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Processo n.º 326/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A recorrente A., deduziu reclamação para a conferência, nos termos do n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro
(doravante designada por LTC), contra a decisão sumária do relator de não conhecimento do presente recurso.
1.1. Essa decisão sumária é do seguinte teor:
“1. Na impugnação judicial deduzida pela A., contra o despacho do Secretário de Estado da Comunicação Social, de 5 de Novembro de 1999, que lhe aplicou, pela prática das contra-ordenações previstas e punidas pelos artigos
12.º da Lei n.º 87/88, de 30 de Julho, com a redacção dada pela Lei n.º 2/97, de
18 de Janeiro, e 12.º-B e 39.º, n.º 1, alínea b), dessa mesma Lei, a coima única de 1 500 000$00, foi, por decisão de 30 de Novembro de 2001 do Tribunal Judicial da Comarca de Loulé, declarada nula a decisão da autoridade administrativa, por inobservância da exigência de descrição dos factos imputados e da fundamentação da decisão, nos termos a que aludem as alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, e determinada a repetição do acto declarado nulo (bem como dos actos posteriores dele dependentes), com integral observância do disposto nesse artigo 58.º. Tal decisão desenvolveu, para o efeito, a seguinte argumentação:
«Nos autos apresenta-se uma questão prévia, que importa desde já apreciar, nos termos acima referidos, ou seja, a de saber se a decisão da autoridade administrativa é nula, por violação do disposto no artigo 58.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27 de Outubro.
I. Dispõe o artigo 58.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27 de Outubro:
“1 – A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:
a) A identificação dos arguidos;
b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) A coima e as sanções acessórias.”
Daqui se extrai que a decisão da autoridade administrativa deverá conter a descrição dos factos imputados e a fundamentação da decisão.
No que tange à necessária descrição dos factos imputados, verifica-se que na decisão da autoridade administrativa, junta a fls. 30 e 31, em sede de matéria de facto, consta o seguinte:
“Acolho e dou inteiramente como reproduzida a descrição dos factos imputados, com a indicação das provas obtidas, constantes do relatório final, elaborado pelo instrutor do presente processo de contra-ordenação, que se junta em anexo.”
Assim, é evidente que se entenderá que ocorre a falta de descrição dos factos imputados na decisão da autoridade administrativa.
Efectivamente, a remissão para o relatório do instrutor, o auto de notícia ou outra peça processual, não tem a virtualidade de suprir o vício em questão. Resulta de forma clara do texto legal (artigo 58.°, n.° 1, alínea b)) que a decisão administrativa deverá, ela própria, conter a descrição dos factos imputados (vide Contra-ordenações, M. Simas Santos e J. Lopes de Sousa, pág.
322).
Nestes termos foi violado o disposto na alínea b) do n.° 1 do artigo 58.° do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27 de Outubro – o que constitui uma nulidade da decisão da autoridade administrativa aqui em causa.
II. Por outro lado, e embora não invocada, dir-se-á, ainda, o seguinte:
O dever de fundamentação constitui uma exigência que se impõe quer nas decisões judiciais, quer em acto administrativo. Neste caso, como decorre do artigo 124.°, n.° 1, do Código do Procedimento Administrativo.
A esse propósito, observe-se o que dispõe o artigo 125.° do supra citado Código:
“1 – A fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituirão neste caso parte integrante do respectivo acto.
2 – Equivale a falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto.
3 – Na resolução de assuntos da mesma natureza, pode utilizar-se qualquer meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde que tal não envolva diminuição das garantias dos interessados.”
Será que no caso em apreço foi violado esse dever de fundamentação?
Da decisão em causa resulta que é indicada a norma legal violada, porém, não se tecendo quaisquer outras considerações quanto ao enquadramento jurídico contra-ordenacional ou quanto à medida da coima (nem é referida a moldura da coima e sanções acessórias aplicáveis). De facto, apenas é referido, na decisão administrativa, que se dá acolhimento e se dá por “inteiramente reproduzida a fundamentação de facto e de direito constante do mesmo relatório final”.
Conclui-se assim que não existe uma suficiente e exigível fundamentação.
Note-se que, como acima já referido, não é admissível na decisão da autoridade administrativa a mera remissão para outras peças processuais.
Todavia, o dever de fundamentação não se esgota no enquadramento jurídico contra-ordenacional.
De facto, não basta fundamentar de facto e direito a decisão de aplicar uma contra-ordenação, e depois, em sede de determinação da coima, fixar o seu valor desacompanhado de qualquer motivação.
É este o caso dos autos.
Na decisão em apreço, nada se diz, de todo, quanto à determinação da medida da coima, para além da singela indicação do seu valor.
Ora, sendo certo que o dever de fundamentação sempre se estenderá à determinação da medida da coima ou das sanções acessórias aplicáveis, in casu, tal exigência de fundamentação afigura-se mais premente, atenta a moldura da coima e a sua medida concreta – 1 000 000$00 e 500 000$00.
Nesta matéria repare-se no estabelecido no artigo 18.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27 de Outubro:
“A determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação.”
Acontece que da decisão da autoridade administrativa nada resulta que permita compreender a razão da fixação da coima nos referidos valores.
Carece assim de fundamentação a decisão da autoridade administrativa.
III. Encontrando-se ferida de nulidade a decisão da autoridade administrativa, por inobservância da exigência de descrição dos factos imputados e da fundamentação da decisão, nos termos a que aludem as alíneas b) e c) do n.° 1 do artigo 58.° do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27 de Outubro, o procedimento contra-ordenacional regressará à fase administrativa e ao momento de prolação da decisão, devendo a autoridade administrativa suprir o apontado vício, proferindo nova decisão isenta do mesmo.
Salienta-se que esta decisão não importa a absolvição da arguida, ou seja, um juízo de que não se provaram os factos integradores da contra-ordenação, ou que os factos imputados à arguida não constituem uma contra-ordenação.
Repare-se que a falta de descrição dos factos imputados e de fundamentação da decisão condenatória constitui um vício da mesma, que implica a sua nulidade, mas não a extinção do procedimento contra-ordenacional.
Por conseguinte, ao caso, tem aplicação o disposto no artigo 122.° do Código de Processo Penal, impondo-se a repetição do acto nulo, bem como dos actos posteriores (vide acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25 de Fevereiro de 1998, in Colectânea de Jurisprudência, 1998, tomo I, págs. 242 e
243).»
Dessa decisão interpôs a arguida recurso para o Tribunal da Relação de Évora, suscitando na respectiva motivação, além do mais, a questão da inconstitucionalidade da interpretação, que teria sido feita no tribunal a quo, das disposições conjugadas dos artigos 18.º, n.º 1, e 58.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82 e 124.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, segundo a qual, encontrando-se ferida de nulidade a decisão da autoridade administrativa, o procedimento contra-ordenacional regressará à fase administrativa e ao momento da prolação da decisão, devendo a autoridade administrativa suprir o apontado vício, proferindo nova decisão isenta do mesmo. Segundo a recorrente, das normas conjugadas dos artigos 61.º, n.º 1, 62.º, n.º
1, e 64.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, resulta a irreversibilidade da subida do processo da esfera administrativa para a esfera judicial, pelo que, ao entender-se o contrário, ter-se-á violado a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, ínsita no artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição da República Portuguesa (CRP).
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 18 de Fevereiro de
2003, decidiu não conhecer do recurso, com base na seguinte argumentação:
«2. Antes de nos pronunciarmos sobre a questão suscitada no despacho de exame preliminar, cumpre apreciar e decidir se existe alguma circunstância que obste ao conhecimento do recurso, a saber, se o mesmo foi interposto por quem não tinha interesse em agir – artigo 417.°, n.° 3, alínea a), do Código de Processo Penal – circunstância esta que, a verificar-se, prejudica o conhecimento das restantes questões. O artigo 401.° do Código de Processo Penal, sobre os requisitos de legitimidade e interesse em agir, estabelece, no n.° 2, que “não pode recorrer quem não tiver interesse em agir”.
“A par da legitimidade, o novo Código de Processo Penal introduziu um novo requisito do recurso, ou seja, o interesse em agir, que consiste na necessidade de utilização deste meio de impugnação para defender um direito do recorrente”, sumário do acórdão da Relação de Coimbra, de 3 de Maio de 1995, in Colectânea de Jurisprudência, ano XX, tomo III, págs. 62-63, que refere: “Temos assim, e com o novo Código, ao lado dos casos de legitimidade subjectiva, valorada a priori, um novo conceito de legitimidade objectiva: o «interesse em agir», que terá de se verificar em concreto, isto é, cabe ao intérprete verificar a medida em que o acto é impugnado em sentido favorável à função que o recorrente desempenha no processo; «a utilidade prática com que se identifica o interesse em agir não é apreciada de acordo com a opinião pessoal do recorrente, mas sim em termos objectivos» (Cunha Rodrigues, Jornadas de Processo Penal, pág. 389)».
Ora, o ilícito de mera ordenação social foi instituído pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que estabelece nas alíneas do n.° 1 do artigo 73.° os casos em que é admitido recurso jurisdicional da decisão judicial.
“Para a apreciação do recurso (de sentença) a que alude o n.° 2 necessária se torna a apresentação de prévio requerimento (n.° 2 do artigo
74.°), pelo qual se fundamente a necessidade de melhoria da aplicação do direito ou a de uniformização da jurisprudência” (Regime Geral das Contra-Ordenações, de António Joaquim Fernandes).
Situação esta que não se verifica, nem foi suscitada no presente recurso.
In casu, no julgamento, aberta a respectiva audiência, o Senhor Juiz proferiu despacho declarando nula a decisão da autoridade administrativa, bem como os actos posteriores dela dependentes, devendo ser repetida aquela decisão da autoridade administrativa, com integral observância do disposto no artigo 58.° do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27 de Outubro.
“I – O artigo 73.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27 de Outubro, tem em vista somente decisões finais e só as decisões finais que conheçam do recurso interposto da decisão da autoridade administrativa. II – Por isso, do despacho do juiz proferido em recurso de impugnação interposto pelo arguido, que declarou nula a decisão da entidade administrativa determinando a devolução do processo a esta entidade, carece o arguido de legitimidade para recorrer, por falta de interesse em agir” (acórdão da Relação do Porto, de 30 de Setembro de 1998, proferido no recurso n.° 10 638, in Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, pág. 409, de Simas Santos).
Assim, no caso concreto, em que não foi proferida decisão final conhecendo do recurso de impugnação da arguida, o despacho sindicado, que declarou nula a decisão da autoridade administrativa e actos posteriores dela dependentes, determinando a sua repetição, não afecta os direitos e os interesses da recorrente.
Pelo que, a recorrente não tem interesse em agir, não podendo, portanto, recorrer da decisão sindicada, nos termos do disposto no n.° 2 do artigo 401.° do Código de Processo Penal.»
Notificada deste acórdão, veio a arguida interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), nos seguintes termos:
«1 – Tempestividade do recurso: No recurso que interpôs da decisão do Tribunal de Loulé, a recorrente alegou a inconstitucionalidade da leitura das normas legais invocadas na decisão que ordenou, “nos termos a que aludem as alíneas b) e c) do n.° 1 do artigo 58.° do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27 de Outubro, o procedimento contra-ordenacional regressará à fase administrativa e ao momento de prolação da decisão, devendo a autoridade administrativa suprir o apontado vício, proferindo nova decisão isenta do mesmo”, cuja decisão lhe foi notificada por registo expedido em 21 de Fevereiro de 2003, conforme consta dos autos. Portanto, o prazo para o presente recurso, atento o disposto no n.° 6 do artigo
70.° da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, contado nos seus limites mínimos, terminaria no dia 4 de Março do corrente ano. Como o dia 4 de Março coincide com dia feriado, o prazo termina no dia seguinte.
2 – Fundamento do recurso:
1) Conforme consta da alínea E das conclusões do recurso cuja decisão foi agora notificada à recorrente, foi invocada a inconstitucionalidade da leitura feita pelo douto despacho proferido pelo Tribunal de Loulé.
2) O Tribunal de Loulé decidiu por despacho, conforme consta do processo e do douto acórdão da Relação de Évora.
3) O despacho proferido pelo Tribunal de Loulé decidiu contra a promoção do Ministério Público naquela instância de recurso, conforme consta dos autos.
4) O despacho proferido pelo Tribunal de Loulé não ordena o
“arquivamento do processo', nem “absolve a arguida” nem “altera a condenação”, conforme consta do despacho recorrido. Mas, em cumprimento do disposto no n.° 3 do artigo 64.° do Decreto-Lei n.º 433/82, “o despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação'.
5) Do douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora nada consta acerca da inconstitucionalidade alegada, para além da transcrição da sua alegação.
6) Não tendo o Tribunal de Loulé aplicado correctamente o disposto no n.° 3 do artigo 64.° do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, ao seu despacho antes referido, deveria o Tribunal da Relação de Évora ter aceite o recurso, por lhe ter sido pedido pela arguida, uma vez que “tal se afigurava manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito”.
7) A recorrente tem interesse em agir por estar carecido de tutela judicial o seu direito de que o despacho proferido pelo Tribunal de Loulé cumpra o disposto no artigo 64.° do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, especialmente o seu n.° 3, pois só seria admissível aplicar ao julgamento do caso outra norma legal além das do Decreto-Lei n.º 433/82, de modo supletivo, e caso não existisse no referido diploma legal norma aplicável, o que não é o caso. O referido n.° 3 do artigo 64.° do Decreto-Lei n.º 433/82 especifica o
âmbito das decisões proferidas por despacho ao abrigo do mesmo artigo.
8) Portanto, a leitura feita pelo douto despacho recorrido do disposto no artigo 64.° do Decreto-Lei n.º 433/82, que atribui a competência para decidir por despacho, segundo a qual foi decidido de forma diferente daquela que se encontra expressa no n.° 3 do referido artigo 64.° consiste numa alteração ao regime jurídico da contra-ordenação e coima levada a efeito por quem não tem competência atribuída para o efeito.
Pelo exposto, vem requerer a Vossas Excelências se dignem julgar inconstitucional, por violação do princípio da competência legislativa e das decisões dos tribunais, ínsitos, respectivamente, nas normas dos artigos 165.°, n.° 1, alínea d), e 205.°, n.° 1, parte final, ambos da Constituição da República Portuguesa, a leitura feita pelo douto despacho recorrido do disposto na norma do artigo 64.° do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, segundo a qual, decidindo por despacho, “o procedimento contra-ordenacional regressará à fase administrativa e ao momento de prolação da decisão, devendo a autoridade administrativa suprir o apontado vicio, proferindo nova decisão isenta do mesmo”, a qual não se encontra prevista no n.° 3 do mencionado artigo 64.°, cuja norma define e delimita os termos e o âmbito da decisão por despacho, tipificada no referido artigo, uma vez que o despacho em causa não se encontra
“fundamentado na forma prevista na lei”, por não revestir uma das formas previstas no mencionado n.° 3 do artigo 64.° do Decreto-Lei n.º 433/82, facto que equivale a uma alteração do mencionado preceito legal, que seria aplicável ao caso nos exactos termos em que se encontra expressa pelo legislador, feito por quem não tem competência legal atribuída para o efeito.
Por isso, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado que o presente recurso cumpre todos os requisitos para que a decisão seja tomada e o despacho recorrido não aplicou correctamente o disposto no artigo 64.° do Decreto-Lei n.º 433/82 no despacho que julgou o recurso interposto pela recorrente, por consequência do que deve ser proferida a seguinte decisão jurisprudencial: “Tendo o Tribunal decidido por despacho, nos termos previstos no artigo 64.° do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, a decisão assim proferida terá de revestir uma das formas previstas no n.° 3 do mesmo artigo”.
O recurso foi admitido por despacho do Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Évora, de 11 de Março de 2003, o que, como é sabido, não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LTC).
2. Como resulta do teor do requerimento de interposição do recurso, atrás integralmente reproduzido, este tem por objecto o despacho da 1.ª instância, e não o acórdão da Relação, apesar das críticas que, sem qualquer pertinência para a questão de constitucionalidade, a recorrente lhe dirige nesse requerimento, por entender que a admissão do recurso para a Relação poderia contribuir para a melhoria da aplicação do direito.
Ora, o recurso interposto da decisão da 1.ª instância é de rejeitar por uma tripla ordem de razões: por não ter sido adequadamente suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa, por a interpretação normativa impugnada não ter constituído ratio decidendi do despacho recorrido e por ser manifestamente infundada a questão de inconstitucionalidade suscitada.
2.1. A admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – que foi o interposto pela recorrente – depende da suscitação «durante o processo» da inconstitucionalidade da(s) norma(s) aplicada(s) pela decisão recorrida e cuja conformidade constitucional o recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, esclarecendo o n.º 2 do artigo 72.º da mesma Lei que tal recurso só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer».
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua nulidade ou o pedido da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem já meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve “lapso manifesto” do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes do processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da proferida. E também, por maioria de razão, não constitui meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas respectivas alegações.
Só assim não será nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
Ora, no presente caso, a interpretação acolhida no despacho recorrido nada tem de insólito ou de inesperado, correspondendo a entendimento largamente sufragado na doutrina e na jurisprudência. Como sustenta António Leones Dantas («Considerações sobre o processo das contra-ordenações – A fase administrativa», Revista do Ministério Público, ano 16.º, n.º 61, Janeiro-Março de 1995, págs. 103 e seguintes, em especial pág. 119), a decisão condenatória administrativa é nula se não contiver a fundamentação do juízo de prova e a individualização da sanção propriamente dita, estando tais nulidades sujeitas ao regime decorrente dos artigos 118.º, 120.º, n.º 1, 121.º e 122.º do Código de Processo Penal, decorrendo deste último preceito que «as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar» (n.º 1), e que «a declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição» (n.º 2). Os sentidos possíveis da decisão por despacho, elencados no n.º 3 do citado artigo 64.º (arquivamento, absolvição e manutenção ou alteração da condenação), têm em vista os casos em que o despacho encerra decisão de fundo (neste sentido: acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12 de Março de 1997, recurso n.º 10 148), cuja prolação não dependa da realização de diligências de prova. Mas essa previsão não afasta o regime geral que possibilita o conhecimento, por despacho, de qualquer excepção dilatória, que obste ao conhecimento do mérito da causa, como ocorre com a incompetência do tribunal ou a existência de alguma nulidade processual que não possa ser de imediato sanada (neste sentido, cf. Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contra-Ordenações – Anotações e Regime Geral, 2.ª edição, Vislis, Lisboa, 2002, págs. 376 e 377). E entre a jurisprudência citada nesta
última obra, encontram-se diversas decisões no sentido, por exemplo, de que, anulado o acto aplicador de coima por incompetência da autoridade que o praticou, o respectivo processo não deve ser mandado arquivar, mas antes remetido à autoridade competente para a sua instrução e aplicação da coima
(acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19 de Março de 1996, recurso n.º
599, Colectânea de Jurisprudência, ano XXI, 1996, tomo II, pág. 139). E o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25 de Fevereiro de 1998, recurso n.º 1151/97 (Colectânea de Jurisprudência, ano XXIII, 1998, tomo I, pág. 242), considerando nula a decisão administrativa sancionadora de contra-ordenação por omissão da indicação das provas obtidas para a imputação dos factos, decidiu que, nesse caso, se impõe, nos termos do artigo 122.º do Código de Processo Penal, aplicável por força da previsão do artigo 41.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, a determinação da repetição do acto defeituoso, bem como dos actos posteriores dele dependentes.
Não podendo ser ignorado este entendimento doutrinal e jurisprudencial, a decisão ora recorrida, que se integra nessa orientação, não
é de considerar como decisão inesperada, que possibilitasse que a questão da conformidade constitucional das normas nela interpretadas e aplicadas só fosse suscitada depois da sua prolação.
Assim, não tendo a questão de constitucionalidade sido suscitada – podendo e devendo sê-lo – antes de proferida a decisão recorrida, falta o apontado requisito de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
2.2. A isto acresce que a norma efectivamente aplicada na decisão recorrida, como ratio decidendi, foi a do artigo 122.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, ex vi do artigo 41.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, que prevê que a declaração de nulidade de acto processual ordena, sempre que necessário e possível, a repetição do acto, desta feita expurgado dos vícios que o inquinavam. Ora, a recorrente não suscitou a inconstitucionalidade desta norma, que – repete-se – surge como determinante da decisão impugnada.
2.3. Finalmente, a questão de inconstitucionalidade, tal como a recorrente a coloca, isto é, como violação pelo despacho impugnado da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, ínsita no artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP, surge como manifestamente infundada.
É patente que, ao declarar a nulidade da decisão administrativa e ao determinar a sua repetição expurgada de vícios, o tribunal de 1.ª instância não invadiu qualquer competência legislativa reservada à Assembleia da República, pois não pretendeu «legislar», isto é, emitir normas gerais e abstractas vinculativas para todas as autoridades, incluindo as judiciais, e para todos os cidadãos.
3. Em face do exposto, decide-se, ao abrigo do n.º 1 do artigo
78.º-A da LCT, não conhecer do objecto do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) unidades de conta.”
1.2. A reclamação apresentada desenvolve a seguinte fundamentação:
“Consta dos fundamentos invocados como suporte da douta decisão consistente em
«não conhecer do objecto do recurso», «por uma tripla ordem de razões: por não ter sido adequadamente suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa, por a interpretação normativa impugnada não ter constituído ratio decidendi do despacho recorrido e por ser manifestamente infundada a questão de inconstitucionalidade suscitada», conforme consta expresso no final da página
12 da referida decisão. Da leitura que o autor da presente faz dos factos reais e da aplicação das normas legais vigentes aos mencionados factos, afigura-se-lhe não ser correcta a douta decisão ora reclamada, pelos motivos a seguir expostos: A – Quanto a «não ter sido adequadamente suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa»:
1) Conforme se constata do teor do requerimento de interposição do recurso para este Tribunal – aliás, transcritas para a decisão ora reclamada – encontra-se identificada a alínea E das conclusões do recurso em que se encontra suscitada a questão da inconstitucionalidade.
2) O recurso interposto ataca os erros da decisão da 1.ª instância nos exactos termos que constam do mesmo.
3) O Tribunal de recurso decide não conhecer do recurso.
4) Porém, como o recurso foi interposto pelo recorrente para que o processo de recurso possa ter sido aberto e decidido o Tribunal da Relação teve que tomar conhecimento do seu conteúdo, caso contrário não sabia da sua existência nem poderia proceder em conformidade com a sua existência.
5) Portanto, o Tribunal de Recurso, que decide não conhecer do recurso utiliza uma forma palavrosa de dizer que não conhece aquilo que, de facto, conhece, para, através do recurso a esse artifício palavroso, negar à arguida o exercício do direito de recurso que a lei lhe confere.
6) Logo, como o Tribunal da Relação de Évora conheceu, de facto, o teor do recurso interposto pela recorrente, tinha competência legal atribuída para alterar a decisão colocada em crise pela recorrente, caso assim entendesse.
7) Não a alterou porque não quis alterá-la.
8) Por isso, o Tribunal da Relação de Évora conheceu, de facto, da questão da constitucionalidade suscitada pela recorrente muito antes de ter proferido a decisão final, ainda que esta tenha consistido em decidir não tomar conhecimento do recurso – o que não significa que não tenha tomado conhecimento do teor do recurso.
9) Nestas condições, como, de facto, o Tribunal da Relação de Évora conheceu o teor da questão da inconstitucionalidade suscitada pela recorrente muito antes de ter proferido a sua decisão, a arguição da inconstitucionalidade em causa nestes autos foi feita nos termos previstos na lei aplicável, de forma a que o Tribunal de recurso, se tivesse querido, pudesse ter alterado a decisão da 1.ª instância. Só não o fez porque não foi essa a sua vontade.
10) Os factos em apreciação no processo principal não se enquadram na Jurisprudência e Doutrina invocadas para julgá-los na douta decisão reclamada, tendo em conta que os factos reais são os seguintes: 1 – O ICS instruiu um processo de contra-ordenação que concluiu pela aplicação de uma sanção ao arguido. 2 – O Senhor Secretário de Estado da Comunicação Social, funcionando como Tribunal de 1.ª Instância, julgou e aplicou uma pena ao arguido. 3 – O arguido recorreu da decisão do Senhor Secretário de Estado da CS.
4 – «Recebido o recurso e no prazo de cinco dias, deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que os tomara presentes ao juiz, valendo este acto como acusação», consta da norma do artigo 62.°, n.º
1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
11) Donde se conclui com toda a clareza que, no caso em apreço, não há qualquer possibilidade de repetição do acto cuja nulidade foi julgada pelo Tribunal de Loulé, quer porque o Senhor Secretário de Estado que proferiu a decisão já não existe porque o Governo Constitucional em funções já é outro, quer porque o acto praticado pelo Senhor Secretário de Estado consistiu num equivalente a acto jurisdicional e não um acto administrativo, conforme decorre da leitura das normas legais aplicáveis.
12) Por isso, não podia o Tribunal de Loulé julgar o caso concreto que lhe estava cometido ordenando a repetição dos actos julgados nulos pois tem obrigação de conhecer a realidade material e temporal em que a decisão é proferida; e, sendo do conhecimento público que a repetição dos actos em causa já não é possível, não deve decidir nesse sentido, pois decidiria ordenar a execução de um acto que sabe ser impossível.
13) Aliás, ao contrário do que consta expresso na douta decisão reclamada, o Supremo Tribunal de Justiça fixou a seguinte Jurisprudência em 17 de Outubro de 2002: «Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.° do Regime Geral das Contra-Ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa», conforme publicado em www.dgsi.pt sob o n.° SJ200210170004675.
14) Da referida Jurisprudência, é absolutamente explícito que: «o processo ficará doravante afectado de nulidade» «quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.° do Regime Geral das Contra-Ordenações. o órgão instrutor (...) não (...) fornecer» à arguida «todos os elementos necessários para que esta fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito», O que é o caso dos presentes autos.
15) A invocada Jurisprudência já se encontrava publicada à data em que foi proferida a decisão recorrida pelo Tribunal da Relação de Évora, cuja conformidade com a mesma constituía imperativo legal.
Pelo exposto, do ponto de vista do autor da presente, a decisão a proferir deve ter como pressuposto ter a questão da constitucionalidade sido arguida no recurso interposto perante o Tribunal da Relação de Évora que dele tomou conhecimento nessa altura e, caso tivesse querido, poderia ter proferido decisão conforme Jurisprudência emanada do Supremo Tribunal Justiça aplicável aos factos em causa.
B – Quanto à «interpretação normativa impugnada não ter constituído ratio decidendi do despacho recorrido»:
16) Com o devido respeito, e tendo em conta o que atrás se encontra expresso, a realidade material não confirma que assim seja.
17) Por força da Jurisprudência acima invocada, emanada do Supremo Tribunal de Justiça, que o Tribunal da Relação de Évora não podia desconhecer, o processo principal teria de ficar «doravante afectado de nulidade», conforme havia jurisprudenciado o Supremo Tribunal de Justiça.
18) A circunstância de o Tribunal da Relação de Évora não ter aplicado as normas legais e a Jurisprudência referida como seria imperativo legal tornam o acto nulo, pelo que não é lícita a sua invocação.
19) Por isso, tendo o Tribunal Constitucional conhecimento de que o Supremo Tribunal de Justiça proferiu Jurisprudência no sentido de que o processo julgado pelo Tribunal de Loulé «ficará doravante afectado de nulidade», cujo acatamento também sabe ter sido postergado pelo Tribunal da Relação de Évora, não pode alicerçar a sua decisão na do Tribunal da Relação de
Évora mas naquela que seria proferida no caso de a Jurisprudência invocada ter sido acatada.
20) Assim procedendo, o Tribunal Constitucional concluirá que a invocação por parte do Tribunal da Relação de Évora da falta de interesse do arguido no recurso assenta na ilegalidade do julgamento contra a invocada Jurisprudência emanada do Supremo Tribunal de Justiça, pelo que esta decisão deve ser tida por ilegal, com todas as consequências.
Pelo exposto, deve ser tida como tendo «constituído ratio decidendi do despacho recorrido» a «interpretação normativa impugnada» uma vez que assim teria sido decidido no caso de o Tribunal da Relação de Évora ter acatado a invocada Jurisprudência emanada do Supremo Tribunal de Justiça.
C – Quanto a «ser manifestamente infundada a questão de inconstitucionalidade suscitada»:
21) Conforme decorre do escrito no recurso interposto para o Tribunal Constitucional não é colocada em causa, nem se procura sindicar qual foi a pretensão do tribunal quando ordenou a devolução do processo à Autoridade Administrativa. O que foi colocado em causa no mencionado recurso foi o facto de o Tribunal carecer de competência para alterar a lei e, de facto, ter procedido de modo equivalente a uma alteração da lei em vigor, conforme se constata pelo cotejo com a correcta aplicação da lei determinada pela Jurisprudência emanada do Supremo Tribunal de Justiça acima invocada.
Por todo o exposto, vem requerer a Vossas Excelências se dignem apreciar as questões suscitadas, sobretudo tendo em conta o enquadramento da questão de fundo colocada no processo principal destes autos feita pela invocada Jurisprudência emanada do Supremo Tribunal de Justiça, decidindo em conformidade, conforme pedido no recurso.”
1.3. Notificado desta reclamação, o representante do Ministério Público respondeu, sustentando carecer a mesma “ostensivamente de fundamento sério” e aduzindo que a “longa e confusa exposição do reclamante” não abalou “minimamente os fundamentos de tal decisão, no que concerne à manifesta falta de pressupostos de admissibilidade do recurso e ao carácter ostensivamente infundado da questão de constitucionalidade intempestivamente colocada”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Apesar da pouca clareza do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, desde logo por não identificar a decisão de que se pretendia recorrer, a decisão sumária ora reclamada considerou que se visava a impugnação do despacho do Tribunal Judicial da Comarca de Loulé. Nesse sentido apontavam as sucessivas referências, no ponto 8) e na parte conclusiva daquele requerimento (reproduzidos a fls. 12 e 13 deste acórdão), a “despacho recorrido” e a constatação de que os termos em que a questão de constitucionalidade era suscitada só fazia sentido se tivesse aquele despacho por alvo.
Nesse entendimento, considerou-se que “o recurso interposto da decisão da 1.ª instância [era] de rejeitar por uma tripla ordem de razões: por não ter sido adequadamente suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa, por a interpretação normativa impugnada não ter constituído ratio decidendi do despacho recorrido e por ser manifestamente infundada a questão de inconstitucionalidade suscitada”.
Na presente reclamação, a recorrente vem referir que afinal objecto do recurso seria o acórdão do Tribunal da Relação de Évora e que, assim sendo, a arguição de inconstitucionalidade teria sido feita “durante o processo”, isto é, antes da prolação da decisão recorrida, o que conduziria à insubsistência do primeiro fundamento da decisão sumária ora impugnada.
No entanto, mesmo nesta perspectiva, o recurso continua a não ser admissível pelos dois restantes fundamentos.
Com efeito, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora não conheceu do recurso por entender que a recorrente não tinha interesse em agir e a norma que para tanto aplicou foi apenas a do artigo 401.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Ora, por um lado, a recorrente nunca suscitou a questão da inconstitucionalidade desta norma nem a referiu no requerimento de interposição do recurso como integrando o objecto deste, e, por outro lado, aquele acórdão não fez aplicação da norma que integra o objecto do recurso – a do artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 433/82 –, na interpretação arguida de inconstitucional. Não tem a mínima consistência a alegação da reclamante no sentido de que esse acórdão, apesar de dizer que não conhecia do mérito do recurso, efectivamente dele conheceu, por, podendo ter alterado o despacho recorrido, o não ter feito. Assim, mesmo considerando que objecto do recurso é o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, mantém-se a conclusão de que o mesmo não fez aplicação, como ratio decidendi, da norma impugnada no presente recurso, o que determina a não verificação deste pressuposto do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Mantém-se igualmente o último fundamento da decisão sumária reclamada: ser manifestamente infundada a questão de inconstitucionalidade suscitada. A adoptar-se a tese da recorrente, sempre que um tribunal interpreta e aplica a lei em sentido que, na opinião da parte processual afectada, não é o correcto, está a “alterar a lei” e, assim, a invadir a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, concepção que é obviamente inadmissível, confundindo pretensos erros de julgamento da matéria de direito cometidos num processo concreto com modificações do ordenamento jurídico dotadas de generalidade e abstracção e válidas erga omnes.
Duas notas finais:
A primeira para ressaltar que o facto de o Secretário de Estado que proferiu a decisão “já não exist[ir] porque o Governo Constitucional já é outro” não é impeditivo do suprimento das omissões detectadas: esse suprimento não tem de ser feito pela mesma pessoa física que subscreveu a anterior decisão, mas sim pelo actual titular do mesmo órgão ou, caso este tenha desaparecido, pelo titular do órgão que lhe sucedeu na competência.
A segunda para esclarecer que o que o invocado Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de Outubro de 2002 (publicado, como “Assento n.º 1/2003”, no Diário da República, I Série-A, n.º 21, de 25 de Janeiro de 2003) decidiu foi que dependia de arguição pelo interessado a nulidade processual consistente no não fornecimento ao arguido, para efeitos da sua audiência escrita, de todos os elementos necessários para que ele ficasse a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito. Se essa nulidade não for arguida, perante a Administração ou judicialmente (no acto de impugnação da subsequente decisão administrativa), no prazo de 10 dias após a notificação para a audiência escrita, a mesma considera-se sanada. Se for tempestivamente arguida na impugnação judicial e for julgada procedente, “o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa (artigos 121.º, n.ºs 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e
41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações” (cf. n.º 13-IV do citado acórdão). Resulta, assim, deste acórdão de uniformização de jurisprudência que a nulidade em causa se considera sanada se não for arguida pelo interessado no prazo legal e que, se for arguida em tempo e com sucesso, a decisão a proferir pelo tribunal não é a de arquivamento do processo – contrariamente ao pretendido pela reclamante –, mas a de invalidação do acto processual considerado nulo e dos subsequentes actos processuais dele dependentes, com a consequente repetição dos actos afectados, sempre que possível e necessário.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 1 de Julho de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos