógicos do conteúdo da própria decisão, mas quando a mesma é ditada reflexamente por via da anulação dos actos posteriores em consequência do cometimento de uma nulidade decorrente da tramitação da causa.
Tanto basta, por serem diferentes as situações contempladas no artigo 426º do Código de Processo Penal, para os casos de reenvio, e a dos presentes autos, para que não se mostre violado o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º, nº1, da Constituição, existindo um fundamento material bastantes que justifica a diferença de tratamento.
6. - Também não se vê na não verificação do referido impedimento qualquer limitação dos recorrentes ao acesso ao direito e aos tribunais, tal como o consagra o nº1 do artigo 20º da Constituição da República, e a jurisprudência do Tribunal Constitucional pacificamente vem reconhecendo, estando, igualmente, intocável o direito ao recurso, consagrado na lei fundamental.
Deste modo, não implicando a situação em causa afectação da imparcialidade objectiva do juiz, igualmente não se mostra posta em causa a independência dos tribunais, consagrada no artigo 203º da Constituição, assim como não ocorre a violação de qualquer direito fundamental tutelado dos recorrentes.
III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas a cargo dos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta para cada um.
Lisboa, 13 de Agosto de 2003
Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida