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Processo n.º 890/2011
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. A., SGPS, SA reclamou junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto do despacho proferido pelo Chefe de Serviço de Finanças da Maia, que indeferira o pedido para que fosse declarada extinta, com fundamento na prescrição de dívidas exequendas provenientes do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) do ano de 1990, a execução fiscal que contra si corria.
O TAF do Porto, por sentença datada de 21 de outubro de 2010, julgando procedente a reclamação, declarou prescrita a obrigação tributária que lhe dera origem.
Desta decisão recorreu a Fazenda Pública para o Tribunal Central Administrativo Norte que, por acórdão proferido a 3 de fevereiro de 2011, concedeu provimento ao recurso e revogou a decisão recorrida.
A., SGPS, SA, interpôs então recurso para o Supremo Tribunal Administrativo.
Nas respetivas alegações, suscitou a questão da inconstitucionalidade orgânica e material da norma contida nos nºs 1 e 3 do artigo 49.º da Lei Geral Tributária (doravante LGT), na redação anterior à Lei nº 53-A/2006, de 29/12, quando interpretada no sentido segundo o qual “a apresentação de impugnação judicial, para além de interromper o decurso do prazo de prescrição, suspende ou protela o início desse prazo para o momento em que transitar em julgado a respetiva decisão”. (fls. 339)
Por acórdão datado de 22 de junho de 2011, decidiu o Supremo Tribunal não tomar conhecimento da questão de constitucionalidade que fora suscitada, por entender que o Tribunal Administrativo Central Norte não aplicara a norma cuja inconstitucionalidade se invocava.
Contudo, em sequência de reclamação apresentada por A., SGPS, SA, o Supremo veio a proferir mais tarde novo Acórdão (a 2 de novembro de 2011), no qual decidiu “deferir o pedido de reforma [da decisão de 22 de junho] na parte referente ao conhecimento das suscitadas constitucionalidades, e, conhecendo das mesmas, julgá-las não verificadas.” Fê-lo com os seguintes fundamentos:
3.2. Falta de apreciação da invocada inconstitucionalidade dos art.ºs 49.º, nº 1 e 3 da LGT.
“Sobre esta matéria refere a recorrente que só por lapso manifesto a questão não foi apreciada, pedindo, por isso, a reforma da decisão, ao abrigo do nº 2 do art.º 669.° do CPC, em ordem a ser a mesma conhecida.
Invoca a recorrente que, do acórdão do TCAN, decorre com toda a evidência que foi tido em conta na decisão o disposto nos nºs 1 e 3 do art.º 49° da LGT, na redação anterior à Lei nº 53-A/2006, pelo se verificam os requisitos para a reforma da decisão (art.º 669, nº 2, alínea b) do CPC).
Vejamos então se procede a reclamação nesta parte.
3.2.1. O art.º 669°, nº 2 do CPC, estabelece o seguinte:
'2 - Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:
a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;
b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida '.
Ora, não estando em causa erro na determinação da norma aplicável, nem na qualificação jurídica dos factos, apenas se poderia verificar qualquer lapso manifesto se do processo constasse qualquer 'documento ou outro meio de prova plena' que implicasse decisão diversa da proferida.
Embora sendo discutível se o acórdão do TCAN pode considerar-se documento ou meio de prova plena, para efeitos desta norma, vamos ver se existiu manifesto lapso quando se referiu que as normas cuja inconstitucionalidade a recorrente suscitou, não haviam sido aplicadas pelo acórdão do TCAN.
Ora, desde já se dirá que se reconhece esse lapso.
Com efeito, as normas aplicadas no acórdão – art.º 49.º, nºs 1 e 3 da LGT - são na versão anterior à Lei n° 53-A/2006, e é sobre essa mesma versão que a recorrente pretende ver apreciada a sua inconstitucionalidade, tendo apresentado a seguinte argumentação, extraída das conclusões do seu recurso:
Só com o aditamento de um novo nº 4 ao art.º 49.º da LGT, por meio do art.º 89° da Lei n° 53-A/2006, de 29.12 (entrado em vigor em 01.01.2007, conforme o respetivo art.º 163°), é que o legislador, inovadoramente, veio considerar que o prazo de prescrição legal se suspende enquanto não houver decisão transitada em julgado, no caso de impugnação judicial.
Esta nova lei não estava em vigor à data da apresentação da impugnação judicial, 18.12.2001.
Contrariamente ao preconizado no Acórdão recorrido, a lei nova (LGT) veio encurtar o prazo de prescrição, em relação ao CPT, e não alargá-lo.
Qualquer interpretação da nova lei, em sentido contrário entende com a própria lei de autorização legislativa que esteve na génese deste novo regime prescricional instituído pela LGT.
Se se considerasse que o prazo de prescrição estaria sempre suspenso enquanto estivesse pendente a impugnação judicial, não faria qualquer sentido o nº 2 do art.º 49° da LGT, segundo o qual essa suspensão ocorre entre a data da instauração e a paragem do processo de impugnação por mais de um ano (por razão inimputável ao contribuinte).
Com efeito, o sobredito art.º 49.º, nº 1 e nº 3 da LGT é organicamente inconstitucional, se interpretado no sentido de que a apresentação de impugnação judicial, para além de interromper o decurso do prazo de prescrição, suspende ou protela o início desse mesmo prazo para o momento em que transitar em julgado a respetiva decisão.
A questão da prescrição é matéria de direito material, substantivo (e não meramente adjetivo ou processual), incluída no âmbito da garantia dos contribuintes.
Sobre 'as garantias dos contribuintes' vigora o princípio da legalidade tributária (cfr. artºs 8.º, nºs 1 e 2, alínea a) da LGT, 103.º, nº 2 e nº 3 e 165.º, n.º 1, alínea j) da CRP).
As 'garantias dos contribuintes' constituem, pois, um dos elementos essenciais do direito tributário.
A sujeição das normas reguladoras da prescrição ao princípio da legalidade tributária de reserva de lei formal conduziu-nos forçosamente ao postulado da inadmissibilidade da sua aplicação analógica (cfr. art.º 11.º, nº 4 da LGT).
Designadamente dos art.ºs 326.º, nº 1 e 327.º, nº 1 do CC aplicados pelo Acórdão recorrido.
A interpretação preconizada no Acórdão recorrido significa que a prescrição jamais ocorre, seja em que circunstância for, contrariando os ideais de segurança e paz jurídica que estão e sempre estiveram na génese do instituto da prescrição.
Ao invés, a Lei de Autorização Legislativa nº 41/98, de 4/8, que aprovou a LGT, apenas autorizou o Governo a alterar os pressupostos da interrupção do prazo de prescrição, que poderia ser encurtado.
Aquela Lei de Autorização Legislativa não autorizou o Governo a criar quaisquer pressupostos de suspensão ou alargamento do prazo de prescrição.
Deste modo, o art.º 49.º, nº 3 da LGT, na interpretação segundo a qual a apresentação da impugnação judicial protela o início do prazo da prescrição para a data do respetivo trânsito em julgado, sufragada no douto Acórdão recorrido, para além de material, é organicamente inconstitucional.
O prazo de prescrição interrompeu-se com a apresentação da impugnação judicial, em 28.12.2001, reiniciando-se, a partir daí, a contagem do prazo de prescrição, de 8 anos, o qual, por isso, terminou em 18.2.2009.
Só esta interpretação do art.º 49.º, nº 3 da LGT, redação em vigor em 18.12.2001, se coaduna com os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, decorrentes do primado do Estado de Direito Democrático, consagrado no art.º 2 da CRP.
Sendo assim, dá-se procedência à reclamação, nesta parte, passando-se à apreciação da suscitada questão da inconstitucionalidade orgânica e material das normas dos nºs 1 e 3 do art.º 49.º da LGT, interpretadas no sentido de que a impugnação judicial interrompe o prazo de prescrição e que este fica suspenso até ao trânsito em julgado da decisão aí proferida.
3.3. Inconstitucionalidade orgânica
Refere a recorrente que o art.º 49.º, nºs 1 e 3 da LGT é organicamente inconstitucional se interpretado no sentido de que a apresentação da impugnação judicial, para além de interromper o decurso do prazo de prescrição, suspende ou protela o início desse mesmo prazo para o momento em que transitar em julgado a decisão.
Isto porque a autorização legislativa nº 41/98, de 4 de agosto, que aprovou a LGT, apenas autorizou o Governo a alterar os pressupostos da interrupção do prazo de prescrição, que poderia ser encurtado, mas não autorizou o Governo a criar pressupostos de suspensão ou alargamento do prazo de prescrição.
Vejamos.
O art.º 49.º citado estabelecia nos seus nºs 1 e 3 (em vigor à data dos factos):
'1- A citação, a reclamação, o recurso hierárquico, a impugnação e o pedido de revisão oficiosa da liquidação do tributo interrompem a prescrição.
3- O prazo de prescrição legal suspende-se por motivo de paragem do processo de execução fiscal em virtude de pagamento de prestações legalmente autorizadas, ou de reclamação, impugnação ou recurso'(Redação dada pela lei nº 100/99, de 26 de julho, sendo a redação originária a seguinte:
3 - O prazo de prescrição legal suspende-se por motivo de paragem do processo de execução fiscal em virtude de pagamento ou prestação legalmente autorizada, ou de reclamação, impugnação ou recurso).
Ora, não decorre do nº 1 qualquer alargamento do prazo de prescrição previsto no art.º 48.º do mesmo diploma, nem aí se estabelece qualquer causa de suspensão. É no nº 3 que se indicam alguns factos suspensivos que não estavam previstos no CPT, ao contrário do que sucedia com os factos interruptivos consagrados no nº 3, primeira parte, do seu art.º 34.º.
Portanto, o que sucedeu foi que o tribunal interpretou o nº 1 de acordo com a filosofia do instituto da prescrição e segundo a qual esta tem um efeito instantâneo - o de inutilizar todo o tempo anteriormente decorrido - e um efeito duradouro - o de o prazo só voltar a contar após cessado o facto interruptivo (no caso, após o trânsito em julgado da decisão proferida na impugnação).
É que a LGT previa os factos interruptivos e suspensivos, mas não os efeitos da interrupção, pelo que haveria que recorrer às normas do Código Civil indicadas no acórdão.
Como concluiu o Mº Pº no seu parecer de fls. 432 '... o diferimento do novo prazo de prescrição não significa um alargamento do prazo, antes uma interpretação da norma que estabelece o novo prazo mais curto, a qual deve ser confrontada com idêntica interpretação da norma que estabelecia um prazo mais longo (art.º 34.º nº 1 do CPT) efetuada pela jurisprudência, por aplicação das mesmas regras hermenêuticas '.
Não estamos, pelo exposto, em face de qualquer inconstitucionalidade orgânica.
3.4. Inconstitucionalidade material.
Refere a recorrente, nesta parte, que à data, 18.12.2001, existia norma especial sobre a questão da 'suspensão' do prazo de prescrição.
Era ela o art.º 49.º, nº 3 da LGT, de cuja redação, então, não se podia extrair que o prazo de prescrição se suspendia enquanto durasse a pendência da impugnação judicial e muito menos que o prazo prescricional se suspendia enquanto a impugnação judicial não fosse objeto de decisão transitada em julgado.
Por existência de lei especial sobre a matéria, é inaplicável o art.º 327.º, nº 1 do CC referido no Acórdão recorrido (cfr. art.º 7.º, nº 3 do CC).
Só com o aditamento de um novo nº 4 ao art.º 49° da LGT, por meio do art.º 89.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29.12 (entrado em vigor em 01.01.2007, conforme o respetivo art.º 163°), é que o legislador, inovadoramente, veio considerar que o prazo de prescrição legal se suspende enquanto não houver decisão transitada em julgado, no caso de impugnação judicial.
Esta nova lei não estava em vigor à data da apresentação da impugnação judicial, 18.12.2001.
A questão da prescrição é matéria de direito material substantivo, incluída no âmbito da garantia dos contribuintes, vigorando o princípio da legalidade tributária (cfr. artºs 8.º, nºs 1 e 2, alínea a) da LGT, 103.º, nº 2 e nº 3 e 165.º, nº 1, alínea j) da CRP).
As 'garantias dos contribuintes' constituem um dos elementos essenciais do direito tributário, estando as normas reguladoras da prescrição sujeitas ao princípio da legalidade tributária de reserva de lei formal pelo que é inadmissível a sua aplicação analógica (cfr. art.º 11.º, nº 4 da LGT), designadamente dos artºs 326.º, nº 1 e 327.º, nº 1 do CC aplicados pelo Acórdão recorrido.
A interpretação preconizada no Acórdão recorrido significa que a prescrição jamais ocorre, seja em que circunstância for, contrariando os ideais de segurança e paz jurídica que estão e sempre estiveram na génese do instituto da prescrição.
Só esta interpretação do art.º 49.º, nº 3 da LGT, redação em vigor em 18.12.2001, se coaduna com os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, decorrentes do primado do Estado de Direito Democrático, consagrado no art.º 2.º da CRP.
Vejamos então.
Ora, tal como acima se referiu já, do art.º 49.º, nº 1 não se retirou qualquer causa suspensiva da prescrição a aplicar em conjunto com os artºs 326.º e 327.º do Código Civil.
As causas suspensivas constavam do nº 3. Do nº 1 retiraram-se, por aplicação do princípio geral do Código Civil, os efeitos da prescrição que não constavam da LGT.
Ora, existindo já este princípio, mesmo no domínio do CPT, não vemos em que a interpretação do acórdão ofende os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança dos contribuintes.
Assim, a conclusão da recorrente de que do nº 3 não se podia retirar que a interrupção da prescrição se prolongava até ao trânsito da decisão proferida na impugnação é da sua responsabilidade.
O acórdão não se baseou, nem podia basear, porque a norma o não previa, no nº 3 para a decisão a que chegou.
E, também não decorre da nova redação do nº 3 (que passou a 4) que, pelo facto de a lei vir agora prever a situação expressamente, não se pudesse já retirar o mesmo princípio do ordenamento jurídico anterior.
Concluímos também nesta parte que não ocorre qualquer inconstitucionalidade material”.
2. Desta decisão interpôs A., SGPS, SA, recurso para o Tribunal Constitucional.
No respetivo requerimento de interposição, disse que recorria ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional: LTC), e que pedia que o Tribunal apreciasse a “inconstitucionalidade orgânica e material do artigo 49.º, nºs 1 e 3 da LGT, na redação anterior à da Lei nº 53-A/2006, de 29/12, se interpretado no sentido de que a apresentação de impugnação judicial, para além de interromper o decurso do prazo de prescrição, suspende ou protela o início desse mesmo prazo para o momento em que transitar em julgado a respetiva decisão.”
Já no Tribunal, foi ordenada a produção de alegações, com a advertência de que o objeto do recurso se deveria circunscrever à norma contida no nº 1 do artigo 49.º da LGT, na redação anterior à Lei nº 53-A/2006, de 29/12, na dimensão interpretativa enunciada no requerimento de interposição, uma vez que o disposto no nº 3 do mesmo artigo não fora aplicado pela decisão recorrida.
3. Aceite esta advertência, e circunscrito deste modo o objeto do recurso, apresentaram quanto a ele A., SGPS, SA, e a Fazenda Pública, respetivamente, as suas alegações e contra-alegações.
Sustentou a primeira a tese da inconstitucionalidade, que fundamentou, antes do mais, na ideia segundo a qual se configuram como garantias dos contribuintes, para efeitos do disposto no artigo 103.º da Constituição, os prazos de prescrição das dívidas tributárias, bem como os fatores interruptivos e (ou) suspensivos do seu decurso e as consequências decorrentes da interrupção e (ou) suspensão. Assim sendo, a norma aplicada pela decisão recorrida seria material e organicamente inconstitucional. Materialmente inconstitucional, primeiro, porque lesiva da reserva material de lei que o nº 2 do artigo 103.º da CRP consagra, quando fixa o princípio básico da legalidade tributária, princípio esse aplicável ainda às garantias dos contribuintes e, portanto, ao próprio regime de decurso do prazo de prescrição das dívidas tributárias. É que, no dizer da recorrente, de tal princípio de legalidade decorreria a proibição, para os aplicadores da lei, do recurso à interpretação analógica quanto à determinação dos “elementos essenciais do imposto”, neles incluindo o regime do decurso do prazo de prescrição das dívidas tributárias; ora, no caso concreto, o tribunal a quo, para retirar do nº 1 do artigo 49.º da LGT (na redação anterior à Lei nº 53-A/2006, de 29 do 12) a norma que agora se submetia ao juízo do Tribunal Constitucional recorrera efetivamente à analogia ao invocar o regime vigente no Direito Civil, o que lesava, portanto, o princípio da legalidade constante do artigo 103.º da CRP. Além do mais, e justamente por causa desse mesmo princípio, a norma em juízo padeceria ainda de inconstitucionalidade orgânica. Isto porque, sendo a lei a que se refere o nº 2 do artigo 103.º da CRP, necessariamente, ato legislativo da Assembleia da República, ou ato legislativo do Governo devidamente autorizado pelo Parlamento [artigo 165, nº1, alínea i) e nº 2], no caso, a norma em juízo não fora autorizada pela Assembleia da República, visto que se cifrava em alargamento do prazo de prescrição, quando a lei de autorização legislativa pertinente (ao abrigo da qual fora redigido o nº 1 do artigo 49.º da LGT agora em apreciação) apenas habilitara o Governo para legislar no sentido do encurtamento (e não do alargamento) do prazo de prescrição.
Contra-alegou a Fazenda Pública, contestando quer a tese da inconstitucionalidade material quer a tese da inconstitucionalidade orgânica.
Quanto à primeira, disse que não tendo havido, in casu, qualquer recurso à analogia – relevando a invocação, por parte do tribunal a quo e para a determinação dos efeitos da interrupção do decurso do prazo de prescrição [da dívida tributária], do regime de Direito Civil, não da necessidade do preenchimento de qualquer lacuna, mas da simples aplicação de um processo hermenêutico comummente usado -, nenhuma razão haveria para que se considerasse que a norma sob juízo violava a reserva material de lei constante do nº 2 do artigo 103.º da CRP.
Por outro lado, disse ainda a Fazenda Pública, também nenhum motivo haveria para que se considerasse lesada a reserva (orgânica) de lei da Assembleia da República, uma vez que a norma aplicada pela decisão recorrida, e resultante do processo hermenêutico comum, se não cifrava (ao contrário do que pretenderia a recorrente) em um qualquer alargamento do prazo de prescrição, para o qual não estaria habilitado o legislador governamental.
Finalmente, terminou a Fazenda Pública as suas contra-alegações salientando que, de qualquer modo, o tribunal recorrido não aplicara a norma que o recorrente apresentara como objeto do recurso:
“XIII) Acresce referir, finalmente, que o que nos parece correto é considerar não só que o Acórdão do TCA Norte não só não considerou a norma constante do nº 3 do art.º 49.º da LGT, mas também que o efeito duradouro da impugnação não se baseou no nº 1 do art.º 49.º da LGT, mas simplesmente, nos efeitos da interrupção constantes do art.º 327.º nº 1 do CC, cfr. consta do Acórdão do STA, proferido nos presentes autos em 22/06/11”.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
4. O último argumento apresentado pela Fazenda Pública nas suas contra-alegações, e cuja formulação acabou de transcrever-se, redundaria, se certeiro, numa decisão de não conhecimento do objeto do recurso por parte do Tribunal. Com efeito, e como é em geral sabido, para que uma decisão proferida em processo de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas possa ter efeito útil – implicando a reforma da decisão recorrida ou a sua confirmação quanto à questão de constitucionalidade (artigo 80.º da LTC) –, necessário é que ela incida sobre a norma que foi a razão de decidir da sentença de que se interpôs recurso. Se esta última sentença tiver aplicado uma outra norma que não aquela cuja inconstitucionalidade se invoca a intervenção do Tribunal Constitucional tornar-se-á inútil, pelo que o recurso interposto não deverá sequer ser admitido. É esta, aliás, também a conclusão que se deve retirar da alínea b) do nº 1 do artigo 280.º da CRP, que diz que cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que tenham aplicado normas cuja inconstitucionalidade se arguiu durante o processo.
Sucede, porém, que, no caso, não é certeiro o argumento apresentado pela Fazenda Pública na parte final das suas contra-alegações. Decorre do relato anteriormente feito que, por Acórdão datado de 2 de novembro de 2011, o Supremo Tribunal, corrigindo decisão anterior sua que apenas conhecera da questão infraconstitucional [Acórdão de 22 de junho de 2011], não só reconhece que o Tribunal Central Administrativo Norte efetivamente aplicara a norma cuja inconstitucionalidade o recorrente arguira como, consequentemente, decide conhecer da questão de constitucionalidade por aquele colocada, julgando-a não verificada. Assim sendo, não procede a razão obstativa ao conhecimento do objeto do recurso, invocada pela Fazenda Pública nas suas contra-alegações.
Tal não significa, porém, que não ocorram na situação presente outros motivos, igualmente obstativos à possibilidade de o Tribunal proferir para o caso decisão de mérito.
5. A tese da inconstitucionalidade, sustentada pela recorrente, parte do princípio segundo o qual o regime jurídico da prescrição das dívidas tributárias – incluindo, não apenas a fixação dos prazos, mas ainda os pressupostos de interrupção e suspensão do decurso destes últimos, bem como os respetivos efeitos – integra o conceito de “garantias dos contribuintes”, para efeitos do disposto no nº 2 do artigo 103.º da Constituição. Encontrando-se, assim, toda a matéria atinente a estes temas sujeita ao princípio da reserva de lei formal, será constitucionalmente proibido que o julgador proceda no seu âmbito a formas analógicas de aplicação do direito, de modo a retirar, nomeadamente de preceitos legais relativos à interrupção ou suspensão do decurso do prazo de prescrição das obrigações tributárias, sentidos sem correspondência direta na letra da lei. Se tal acontecer, a norma resultante deste processo interpretativo, que a Constituição não admite, será ela própria inconstitucional, por violação da garantia segundo a qual ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não sejam criados por lei, nos termos da Constituição.
Como, segundo ainda a recorrente, in casu, o Supremo Tribunal Administrativo teria precisamente recorrido à analogia para resolver a questão que lhe fora colocada – a de saber se estaria ou não prescrita a dívida tributária em causa – a norma aplicada na sua decisão (o nº 1 do artigo 49.º da Lei Geral Tributária, quando interpretado no sentido segundo o qual a apresentação de impugnação judicial, para além de interromper o decurso do prazo de prescrição, suspende ou protela o início desse mesmo prazo para o momento em que transitar em julgado a respetiva decisão) seria inconstitucional, por violação do princípio da legalidade fiscal, quer na sua vertente substancial, de definição típica por lei dos elementos essenciais dos impostos, aí incluindo as garantias dos contribuintes, quer na sua vertente formal e orgânica, nos termos da qual, e quanto a esses elementos, pertence apenas ao legislador parlamentar, ou ao legislador governamental autorizado pelo parlamento, a decisão a tomar.
6. Não se contesta a premissa essencial sobre a qual assenta a tese da inconstitucionalidade, assim entendida. O Tribunal tem-na confirmado, em jurisprudência constante (vejam-se, por exemplo, os Acórdãos nºs 168/2002 e 280/2010, disponíveis em www.tribunalconstitucional,pt). A definição, por lei, do regime de prescrição das dívidas tributárias – aí incluindo, não só a fixação do prazo mas ainda as causas e efeitos da interrupção ou suspensão do decurso do mesmo – integra indubitavelmente o conceito constitucional de “garantias dos contribuintes”, para efeitos do disposto no nº 2 do artigo 103.º da CRP. Como o contribuinte, uma vez decorrido o prazo de prescrição sem que a dívida tributária tenha sido cobrada, fica dela desobrigado, a definição dos termos em que poderá vir a ocorrer, por decurso do tempo, a extinção da obrigação tributária forma um dos elementos essenciais dos impostos, na aceção que esta última expressão ganha nos termos do artigo 103.º da Constituição. Quer isto dizer que o princípio da legalidade fiscal, que garante que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não sejam criados por lei, inclui ainda a identificação das causas e efeitos dos fenómenos de interrupção e suspensão de decurso do prazo de prescrição das dívidas tributárias, pelo que esta definição deve ser feita por lei e só pode ser feita por lei. Até este ponto, portanto, nenhuma dúvida se coloca quanto à tese apresentada, no caso, pela recorrente.
Como nenhuma dúvida se coloca quanto ao passo seguinte que essa tese enfrenta. Estando toda esta matéria submetida ao princípio da reserva de lei formal, serão quanto a ela proibidas todas as formas de aplicação analógica do direito, que conduzam à formulação de normas, achadas pelo julgador na decisão do caso concreto, e que não tenham na letra da lei uma correspondência estrita. Sob o ponto de vista da Constituição, essas não serão as normas competentes para resolver os casos, pois que, nestes domínios, valerá o princípio da exclusiva, e exaustiva, competência legal. É o que decorre naturalmente do princípio nullum tributum sine lege coerta.
Onde as incertezas começam, porém, é na afirmação da competência do Tribunal Constitucional para conhecer destas questões de inconstitucionalidade, em que a violação da lei Fundamental se dá no próprio “processo interpretativo” seguido pelo julgador no caso concreto. Como, nestas situações, a inconstitucionalidade ocorre pelo facto de se não terem cumprido, durante o processo de aplicação do direito infraconstitucional, as exigências decorrentes do princípio da legalidade penal ou fiscal, na sua vertente de tipicidade, há numerosa jurisprudência que, com razões poderosas, sustenta que a sua sindicância se encontra fora do âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal (vejam-se, neste sentido e a título de exemplo, os Acórdãos nºs 524/2007, 336/2003, 331/2003, 196/2003, e 674/99). Os motivos que explicam tal orientação centram-se em uma dupla qualidade que o Tribunal detém: por um lado, aquela que decorre da sua condição de jurisdição autónoma, existente, no sistema da Constituição, para além dos restantes tribunais (artigo 209.º); por outro lado, aquela que decorre da sua condição de jurisdição com competência para fiscalizar a constitucionalidade de normas e só de normas (artigos 277.º a 283.º).
Dado que, enquanto jurisdição autónoma, destinada especificamente a administrar a justiça em matérias jurídico-constitucionais, o Tribunal não é instância revisora do modo pelo qual os restantes tribunais interpretam e aplicam o direito comum – diz esta orientação -, então, também não pode surgir como tribunal de revisão do modo pelo qual se julgou determinada questão, apenas porque o processo interpretativo que no julgamento se seguiu lesou o princípio da legalidade fiscal ou penal: se o fizesse estaria a arvorar-se, ao arrepio da sua natureza fundamental, em quarta instância da ordem dos tribunais comuns. Por outro lado, diz-se ainda, tal implicaria conhecer da constitucionalidade de decisões judiciais, em si mesmas consideradas (pois que objeto do juízo de constitucionalidade seria o próprio processo interpretativo que em certo julgamento se seguiu), o que se situa claramente fora do âmbito dos seus poderes cognitivos, que o sistema constitucional circunscreveu – ao contrário daqueles outros que preveem as chamadas queixas constitucionais ou recursos de amparo – a normas e só a normas.
7. Deve desde já dizer-se que se não seguirá, no presente caso, a orientação que acabou de ser resumida.
Tal como sucedeu, por exemplo, no caso dos Acórdãos nºs 183/2008, 110/2007 e 412/2003, conhecer-se-á da questão, por se entender que ela se não situa para além da competência própria do Tribunal Constitucional.
É certo que a este último cabe conhecer da constitucionalidade de normas e só de normas. Mas também é certo que, desde cedo, a jurisprudência constitucional adotou um conceito funcional de “norma”, ou seja, um conceito funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização instituído pela Constituição e consonante com a sua justificação e sentido. E se, em fiscalização abstrata, um conceito de “norma” adequado à função que a Constituição confere ao Tribunal é aquele que inclua todo o ato do poder público que “cont[enha] uma regra de conduta para os particulares e para a Administração, ou um critério de decisão desta última para o juiz”, o que acontecerá ainda “com os preceitos legais de conteúdo individual e concreto, ainda mesmo quando possuam eficácia consuntiva”, pois que, tendo eles também como parâmetro de validade imediato não a lei mas a Constituição, nada justificaria que o seu exame escapasse ao controlo específico da constitucionalidade (assim mesmo, Acórdão nº 26/85), na fiscalização concreta, por seu turno, o conceito funcional de “norma” inclui não apenas o enunciado de determinado preceito, em si mesmo tomado, mas ainda a certa interpretação que lhe foi dada pela decisão judicial de que se interpôs recurso. Também aqui é este o sentido funcionalmente adequado que se deve atribuir ao termo “norma”, pois que consonante com as razões justificativas da função de controlo atribuídas ao Tribunal pela Constituição. De outro modo – e tal como aconteceria em fiscalização abstrata, se se partisse de uma noção mais restrita de atos normativos, que não incluísse os atos formais do poder legislativo, ainda que com conteúdo individual e concreto –, também em fiscalização concreta, se o Tribunal não sindicasse a conformidade constitucional das diferentes dimensões interpretativas dadas pelo julgador, nos casos concretos, às normas que por ele são aplicadas (ou cuja aplicação é recusada), a função que, especificamente, é atribuída à jurisdição constitucional (de administração da justiça em matérias jurídico-constitucionais : artigo 223.º) não viria a ser cabalmente cumprida.
É ainda essa a função que o Tribunal cumpre quando aceita conhecer de questões de constitucionalidade similares àquela que é colocada no presente caso. O facto de a questão surgir no decurso do processo interpretativo do direito comum que o tribunal a quo adotou não transforma o Tribunal Constitucional em instância revisora das decisões dos tribunais comuns: do que aqui ainda se trata é de sindicar a constitucionalidade de uma norma, ou de um critério geral da decisão judicial do caso concreto, que terá sido obtida através de um procedimento que a Constituição, por imposição das garantias de legalidade e tipicidade, penal e tributária, expressamente exclui.
8. No caso, alega a recorrente que foi lesada a garantia da legalidade tributária (artigo 103.º, nº 2) da CRP, por ter o tribunal a quo resolvido a questão material controvertida – a de saber se se encontraria ou não prescrita a dívida tributária que sobre o mesmo recorrente impendia - com recurso ao pensamento analógico, constitucionalmente proibido em matéria de “elementos essenciais dos impostos”.
Mais precisamente, sustenta-se o raciocínio que segue. Aplicável ao caso há uma única e exaustiva lex coerta. E essa é a que consta do artigo 49.º da Lei Geral Tributária, na versão anterior à entrada em vigor da Lei nº 53-A/2006, de 29 de dezembro. Sob a epígrafe “Interrupção e suspensão da prescrição”, diz o nº 1 do artigo 49.º da LGT que “[a] citação, reclamação, o recurso hierárquico e o pedido de revisão oficiosa da liquidação do tributo interrompem a prescrição”. Ora, deste preceito, com esta literalidade, retirou o tribunal a quo a “norma” que aplicou ao caso concreto: a apresentação de impugnação judicial, para além de interromper o decurso do prazo de prescrição, suspende ou protela o início desse mesmo prazo para o momento em que transitar em julgado a respetiva decisão.
[Recorde-se que, no requerimento de interposição do recurso, havia sido indicada como “sede” da “norma” questionada, também, o nº 3 do referido artigo da LGT. No entanto, como o acórdão recorrido, decidindo sobre um pedido de reforma de decisão anterior, eliminou, por considerar tratar-se de “lapso manifesto”, o parágrafo dessa mesma decisão em que se considerara aplicável ao caso o nº 3 do artigo 49º., ficou, por despacho proferido já no Tribunal Constitucional, circunscrito o objeto do recurso de constitucionalidade à norma constante do nº 1.]
Dizendo de outro modo, da literalidade do nº 1 do artigo 49.º da LGT, acima transcrita, retirou a decisão recorrida uma tripla conclusão: (i) a de que era duradouro o efeito interruptivo do prazo de prescrição decorrente da apresentação de impugnação judicial; (ii) a de que esse efeito durava enquanto durasse o processo que fora iniciado pela apresentação da referida impugnação; (iii) que, uma vez findo esse processo, com o trânsito em julgado da respetiva decisão judicial, o efeito interruptivo se “degradava” em suspensivo, visto que voltava então a correr o prazo de prescrição, somado desta vez ao que já correra até à data da apresentação da impugnação judicial.
Ora, no dizer da recorrente, esta “norma”, sem correspondência alguma com a letra da lei vigente no momento da prática dos factos – mas correspondendo, depois, à solução que viria textualmente a ser adotada pelo legislador, quando, através da Lei nº 53-A/2006, de 29 de dezembro, aditou um nº 4 ao artigo 49.º da LGT -, foi obtida porque o aplicador da lei fiscal, recorrendo à analogia, a foi buscar, fora do sistema da lei tributária, aos artigos 326.º e 327.º do Código Civil. Um tal procedimento de obtenção da norma aplicável ao caso contende porém com a garantia da lex coerta, que vai ínsita nos nºs 2 e 3 do artigo 103.º da CRP.
Deve no entanto sublinhar-se que, justamente à altura da prática dos factos, ou seja, antes da início da vigência da Lei nº 53-A/2006, de 29 de dezembro (que veio aditar o nº 4 ao artigo 49.º da LGT), a redação literal deste último preceito continha um nº 2, segundo o qual “[a] paragem do processo por período superior a um ano por facto não imputável ao sujeito passivo faz cessar o efeito previsto no número anterior [o efeito interruptivo da prescrição, provocado pela apresentação de impugnação judicial], somando-se, neste caso, o tempo que decorrer após esse período ao tempo que tiver recorrido atá à data da autuação.”
Esta solução, decorrente portanto do preceito aplicável ao caso (do nº 2 do artigo 49.º da LGT), já constava do artigo 34.º., nº 3 Código de Processo Tributário, e, antes deste último, do artigo 27.º do velho Código de Processo das Contribuições e Impostos. Era, por isso, uma solução com algum curso de tradição entre nós. Além disso, era também uma solução que pressupunha, na sua literalidade, a existência dos três elementos integrantes da “norma” que, no caso, o tribunal a quo extraiu do nº 1 do artigo 49.º da LGT. Na verdade, só era pensável que o legislador dissesse (como o vinha dizendo tradicionalmente) que o efeito interruptivo da prescrição se “degradava” em efeito suspensivo caso o processo ficasse parado por facto não imputável ao contribuinte por período superior a uma ano se, com anterioridade lógica, fosse dado como assente não apenas que a apresentação de impugnação judicial (facto iniciador do processo) interrompia o decurso de prazo de prescrição – o que constava da literalidade do nº 1 do artigo 49.º da LGT, do nº3 do artigo 34.º do CPT e do artigo 27.º do CPCI - mas ainda que: (i) era duradouro o efeito interruptivo do prazo de prescrição provocado pela referida apresentação; (ii) que esse efeito duraria enquanto durasse o processo; (iii) e que ele viria a “degradar-se” em efeito suspensivo uma vez findo naturalmente esse processo, com o trânsito em julgado da correspondente decisão judicial. Com efeito, se se previa que tal efeito sobreviesse caso, estando o processo parado por facto não imputável ao contribuinte, passasse um ano desde a apresentação da impugnação judicial, por maioria de razão se concluiria que o mesmo efeito se daria se o processo, ao invés de ficar parado, viesse a findar naturalmente, com o trânsito em julgado da respetiva decisão judicial.
Nestes termos, a “norma” extraída da literalidade do nº 1 do artigo 49.º da LGT não correspondia a uma norma necessariamente estranha ao sistema tributário. Plausivelmente nele se conteria, a ponto de poder ser extraída por via de interpretação (na aceção estrita do termo enquanto processo comum de determinação do sentido de uma coisa, que sendo já um sentido presente, se não encontra porém imediatamente desvelado). Nestas circunstâncias, a remissão para o regime do Código Civil poderia não ser mais do que isso – uma remissão certificativa da similitude de soluções encontradas para o problema quer no seio do sistema civilístico quer no seio do sistema tributário –, ao invés de se apresentar, inelutavelmente, como uma nova norma, criada pelo intérprete com recurso à analogia, para preencher o vazio que o legislador, na incompletude da sua regulação, deixara.
Não quer isto dizer que a questão não pudesse ser, sob o ponto de vista da melhor aplicação ou interpretação do direito ordinário, controversa; o ponto é irrelevante, para efeitos do juízo que o Tribunal Constitucional tem, neste momento, que fazer. O que é relevante é que se não pode concluir, sem margem para dúvidas, que, in casu, o processo interpretativo seguido pelo tribunal a quo se terá traduzido na criação de uma “norma” por parte do juiz, com recurso aos instrumentos próprios do pensamento analógico, e, por isso, através do emprego de meios hermenêuticos que a Constituição, nos termos do nº 2 do artigo 103.º. inequivocamente proíbe.
Neste contexto argumentativo não pode logicamente colocar-se a questão da constitucionalidade orgânica enquanto questão autónoma.
9. O recorrente, finalmente, também questiona a constitucionalidade da norma sob juízo quando confrontada com os parâmetros da segurança jurídica, da proteção da confiança e do direito a um processo equitativo, na sua dimensão do direito à decisão em prezo razoável (artigo 20.º nº4 da CRP). O que há de específico nesta alegação é que, com ela, se não questiona já o processo interpretativo que culminou na norma extraída do nº 1 do artigo 49.º da LGT; o que se questiona é essa norma, em si mesma considerada. Diz-se que ler este preceito na dimensão interpretativa adotada (segundo a qual, recorde-se, a apresentação de impugnação judicial, para além de interromper o decurso do prazo de prescrição, suspende ou protela o início desse mesmo prazo para o momento em que transitar em julgado a respetiva decisão) alarga indefinidamente o prazo de prescrição, porque faz depender a sua verificação de um incerto an e de um incerto quando (a emissão de uma decisão judicial), o que será em si mesmo contrário aos fins de segurança jurídica e de proteção da confiança que fundamentam o próprio instituto da prescrição. Além do mais – diz-se – este alargamento indefinido do prazo de prescrição afigura-se contrário ao direito à obtenção de uma decisão em prazo razoável e em processo equitativo (artigo 20.º, nº 4 da CRP).
A leitura que o recorrente faz desta norma (e que, nas suas alegações, aparece inextrincavelmente ligada a considerações de regime próprias do nº 3 do artigo 49.º da LGT, na redação à altura vigente, o que, como já vimos, foi excluído do objeto do recurso) pressupõe que se reduza a emissão de uma decisão judicial, não só ao domínio dos puros factos, mas, mais do que isso, a eventos futuros que só podem ser representados por associação a um grau acentuado de contingência de verificação. Mas como não é certamente essa a leitura que, em conformidade com a Constituição, se deve fazer do preceito legal – e, como fora dela, se não compreende a alegação da inconstitucionalidade –, ainda aqui nenhuma razão haverá para que se censure a norma sob juízo, constante do nº 1 do artigo 49.º da LGT.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do nº 1 do artigo 49.º da Lei Geral Tributária, na redação anterior à da Lei nº 53-A/2006, de 29/12, quando interpretado no sentido de que a apresentação de impugnação judicial, para além de interromper o decurso do prazo de prescrição, suspende ou protela o início desse mesmo prazo para o momento em que transitar em julgado a respetiva decisão; e, consequentemente,
b) Não conceder provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida quanto ao juízo sobre a questão de constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixadas em vinte e cinco (25) unidades de conta da taxa de justiça.
Lisboa, 26 de setembro de 2012.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Ana Guerra Martins (com declaração) – Vítor Gomes (com declaração anexa) – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO
Vencida quanto ao conhecimento pelas razões invocadas, no essencial, no acórdão nº 183/2008 deste Tribunal.
Ana Maria Guerra Martins
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido quanto ao conhecimento da questão de violação do princípio da legalidade fiscal pelo essencial das razões em que se sustenta a linha jurisprudencial referenciada no n.º 6 do presente acórdão.
Continuo a entender não constituir questão de constitucionalidade normativa, suscetível de ser conhecida em recurso de fiscalização concreta pelo Tribunal Constitucional, saber se determinada norma é inconstitucional quando interpretada em sentido (desfavorável ao sujeito passivo, entende-se) que alegadamente resulte de recurso pelo tribunal da causa a métodos proibidos pelo princípio da legalidade fiscal. Efetivamente, nos termos em que a questão é colocada, não se pretende censurar uma deficiência estrutural dos enunciados normativos do preceito em causa para cumprir as exigências constitucionais do princípio da legalidade (as exigências acrescidas da determinabilidade da lei em matéria fiscal), nem a introdução no ordenamento, por um órgão exterior aos tribunais, de uma norma (sentido normativo) que não caiba nos seus poderes de normação. O tribunal a quo, não se arrogando poderes normativos, nem assumindo, explícita ou implicitamente, recorrer à analogia, afirmou que a norma comportava determinado sentido. Fê-lo enquanto órgão aplicador e não enquanto produtor de normas Para que o Tribunal Constitucional pudesse concluir pela violação do princípio da legalidade tributária teria de reconhecer que a decisão recorrida errou na determinação do sentido da lei, introduzindo-lhe um conteúdo que é fruto de um processo hermenêutico constitucionalmente proibido.
Note-se que não é objeto de apreciação uma norma (ou uma determinada interpretação dela pelos tribunais, ainda que implícita) que verse sobre os critérios de interpretação da lei fiscal (v. gr. artigo 11.º, n.º 4, da LGT) a propósito da qual se discuta se habilita os tribunais à aplicação das normas fiscais de modo que possa contrariar o princípio constitucional da legalidade, designadamente, a possibilidade de empregar certos meios hermenêuticos ou a analogia no domínio considerado. Não está em causa uma norma sobre o processo interpretativo, mas o próprio processo interpretativo como o acórdão reconhece.
É certo que a apreciação da questão submetida tem por pressuposto a resposta positiva à questão da inclusão da regulação da prescrição das dívidas fiscais no âmbito do n.º 2 do artigo 103.º da Constituição. Mas não é essa a questão controvertida, porque sobre ela todos os intervenientes – o Supremo Tribunal Administrativo, a recorrente e o Tribunal Constitucional – estão de acordo. O presente acórdão acabou por ter de apreciar se determinada interpretação conferida a certo conjunto normativo que o tribunal da causa entendeu regular a situação é errónea considerando os limites decorrentes do princípio constitucional da legalidade tributária, limites esses que a própria decisão recorrida reconhece e afirma. Neste capítulo, o que o Tribunal foi chamado a decidir e aceitou apreciar foi se o sistema de direito ordinário previa determinada causa de suspensão da prescrição e não se podia prevê-la.
Em conclusão, só conheceria da questão apreciada no n.º 9 do acórdão. Mas, ultrapassada esta questão prévia, acompanho o acórdão.- Vítor Gomes.