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Proc. n.º 209/04
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. deduziu reclamação do despacho da Relatora do Tribunal da Relação do Porto que não admitiu o recurso que pretendia interpor para o Tribunal Constitucional.
2. Resulta dos autos que:
2.1. No Tribunal do Trabalho de Santa Maria da Feira, B. intentou, em Março de 2002, contra A., acção emergente de contrato de trabalho, com processo comum, pedindo a condenação da Ré a pagar à Autora a importância de € 4.680,61, a título de diferenças salariais – correspondentes à diferença entre a remuneração por si auferida e a remuneração paga aos seus colegas homens que executavam as mesmas funções – desde Outubro de 1994 até à propositura da acção, com fundamento no princípio “para trabalho igual, salário igual”. Por sentença de 25 de Outubro de 2002, a acção foi julgada improcedente (fls. 82 e seguintes).
2.2. B. interpôs recurso de apelação, mais uma vez sustentando que “com a diferenciação salarial praticada entre homens e mulheres, a recorrida violou o princípio constitucional de que a trabalho igual corresponde salário igual”. Nas suas alegações concluiu que “a sentença recorrida violou o disposto nas seguintes normas legais: art.º 59º, al. a) e 13º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, art.ºs 2º, al. a), d) e e), art.º 7º, n.º 2 e art.º 9º, todos do Decreto-Lei 392/79. de 20.09” (fls. 97 e seguintes).
Na resposta às alegações, a recorrida A. limitou-se a afirmar que “a Autora, não tem razão, nem de facto, nem de direito” e que “a questão está desenquadrada da apreciação casuística que o princípio do trabalho igual salário igual pressupõe, para que possa tomar-se uma qualquer decisão de fundo diferente da douta decisão proferida”.
2.3. Por acórdão de 20 de Outubro de 2003 (fls. 133 a 140), o Tribunal da Relação do Porto concedeu provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida.
Lê-se no acórdão, para o que aqui releva:
“[...] Assim, a Ré está a discriminar a Autora e suas colegas em função do sexo e da sua inferioridade física, a determinar que com tal conduta – traduzida no pagamento de retribuição inferior aos colegas homens que também trabalham no armazém – viola o disposto nos arts. 13 e 59 nº 1 al. a) da C.R. Portuguesa
[...] E tal discriminação é evidente na medida em que igualmente os homens não efectuam tarefas que estão atribuídas às mulheres e não está provado que o trabalho ou tarefas desempenhadas por estas seja de valor inferior às desempenhadas pelos homens. No fundo existem tarefas distribuídas por todos, homens e mulheres, unicamente por uma questão de organização de trabalho, em que se apela à maior força física dos homens para executar as tarefas mais pesadas, no caso, o descarregar os rolos dos camiões. Por isso, a sentença não pode manter-se.
[...].”
2.4. Notificada deste acórdão, A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, invocando como fundamento a alínea b) do n.º 1 do artigo 7º da Lei do Tribunal Constitucional (requerimento de fls. 144 e seguinte), nos seguintes termos:
“[...] Violou-se os artºs 59°, n° 1, a) e 13°, da CR, directamente e na interpretação dada ao artº 2°, d), do DL n° 392/79, de 20 de Setembro, na redacção do DL n°
426/88, de 18 de Novembro. O acórdão recorrido adoptou o entendimento normativo das normas dos artºs 13° e
59°, n° 1, a), da CRP, conjugada com a norma do artº 2°, d), do DL n° 392/79, de
20 de Setembro, na redacção do DL n° 426/88, de 18 de Novembro, de que uma organização do trabalho empresarial que atribua aos homens funções fisicamente mais exigentes e portanto diferentes das mulheres, é discriminatória do sexo e da inferioridade física das mulheres, que não tem cabimento nem se comporta na interpretação que tem vindo a ser feita pelo TC daquelas normas e que é, por isso, inconstitucional. A questão foi configurada na douta sentença proferida na 1ª instância, a que aderimos por nos ser favorável, com a referência à aplicação que se tinha feito do princípio do trabalho igual salário igual, consagrado na alínea a) do n° 1 do artº 59° da CR e que o acórdão recorrido desrespeitou ao interpretar incorrectamente, salvo o devido respeito, tal princípio constitucional e a norma legal que o regulamenta, na faceta do trabalho por sexos. Comentámos na resposta às alegações de recurso «Assim, a questão está desenquadrada da apreciação casuística que o princípio do trabalho igual salário igual pressupõe, para que possa tomar-se uma qualquer decisão de fundo diferente da douta decisão proferida». E a douta sentença proferida pela 1ª instância trata dessa situação na sua parte de «o direito», ao reproduzir, inclusivamente, posição do Tribunal Constitucional em relação ao artº 13° da CR nos seguintes termos: «Tratar por igual o que é essencialmente igual e desigualmente o que é essencialmente desigual». Trata-se, portanto, de uma questão que foi sendo suscitada ao longo do processo e que culmina com a posição do aresto recorrido, que se pretende impugnar.
[...].”
2.5. A Relatora, no Tribunal da Relação do Porto, decidiu não admitir o recurso para o Tribunal Constitucional, por entender que, não tendo a questão de inconstitucionalidade sido suscitada nos autos, o recurso é manifestamente infundado (despacho de fls. 148).
2.6. A. veio, ao abrigo do disposto no artigo 76º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional, deduzir reclamação do despacho de não admissão do recurso, através do requerimento de fls. 151 e seguintes, em que sustentou:
“[...] O despacho reclamado não admitiu o recurso por entender que não tinha sido suscitada no processo a questão da inconstitucionalidade. Ora, pelo contrário: Todo o processo gravita em tomo do princípio do trabalho igual salário igual, consagrado na alínea a) do n° l do artº 59° da CR, e da interpretação que as decisões judiciais dele fizeram. De resto, a reclamante não podia suscitar a (in)constitucionalidade do entendimento normativo do acórdão da Relação sem o conhecer (e sem decair na acção). In casu, a reclamante venceu na 1ª instância, pelo que acompanhou a sentença e limitou-se, em especial, a equacionar a questão nos termos da Lei Constitucional. O acórdão recorrido fez uma errada interpretação da lei ordinária e da lei constitucional, de molde que o princípio do trabalho igual salário igual aparece deturpado no seu sentido e alcance, em termos que violam a jurisprudência corrente do TC, o que não deixa de constituir uma surpresa, pela forma a todos os títulos inovatória com que aparece formulado. No entendimento do despacho reclamado a alínea b) do n° 1 do art° 70° é também inconstitucional, pois significa que só a parte vencida na 1ª instância pode recorrer para o Tribunal Constitucional, ferindo os artºs l3° e 20°, nº 1, da CR.
[...].”
3. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer (fls.
162 v.º), pronunciando-se no sentido de que “a presente reclamação é manifestamente improcedente”, já que “o reclamante não suscitou durante o processo e em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para servir de base ao recurso interposto nos termos da alínea b) do n.º1 do art. 70º da Lei do TC”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. A ora reclamante pretendia interpor recurso de constitucionalidade da decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
A Relatora não admitiu o recurso, por entender que não estavam verificados no caso os pressupostos processuais exigidos pela disposição mencionada, designadamente por não ter sido suscitada nos autos qualquer questão de inconstitucionalidade (supra, 2.5.).
5. Não merece censura o despacho reclamado.
É manifesto que a ora reclamante não suscitou perante o Tribunal da Relação do Porto qualquer questão de inconstitucionalidade normativa susceptível de ser submetida à apreciação do Tribunal Constitucional no âmbito do recurso de fiscalização concreta previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC.
E, ao contrário do que é afirmado no requerimento através do qual foi deduzida a presente reclamação (supra, 2.6.), não se trata de situação em que a ora reclamante estivesse dispensada do ónus de suscitar a inconstitucionalidade durante o processo, nos termos admitidos pela jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Na verdade, a ora reclamante teve oportunidade processual de suscitar a inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, como exige o artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, concretamente nas contra-alegações que produziu perante o Tribunal da Relação do Porto, em resposta às alegações da então recorrente (supra, 2.2.).
Sublinhe-se, por último, que nem no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional nem na reclamação do despacho que não admitiu esse recurso – que, de todo o modo, não constituíam já momentos adequados para considerar suscitada “durante o processo” a questão de inconstitucionalidade – a ora reclamante identificou com clareza a norma que pretendia submeter à apreciação do Tribunal Constitucional.
6. Conclui-se assim que, não tendo sido suscitada de modo processualmente adequado perante o tribunal recorrido qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, não podem dar-se como verificados no caso dos autos os pressupostos processuais do tipo de recurso interposto.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 30 de Março de 2004
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos