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Processo n.º 684/03
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A., B., C., D., E. e F., melhor identificados nos autos, vieram reclamar, “nos termos do art. 210º, n.º 1, do C.P.C., aplicável ex vi art. 4º do C.P.P.”, da distribuição efectuada no Tribunal da Relação de Lisboa do processo relativo a incidente de recusa “que apresentaram relativamente ao Juiz de Instrução (…), com referência ao processo do 1º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal NUIPC
1718/02.9JDLSB”. Pode ler-se na fundamentação dessa reclamação:
“1º Na 1ª instância, existem regras precisas acerca dos dias da distribuição, nos termos do art. 214º do C.P.C.; mas, nos tribunais superiores, o art. 223º, n.º 1, do C.P.C. limita-se a estabelecer que a distribuição se faz na primeira sessão seguinte à apresentação, o que tem implicado a existência de regras regulamentares próprias para cada um desses tribunais superiores.
2º No caso da Relação de Lisboa, através do Provimento n.º 3/2003, de 24 de Janeiro (cfr. Doc. 2), o Senhor Presidente da Relação, no que ora está em causa, estabeleceu a seguinte regra: Nas férias judiciais os processos crime de natureza urgente serão também distribuídos às segundas-feiras ou no primeiro dia
útil seguinte, se aquelas o não forem. Exceptuam-se os processos em que há prazos de 48 horas para apresentação ao Juiz e que correm no Tribunal da Relação
(extradições, internamentos compulsivos), que serão distribuídos logo que derem entrada neste Tribunal.
3º Tanto quanto é do conhecimento dos Requerentes, essa regra tem sido praticada durante as presentes férias judiciais, mas ontem, dia 3 de Setembro, quarta-feira, foi realizada uma distribuição que abrangeu o incidente em causa, o qual obviamente não cabe no âmbito da excepção acima referida.
4º Assim sendo, a distribuição que ocorreu ontem contrariou as regras procedimentais em vigor aquando da apresentação do incidente em causa no Tribunal da Relação.
5º Ressalvado o devido respeito, tal procedimento é inaceitável e viola, de forma ostensiva, o princípio do juiz legal ou juiz natural, que decorre do art.
32º, n.º 9, da CRP e do próprio estatuto de uma magistratura independente e inamovível.
6º A propósito, veja-se Gomes Canotilho e Vital Moreira: O princípio do juiz legal consiste essencialmente na predeterminação do tribunal competente para o julgamento (...). Juiz legal é não apenas o juiz da sentença em 1ª instância, mas todos os juízes chamados a participar numa decisão (princípio dos juízes legais) (...). A doutrina costuma salientar que o princípio do juiz legal comporta várias dimensões fundamentais: a) exigência de determinabilidade, o que implica que o juiz (ou juízes) chamados a proferir decisões num caso concreto estejam previamente individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível inequívoca; (...) c) observância das determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para afixação [sic; no original lê-se: “a fixação”] de um plano de distribuição de processos (embora esta distribuição seja uma actividade materialmente administrativa, ela conexiona-se com o princípio da administração judicial (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3a ed., pág. 207; no mesmo sentido, cfr. ainda Figueiredo Dias, RLJ, 111º, 83 e ss.).
7º Os Requerentes têm o direito a que o seu incidente seja julgado pelo juiz que o tiver de ser de acordo com as regras previamente fixadas à data da sua apresentação no Tribunal da Relação de Lisboa.
8º Não o fazem por preferir este ou aquele juiz, mas apenas porque querem garantir que o princípio do juiz natural – essencial para a transparência do exercício da justiça – seja respeitado; de resto, foi o próprio STJ a recentemente declarar que: ‘no âmbito da jurisdição penal, o legislador, escrupuloso no respeito pelos direitos dos arguidos, consagrou como princípio sagrado e inalienável o do juiz natural’ (cfr . Acórdão de 5/4/2000, SASTJ n.º
40, 44).
9º No caso presente, em que o juiz que resulte da distribuição, estando de férias, será substituído por um juiz de turno, a situação ainda é mais grave, porque, estando a escala dos juízes de turno previamente fixada, a escolha do dia da distribuição implica o conhecimento do juiz ou juízes que estão de turno, o que deve exigir que ainda seja mais rigoroso quanto à necessidade de respeitar os critérios pré-definidos para a distribuição.
10º Não pode, pois, haver qualquer dúvida quanto ao facto de a distribuição em apreço violar as regras procedimentais em vigor à data da apresentação do incidente no Tribunal da Relação, ofendendo o princípio constitucional do juiz natural, o que gera uma nulidade, ou, ao menos, uma irregularidade processual, só hoje conhecida, que ora vai arguida.
11º Por cautela, vai igualmente arguida a inconstitucionalidade do entendimento dado ao art. 223º, nºs 1 e 2, do C.P.C., quando aplicável, por força do art. 4º do C.P.P., ao processo penal, ou de quaisquer outras regras que venham a ser invocadas, no sentido de que o Presidente da Relação pode alterar regras de distribuição previamente fixadas, depois da apresentação na Relação de peça processual que a ela deva ser submetida, por violação ostensiva do princípio constitucional do juiz legal ou juiz natural; por cautela, para a hipótese de já estar proferida decisão final, vai igualmente arguida a inconstitucionalidade do entendimento dado à parte final do art. 210º, n.º 1, do C.P.C., aplicável por força do art. 4º do C.P.C., no sentido de que tal nulidade não pode ser arguida se já tiver sido proferida decisão final, quando entre a prática da nulidade e a decisão final correr prazo inferior ao mínimo de dez dias previsto no art. 105º, n.º 1, do C.P.P. (ou quando muito ao prazo de três dias previsto no art. 123º, n.º 1, do C.P.P.), por violação dos princípios do acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva e do juiz legal ou juiz natural, como tal consagrados nos arts. 20º, n.ºs 1 e 4, e 32º, n.º 9, da CRP.” Por despacho datado de 8 de Setembro de 2003, o Ex.mº Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa veio desatender esta reclamação, dizendo:
“O princípio do juiz natural satisfaz-se com a distribuição aleatória (ou sorteio) entre juízes. E quanto ao provimento n.º 3/2003 – que é um documento interno que nem tem de ser conhecido pelas partes – traduz uma mera orientação interna que pode ser revogada a todo o tempo. Não houve, pois, qualquer nulidade da distribuição”.
2.Inconformados, os reclamantes interpuseram recurso deste despacho para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos dos artigos 399º e 432º, alínea a) do Código de Processo Penal, e, por cautela, também para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70º, n.ºs 1, alínea b), e 4, in fine, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional. Neste requerimento, os recorrentes concluíram:
“A) Os Recorrentes, tendo – a 4 de Setembro – tomado conhecimento pela comunicação social de que teria sido realizada – a 3 de Setembro – uma distribuição extraordinária relativamente ao incidente de recusa de juiz que apresentaram relativamente ao Juiz de Instrução (…), com referência ao processo do 1º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal NUIPC 1718/02.9JDLSB, apresentaram, nos termos do art. 210º, n.º 1, do C.P.C., aplicável ex vi do art.
4° do C.P.P., uma reclamação dessa distribuição, o que fizeram por telecópia de
4 de Setembro, a que se seguiu a entrega da respectiva cópia de segurança a 8 de Setembro. B) Os autos de incidente de recusa deram entrada no Tribunal da Relação já depois da distribuição efectuada, para os processos crime, na segunda-feira, dia
1 de Setembro, tendo sido objecto de uma distribuição extraordinária, que ocorreu a 3 de Setembro. C) Os turnos de juízes escalados para as férias judiciais, no Tribunal da Relação, estavam previamente fixados, sendo certo que os juízes escalados para o período situado entre 3 e 5 de Setembro não eram os mesmos que aqueles que se encontravam escalados para o período iniciado na segunda-feira seguinte, ou seja, 8 de Setembro. D) Nos tribunais superiores, o art. 223º, n.º 1, do C.P.C. limita-se a estabelecer que a distribuição se faz na primeira sessão seguinte à apresentação, o que tem implicado a existência de regras regulamentares próprias para cada um desses tribunais superiores, nos termos consentidos pelo n.º 2 desse mesmo art. 223º, que estipula que essa distribuição é feita conforme
‘determinação do presidente’. E) No caso da Relação de Lisboa, através do Provimento n.º 3/2003, de 24 de Janeiro, o Senhor Presidente da Relação, no que ora está em causa, estabeleceu a seguinte regra: Nas férias judiciais os processos crime de natureza urgente serão também distribuídos às segundas-feiras ou no primeiro dia útil seguinte, se aquelas o não forem. Exceptuam-se os processos em que há prazos de 48 horas para apresentação ao Juiz e que correm no Tribunal da Relação (extradições, internamentos compulsivos), que serão distribuídos logo que derem entrada neste Tribunal. F) Tanto quanto é do conhecimento dos Requerentes, essa regra foi sempre praticada durante as últimas férias judiciais, até que no dia 3 de Setembro, quarta-feira, foi realizada uma distribuição que abrangeu o incidente em causa, o qual obviamente não cabe no âmbito da excepção acima referida. G) E foi tal regra aplicada em relação aos processos urgentes dos recursos interpostos pelos arguidos dos despachos que lhes aplicaram a medida de coacção da prisão preventiva. H) Assim sendo, a distribuição que ocorreu no dia 3 de Setembro contrariou as regras procedimentais em vigor aquando da apresentação do incidente em causa no Tribunal da Relação, ofendendo o princípio constitucional do juiz natural, o que gera uma nulidade insanável, nos termos do art. 119º-a), parte final, do C.P.P., ou, pelo menos, uma irregularidade só conhecida pelos ora Recorrentes no próprio dia em que apresentaram a reclamação de 4 de Setembro, onde suscitaram tal questão. I) No despacho ora recorrido, o Senhor Presidente da Relação indeferiu a reclamação com fundamento em que o princípio do juiz natural se satisfaz com uma distribuição aleatória (ou sorteio) entre juízes, considerando ainda que o Provimento n° 3/2003 poderia ser revogado a todo o tempo, sendo um documento interno que nem tem de ser conhecido pelas partes. J) Ora, no caso dos autos, é patente que os juízes que acabaram por decidir o incidente não resultaram de qualquer distribuição aleatória, mas sim de uma decisão que alterou regras que estavam pré-fixadas aquando da apresentação da peça processual nesse Venerando Tribunal. K) E, mesmo que se quisesse qualificar tal acto como aleatório, que o não é, certo é que o resultado dele obtido nunca poderia coincidir com aquele que é querido e imposto pela Lei. L) O Provimento n.º 3/2003 é um documento interno, mas a que qualquer interessado pode e deve ter acesso em homenagem ao sobredito princípio do juiz natural ou juiz legal. M) As regras constantes desse provimento podem ser alteradas ou revogadas de acordo com um critério de objectividade, que respeite o princípio do juiz natural, mas tal alteração ou revogação não pode aplicar-se às peças processuais já apresentadas no tribunal, por respeito a tal princípio do juiz natural, ao contrário do que aconteceu no caso dos autos. N) Assim sendo, o despacho recorrido interpreta erroneamente o art. 223º, nºs 1 e 2, do C.P.C., julgando que o Presidente do Tribunal não deve observar as determinações de procedimento previamente fixadas quanto à distribuição de processos, ofendendo ainda ostensivamente o princípio do juiz legal ou juiz natural, que decorre do art. 32º, n.º 9, da CRP e do estatuto de uma magistratura independente, imparcial e inamovível; o despacho recorrido interpreta ainda erroneamente os arts. 119º-a), parte final, e 123º do C.P.P., uma vez que não considerou a nulidade insanável que ocorreu ou, pelo menos, a respectiva irregularidade. O) Por cautela, vai igualmente arguida a inconstitucionalidade do entendimento dado ao art. 223º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C., quando aplicável, por força do art. 4º do C.P.P., ao processo penal, por si só ou conjugadamente com os arts. 119º-a), parte final, e 123º, n.º 1, do C.P.P., no sentido de que o Presidente da Relação pode alterar regras de distribuição previamente fixadas, depois da apresentação na Relação de peça processual que a ela deva ser submetida, por violação ostensiva do princípio constitucional do juiz legal ou juiz natural. P) E assim, na interpretação concreta que delas fez a Relação, encontram-se aquelas normas feridas do vício de inconstitucionalidade material, por violação do princípio constitucional do juiz natural e do preceito constitucional em que ele se encontra consagrado (art. 32º, n.º 9, da CRP)». Em 26 de Setembro de 2003, o Ex.mº Desembargador-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, proferiu o seguinte despacho:
“(...) Salvo melhor opinião, entendo que não cabe recurso ordinário do despacho que indefere a reclamação da distribuição. O art. 399º do Código de Processo Penal (CPP), dado o contexto em que se encontra, tem apenas em vista as decisões judiciais. E o despacho proferido sobre a reclamação da distribuição, respeitando directamente ao funcionamento dos serviços do tribunal, concretamente ao acto da distribuição, tem natureza administrativa e não judicial. Por outro lado, sendo o CPP omisso no que se refere à distribuição dos processos, pela norma do art. 210º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi do art. 4º do CPP, chega-se à mesma conclusão. Com efeito, de harmonia com aquele art. 210º, n.º 1, a irregularidade da distribuição, que pode ser objecto de reclamação, não produz nulidade de nenhum acto do processo. Daqui, da circunstância de a irregularidade da distribuição não produzir nulidade de qualquer acto do processo, extrai-se a irrecorribilidade da decisão sobre a reclamação da distribuição. Deste modo, não é admissível o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça. No entanto, por ser legal (nos termos do art. 70º, n.º 2 e n.º4, in fine, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o n.º 2 com referência à alínea b) do n.º 1 do mesmo art. 70°, expressamente invocada pelos recorrentes), e por estar em tempo, admito o recurso para o Tribunal Constitucional, como também vem requerido, recurso este que tem efeito suspensivo e sobe nos próprios autos”.
3.Por despacho do relator no Tribunal Constitucional, foram solicitados ao Tribunal da Relação de Lisboa elementos com relevo para o presente recurso, a saber:
“- cópia do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa distribuído na quarta-feira, 3 de Setembro de 2003 (referido no requerimento do recurso de constitucionalidade ), com certificação da respectiva data de entrada naquele Tribunal;
- despacho(s) (ou certificação da respectiva ordem verbal) relativo(s) à distribuição desse recurso;
- eventuais regulamentos internos relativos à distribuição (incluindo em período de férias) no Tribunal da Relação de Lisboa;
- relação dos turnos para as férias judiciais de 2003 no Tribunal da Relação de Lisboa.” A certificação remetida ao Tribunal Constitucional, conjuntamente com os referidos elementos, e assinada pelo Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, é do seguinte teor:
“1. No dia 2 de Setembro de 2003, terça-feira, pelas 17 horas, deu entrada neste Tribunal da Relação de Lisboa um processo de recusa do Sr. Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa (…), no âmbito das suas funções no processo relacionado com o crime de pedofilia na G., levantada pela defesa de 6 arguidos.
2. Tratando-se de um processo urgente, com vários arguidos presos, e considerando que o que nele estava em causa era a imparcialidade do juiz, que apesar dessa situação de suspeição continuaria a praticar actos urgentes num processo com a natureza de urgente (artigo 43º, n.º 5, do Código de Processo Penal), foi por nós verbalmente determinado, depois de previamente termos dado conhecimento desta situação ao Sr. Presidente deste Tribunal da Relação, que o processo de recusa fosse distribuído no dia seguinte ao da sua entrada neste Tribunal, em conformidade com o disposto no artigo 223º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
3. Refira-se que, em conformidade com o disposto legal, os processos urgentes são distribuídos no próprio dia em que chegavam ou, não o podendo ser nesse dia, são-no no dia seguinte. E foi sempre este o entendimento deste Tribunal da Relação até Janeiro de 2003.
4. Apenas por questões de ordem meramente administrativa, designadamente relacionadas com sobrecarga do trabalho da Secção Central, foi determinado, por Provimento interno de 24 de Janeiro de 2003, que os processos crime de natureza urgente fossem distribuídos conjuntamente com os demais processos, às segundas-feiras.
5. Mas mesmo neste Provimento interno salvaguardou-se a situação de alguns processos que, pela sua urgência, deveriam ser distribuídos imediatamente, considerando-se, a título exemplificativo, as extradições e os internamentos compulsivos. Embora no Provimento não se fale em processo de recusa, considerámos na altura que, tratando-se de um processo que corre no Tribunal da Relação e tendo em conta a gravidade do que nele era alegado (parcialidade de um juiz que tem a seu cargo um processo urgente que não pode ficar nem fica suspenso à espera da decisão sobre a recusa) estávamos perante uma situação que não podia esperar parada 6 (seis) dias a aguardar distribuição quando a própria lei – que se sobrepõe a qualquer Provimento – determina que o processo seja imediatamente distribuído. A suspeita de parcialidade de um juiz, que continua a praticar actos no processo, exigia uma urgente e imediata apreciação, justificando-se para o efeito também uma imediata distribuição do processo, em conformidade com o estabelecido na lei (artigo 223º, n.º 1, do Código de Processo Civil) tendo por estas razões sido determinado verbalmente a distribuição do referido processo no dia imediato à sua entrada neste Tribunal. E só não foi determinada a sua distribuição no próprio dia em que deu entrada porque, à hora a que este Tribunal chegou, já a secretaria judicial se encontrava encerrada.”
4.Determinada a produção de alegações no prazo de 10 dias, nos termos do artigo
79º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, os recorrentes vieram concluir da seguinte forma:
“A) Os Recorrentes, tendo – a 4 de Setembro – tomado conhecimento pela comunicação social de que teria sido realizada – a 3 de Setembro – uma distribuição extraordinária relativamente ao incidente de recusa de juiz que apresentaram relativamente ao Juiz de Instrução (…), com referência ao processo do 1º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal NUIPC 1718/02.9JDLSB, apresentaram, nos termos do art. 210º, n.º 1, do C.P.C., aplicável ex vi do art.
4º do C.P.P., uma reclamação dessa distribuição, o que fizeram por telecópia de
4 de Setembro, a que se seguiu a entrega da respectiva cópia de segurança a 8 de Setembro. B) Os autos de incidente de recusa deram entrada no Tribunal da Relação já depois da distribuição efectuada, para os processos crime, na segunda-feira, dia
1 de Setembro, tendo sido objecto de uma distribuição extraordinária, que ocorreu a 3 de Setembro. C) Os turnos de juízes escalados para as férias judiciais, no Tribunal da Relação, estavam previamente fixados, sendo certo que os juízes escalados para o período situado entre 3 e 5 de Setembro não eram os mesmos que aqueles que se encontravam escalados para o período iniciado na segunda-feira seguinte, ou seja, 8 de Setembro. D) Nos tribunais superiores, o art. 223º, n.º 1, do C.P.C. limita-se a estabelecer que a distribuição se faz na primeira sessão seguinte à apresentação, o que tem implicado a existência de regras regulamentares próprias para cada um desses tribunais superiores, nos termos consentidos pelo n.º 2 desse mesmo art. 223º, que estipula que essa distribuição é feita conforme
‘determinação do presidente’. E) No caso da Relação de Lisboa, através do Provimento n.º 3/2003, de 24 de Janeiro, em vigor à data da apresentação do pedido de recusa nesse Tribunal, o Senhor Presidente da Relação, no que ora está em causa, estabelecera as seguintes regras: Nas férias judiciais os processos crime de natureza urgente serão também distribuídos às segunda-feiras ou no primeiro dia útil seguinte, se aquelas o não forem. Exceptuam-se os processos em que há prazos de 48 horas para apresentação ao Juiz e que correm no Tribunal da Relação (extradições, internamentos compulsivos), que serão distribuídos logo que derem entrada neste Tribunal. F) Tanto quanto é do conhecimento dos Recorrentes, essas regras foram praticadas durante as últimas férias judiciais, até que no dia 3 de Setembro, quarta-feira, foi realizada uma distribuição que abrangeu o incidente em causa, o qual obviamente não cabe no âmbito da excepção acima referida. G) Assim sendo, a distribuição que ocorreu no dia 3 de Setembro contrariou as regras procedimentais em vigor aquando da apresentação do incidente em causa no Tribunal da Relação, ofendendo o principio constitucional do juiz natural. H) No despacho ora recorrido, o Senhor Presidente da Relação indeferiu a reclamação com fundamento, por um lado, em que o princípio do juiz natural se satisfaz com uma distribuição aleatória (ou sorteio) entre juízes e, por outro lado, na circunstância de o Provimento n.º 3/2003 poder ser revogado a todo o tempo, sendo um documento interno que nem tem de ser conhecido pelas partes. I) No caso dos autos, é patente que, independentemente da distribuição ocorrida, os juízes que, em concreto, acabaram por decidir o incidente não resultaram de qualquer processo aleatório, mas sim de uma decisão que alterou regras que estavam pré-fixadas aquando da apresentação da peça processual nesse Venerando Tribunal. I) O Provimento n.º 3/2003 é um documento interno, mas a que qualquer interessado pode e deve ter acesso em homenagem ao sobredito princípio do juiz natural ou juiz legal. K) As regras constantes desse provimento podem ser alteradas ou revogadas de acordo com um critério de objectividade, que respeite o princípio do juiz natural, mas tal alteração ou revogação não pode aplicar-se às peças processuais já apresentadas no tribunal, por respeito a tal princípio do juiz natural, ao contrário do que aconteceu no caso dos autos. L) As partes processuais, muito particularmente os arguidos no âmbito do processo penal, têm direito a que a distribuição dos processos que lhes dizem respeito seja efectuada de acordo com as regras existentes à data da sua apresentação no Tribunal respectivo, de forma a organizarem as suas acções processuais em função dessas regras, a fiscalizar o próprio acto de distribuição e a assegurar a transparência e o carácter aleatório da escolha dos juízes que lhes cabem. M) Do teor da decisão de 8 de Setembro do Presidente do Tribunal da Relação, devidamente conjugada com o teor da matéria fáctica em causa, decorre que o despacho recorrido interpreta o art. 223º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C. (conjugadamente considerados), quando aplicável, por força do art. 4º do C.P.P., ao processo penal, no sentido de que o Presidente do Tribunal Superior – depois da apresentação nesse tribunal de peças processuais que a ele devam ser submetidas
–, no âmbito da sua competência para determinar a forma como é feita a distribuição de processos, não está obrigado a observar as regras de procedimento previamente fixadas em momento anterior a tal apresentação, mesmo que isso represente, como acontece no caso dos autos, a possibilidade de o processo ser imediatamente decidido por juízes já conhecidos numa escala pré-estabelecida a quem o processo não seria atribuído se tivessem sido respeitadas as determinações de procedimento entretanto alteradas. N) E esse entendimento normativo ofende o princípio constitucional do juiz legal ou juiz natural, bem como o preceito constitucional que o consagra no âmbito do processo penal (art. 32º, n.º 9, do CRP). O) E assim, na interpretação concreta que do art. 223º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C., quando aplicável ao processo penal, por força do disposto do art. 4º do C.P.P., dela fez o Presidente da Relação, encontram-se tais normas feridas do vício de inconstitucionalidade material, por violação do princípio constitucional do juiz natural e do preceito constitucional em que ele, no âmbito do processo criminal, se encontra consagrado (art. 32º, n.º 9, da CRP).” Por sua vez, o representante do Ministério Público, nas suas contra-alegações, concluiu do seguinte modo:
«1º A decisão recorrida não interpretou a norma constante do artigo 223º, n.º 1, do Código de Processo Civil (subsidiariamente aplicável no âmbito do processo penal) em termos de ao presidente da Relação ser lícito modificar as regras legais ou materiais da distribuição previamente fixadas – conexionadas, elas sim, com o princípio do “juiz material”, por relevantes para a divisão ou repartição funcional interna, mediante sorteio, dos recursos naquele Tribunal.
2º Na verdade, limitando-se a lei de processo a estatuir que a distribuição nos tribunais superiores é feita na “primeira sessão seguinte” ao recebimento ou apresentação do processo – e dependendo obviamente a marcação ou fixação dos dias de sessão da livre discricionariedade do tribunal – não ofende aquele princípio constitucional a circunstância de o presidente da Relação, em homenagem às particulares exigências de celeridade na apreciação de certo recurso, ter afastado a regra (constante de mero provimento administrativo interno) de que a distribuição de recursos se faria normalmente em determinado dia da semana.
3º Aquele provimento – bem como a decisão que o interpretou à luz da especificidade do processo “sub juditio” – têm natureza estritamente administrativa e “interna” – e não judicial –, respeitando apenas ao funcionamento dos serviços judiciários, e não criando para as partes ou sujeitos processuais um “direito” à distribuição em dias determinados.» Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
5.Importa começar por compulsar os preceitos legais relativos à distribuição, entre 0s quais se encontram aqueles a que se reporta a dimensão normativa impugnada. O Código de Processo Penal não contém regras próprias relativas à distribuição dos processos que disciplina (a apresentação para distribuição é apenas referida no artigo 439º, n.º 2, para o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência). Em conformidade com a regra geral do artigo 4º, e tratando-se de uma matéria cuja disciplina é evidentemente indispensável para a tramitação processual, devem, pois, observar-se as normas do processo civil: artigos 209º segs. do Código de Processo Civil, com disposições gerais, nos artigos 209º, 209º-A e
210º (respectivamente sobre o fim da distribuição – “repartir com igualdade o serviço do tribunal”, designando “a secção e a vara ou juízo em que o processo há-de correr ou o juiz que há-de exercer as funções de relator” –, a utilização da informática e a falta ou irregularidade da distribuição), “Disposições relativas à 1ª instância” (artigo 211º e segs.), e “Disposições relativas ao tribunais superiores” (artigos 223º e segs.). Estas últimas são as que relevam no presente caso, importando considerar, designadamente, o que dispõe o artigo 223º, relativo a “Quando e como se faz a distribuição nas Relações e no Supremo”:
“1 – Nas Relações e no Supremo os papéis são distribuídos na primeira sessão seguinte ao recebimento ou apresentação.
2 – A distribuição é feita, com intervenção do presidente e do secretário, na presença dos juízes e dos funcionários da secretaria, conforme determinação do presidente.
3 – O presidente designa, por turno, em cada mês, o juiz que há-de intervir na distribuição. O secretário classifica e numera os papéis que houver a distribuir e, se tiver dúvidas sobre a classificação de algum, são estas logo resolvidas verbalmente pelo juiz de turno.
4 – Quando tiver havido erro na distribuição, o processo é distribuído novamente, aproveitando-se, porém, os vistos que já tiver. Mas se o erro derivar da classificação do processo, é este carregado ao mesmo relator na espécie devida, descarregando-se daquela em que estava indevidamente.” Depois de nos artigos 224º e 225º se definirem as espécies de processos nas Relações e no Supremo (incluindo uma espécie para os recursos em processo penal), o artigo 226º disciplina como se faz a distribuição, prevendo, nos n.ºs
2 e 3, um sorteio entre os juízes, segundo a sua ordem de precedência. Deste sorteio resulta imediatamente o relator do recurso, mas também, indirectamente, a determinação da formação judiciária que o há-de apreciar – que, no presente caso, por a decisão recorrida não constituir decisão final, é a conferência, nos termos do artigo 419º, n.º 4, alínea c), do Código de Processo Penal, intervindo nesta “o presidente da secção, o relator e dois juízes-adjuntos” (n.º 1 do artigo citado). O relator é o juiz a quem o processo for distribuído (artigo
700º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 4º do Código de Processo Penal), intervindo na conferência, “pela sua ordem, os juízes seguintes ao relator” (citado artigo 700º, n.º 2, aplicável por força do referido artigo 4º; cf. ainda, no mesmo sentido, os artigos 31º e 37º, n.º 2, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, aplicáveis às Relações por força, respectivamente, dos artigos 54º e 57º, n.º 1, da mesma Lei). A determinação da formação judiciária que aprecia o recurso resulta, assim, da distribuição do processo a um relator, mediante o referido sorteio regulado no artigo 226º do Código de Processo Civil: a escolha do relator tem lugar por sorteio (artigos 209º e 700º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e os adjuntos são determinados por estarem a seguir ao relator na ordem de precedência (artigo
700º, n.º 2, do referido Código). Quanto ao momento em que deve ser realizada a distribuição, prevê o citado artigo 223º do Código de Processo Civil, no seu n.º 1, que “os papéis são distribuídos na primeira sessão seguinte ao recebimento ou apresentação”. Trata-se de disposição que remonta já ao Código de Processo Civil de 1939 (no qual se previa ainda, porém, pena de suspensão até três meses para o caso de o preceito do n.º 1 não ser observado). Quanto à data dessa “primeira sessão seguinte”, ela resulta, ou da tabela das sessões, se se tratar de uma sessão ordinária, ou, sendo uma sessão extraordinária – como nas férias judiciais –, de convocatória adrede, competindo ao Presidente do Tribunal da Relação (ou ao Vice-Presidente, em sua substituição) homologar aquelas tabelas e realizar tal convocatória, nos termos do artigo 43º, n.º 1, alínea b), da citada LOFTJ, aplicável por força do artigo 59º, n.º 1, da mesma Lei (o artigo 60º, n.º 1, deste diploma, prevê a actuação do Vice-Presidente em substituição do Presidente da Relação). Por último, importa ainda considerar que a distribuição do processo em causa foi realizada em férias judiciais – tendo o requerimento de recusa dado entrada no Tribunal da Relação na terça-feira, dia 2 de Setembro de 2003, pelas 17 horas
(conforme certificação a fls. 113 dos autos). Para o serviço urgente durante as férias judiciais – e segundo os referidos artigos 103º, n.º 2, alínea a), e
104º, n.º 2, do Código de Processo Penal, os actos processuais relativos a arguidos detidos ou presos praticam-se em férias – são organizados turnos, nos termos do artigo 32º, n.º 1, da LOFTJ, aplicável aos tribunais da Relação por força do artigo 53º, n.º 1, turnos, esses, organizados pelos respectivos presidentes, “com prévia audição dos magistrados e, sempre que possível, com a antecedência de 60 dias”. No caso presente, o mapa dos turnos no Tribunal da Relação de Lisboa para as férias judiciais de Verão foi publicado com o “Provimento n.º 14”, de 17 de Junho de 2003, verificando-se que em Setembro existiram quatro turnos, preenchidos com diferentes Desembargadores nas diversas Secções, incluindo a Secção Criminal: o primeiro turno em 1 e 2 de Setembro; o segundo em 3, 4 e 5 de Setembro; o terceiro em 8 e 9 de Setembro, e o último em 10, 11 e 12 de Setembro. E, considerando que os três primeiros destes turnos não integravam Magistrados da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa suficientes para constituir uma conferência (além do Presidente, recorde-se, o relator e dois adjuntos), importa ainda recordar que, nos termos do artigo 37º, n.º 2, da LOFTJ
(aplicável aos tribunais da Relação por força do artigo 57º do mesmo diploma),
“[q]uando numa secção não seja possível obter o número de juízes exigido para o exame do processo e decisão da causa, são chamados a intervir os juízes de outra secção da mesma especialidade, começando-se pelos imediatos ao juiz que tiver aposto o último visto; não sendo possível chamar a intervir juízes da mesma especialidade, são chamados os da secção social, se a falta ocorrer na secção cível ou na secção criminal, e os da secção cível, se a falta ocorrer na secção social.” A conferência à qual competia julgar o incidente de recusa em questão seria, assim, constituída, além do Presidente do Tribunal, pelo relator e por dois juízes adjuntos, que estivessem de turno nos termos do mapa referido, sendo que um destes seria chamado de outra secção, que não a criminal.
6.O presente recurso vem interposto do despacho do Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa que desatendeu a reclamação dos recorrentes contra a distribuição, efectuada nesse Tribunal, de um processo relativo a incidente de recusa de juiz de 1ª instância do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa. Segundo os recorrentes, nesse despacho adoptou-se o entendimento do artigo 223º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (aplicável ao caso por força do artigo 4º do Código de Processo Penal) no sentido de que o Presidente da Relação “pode alterar regras de distribuição previamente fixadas, depois da apresentação na Relação de peça processual que a ela deva ser submetida” – ou, noutra formulação, que se encontra na conclusão M) das alegações dos recorrentes, de que “o Presidente do Tribunal Superior – depois da apresentação nesse tribunal de peças processuais que a ele devam ser submetidas –, no âmbito da sua competência para determinar a forma como é feita a distribuição de processos, não está obrigado a observar as regras de procedimento previamente fixadas em momento anterior a tal apresentação, mesmo que isso represente, como acontece no caso dos autos, a possibilidade de o processo ser imediatamente decidido por juízes já conhecidos numa escala pré-estabelecida a quem o processo não seria atribuído se tivessem sido respeitadas as determinações de procedimento entretanto alteradas.” É este entendimento que os recorrentes reputam inconstitucional, por “violação do princípio constitucional do juiz natural e do preceito constitucional em que ele se encontra consagrado” (indicando o artigo
32º, n.º 9, da Constituição). As “regras de distribuição” a que se referem os recorrentes são as que constam do Provimento n.º 3/2003, de 24 de Janeiro, em cujo ponto II pode ler-se:
“Com objectivos de celeridade processual, tem sido prática neste Tribunal da Relação proceder à distribuição diária de processos-crime de natureza urgente. Tal prática, que é, tanto quanto se sabe, original nos tribunais superiores, e que se verifica há, pelo menos, 10 anos, sobrecarrega a Secção Central e é fonte de permanente pressão e desgaste dos Juízes Desembargadores, Magistrados do Ministério Público afectos às Secções Criminais e dos respectivos oficiais de justiça, sem que, com isso, seja mais rápido o andamento dos processos. Deste modo, a convicção generalizada, tanto dos magistrados, como dos funcionários judiciais, é a da inutilidade da distribuição nos moldes apontados. Consequentemente, determino que a partir do próximo dia 27 de Janeiro a distribuição dos processos-crime de natureza urgente seja feita em conjunto com a distribuição ordinária que tem lugar às segundas-feiras ou no primeiro dia
útil seguinte, se aquelas o não forem. Nas férias judiciais os processos-crime de natureza urgente serão também distribuídos às segundas-feiras ou no primeiro dia útil seguinte, se aquelas o não forem. Exceptuam-se os processos em que há prazos de 48 horas para apresentação ao Juiz e que correm no Tribunal da Relação (extradições, internamentos compulsivos), que serão distribuídos logo que derem entrada neste Tribunal.” Ora, perante o teor deste provimento, poderá talvez duvidar-se de que a distribuição imediata, logo que deu entrada no Tribunal da Relação (e não apenas na segunda-feira seguinte), do processo em questão – de recusa de intervenção de um juiz num processo de natureza urgente, por estarem em causa actos processuais relativos a arguidos presos (artigos 103º, n.º 2, alínea a), e 104º, n.º 2, do mesmo Código), incidente de recusa, esse, que é requerido e corre no Tribunal da Relação (artigo 45º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal) – contrariasse o
“Provimento n.º 3/2003”, por não caber nas excepções nele previstas. Na verdade, esta regulamentação interna previa a distribuição apenas à segunda-feira dos “processos-crime de natureza urgente”, mas logo abria excepções, para alguns processos que, pela sua natureza urgente, deveriam ser distribuídos imediatamente, como ocorreu no presente caso: os “processos em que há prazos de 48 horas para apresentação ao Juiz e que correm no Tribunal da Relação (extradições, internamentos compulsivos)”. No presente caso estava-se perante um processo que corre no Tribunal da Relação, fundando-se, por outro lado, o próprio requerimento de recusa, em parte, na actuação do Magistrado visado com vista à realização, durante o inquérito, de uma diligência destinada a permitir a conservação da prova (as declarações para memória futura, previstas no artigo 271º do Código de Processo Penal, qualificadas, no artigo 320º do mesmo Código, como sendo “actos urgentes ou cuja demora possa acarretar perigo para a aquisição ou a conservação da prova, ou para a descoberta da verdade”), e sendo certo que os próprios requerentes sustentavam – bem ou mal –, no requerimento de recusa, que este impediria a intervenção do Juiz recusando na realização dessa diligência. Perante estas circunstâncias, poderia duvidar-se, considerando a própria ratio do citado “Provimento” e das excepções nele previstas, se o processo em causa não se enquadraria nestas últimas, devendo, antes, ficar seis dias parado, para aguardar distribuição. Seja, porém, como for quanto a este último ponto – e, portanto, tendo-se a decisão de distribuição imediata do processo baseado, ou não, nas excepções previstas no citado “Provimento” –, é certo que a decisão recorrida, que é o despacho do Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de Setembro de
2003, que indeferiu a reclamação contra a distribuição, se não baseou num tal entendimento. Na verdade, pode ler-se nessa decisão, que “o princípio do juiz natural se satisfaz com uma distribuição aleatória (ou sorteio) entre juízes” – que teria ocorrido –, considerando-se ainda “que o Provimento n.º 3/2003 poderia ser revogado a todo o tempo, sendo um documento interno que nem tem de ser conhecido pelas partes”. Pode, pois, aceitar-se que a decisão reclamada não pôs em causa o enquadramento do processo em questão na generalidade dos “processos-crime de natureza urgente”, para os quais o referido “Provimento” previa, também durante as férias judiciais, a distribuição “às segundas-feiras ou no primeiro dia útil seguinte, se aquelas o não forem”. Antes se baseou, como ratio decidendi, na existência de um sorteio entre juízes e na possibilidade de revogação “a todo o tempo” desse
“Provimento”, por ser um mero “documento interno que nem tem de ser conhecido pelas partes”. Considerando, por outro lado, que, na reclamação da distribuição, os reclamantes logo suscitaram a questão da inconstitucionalidade da dimensão normativa que impugnam, concluir-se, pois, pela verificação dos requisitos indispensáveis para se tomar conhecimento do presente recurso, tendo como objecto a assinalada dimensão normativa – ou, mais precisamente, por ter sido esta a dimensão aplicada no caso dos autos, tendo por objecto a apreciação da constitucionalidade da interpretação dos artigos 223º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do artigo 4º do Código de Processo Penal, no sentido de que a regra relativa à data da distribuição em férias judiciais pode ser revogada, permitindo a imediata distribuição de incidente de recusa de juiz de instrução criminal, mesmo depois da apresentação da peça processual a ser distribuída, e aplicando-se logo tal alteração a esta peça. Os recorrentes sustentam que esta dimensão normativa viola o “princípio do juiz natural” (artigo 32º, n.º 9, da Constituição): sendo admissível essa alteração ou revogação, ela “não pode aplicar-se às peças processuais já apresentadas no tribunal, por respeito a tal princípio do juiz natural, ao contrário do que aconteceu no caso dos autos”.
7.Dispõe o artigo 32º, n.º 9, da Constituição da República:
“Artigo 32º
(Garantias de processo criminal)
(…)
9. Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.
(…)” Consagra este norma, oriunda logo de 1976, a regra que era referida entre nós como “proibição de desaforamento” de causa criminal, de “tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”, integrando o princípio do “juiz natural” ou do “juiz legal” (também por vezes referido como juiz
“pré-determinado” ou “pré-constituído” por lei), que é ainda uma projecção do princípio da legalidade, sobre a determinação do julgador em matéria penal. Sobre essa norma escreveu-se no Acórdão n.º 393/89 (publicado no Diário da República [DR], II série, n.º 212, de 14 de Setembro de 1989):
“Neste n.º 7 [actual n.º 9] do artigo 32º da Constituição consagra-se o princípio do juiz natural ou do juiz legal (cf. Figueiredo Dias, «Sobre o sentido do princípio jurídico-constitucional do ‘juiz natural’, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 111º, pp. 83 e segs.). Este princípio, que, na doutrina nacional, já correu sob o apelativo «proibição de desaforamento das causas penais», é, ao nível processual, uma emanação do princípio da legalidade em matéria penal. Trata-se de um princípio que, para dizer com Figueiredo Dias (loc. cit.):
«[…] constitui […] uma necessária garantia dos direitos das pessoas, ligada à ordenação da administração da justiça penal, à exigência de julgamentos independentes e imparciais e à confiança da comunidade naquela administração.
É um princípio que […] esgota o seu conteúdo de sentido material na proibição da criação ad hoc, ou da determinação arbitrária ou discricionária ex post facto, de um juízo competente para a apreciação de uma certa causa penal. Do que se trata sobretudo é de impedir que motivações de ordem política ou análoga – aquilo, em suma, que compreensivelmente se pode designar por raison d’État – conduzam a um tratamento jurisdicional discriminatório e, por isso mesmo, incompatível com o princípio do Estado de direito.» Sobre o princípio em causa, v. também J. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal [Coimbra, 1974], pp. 322 e segs., e J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 1º vol., Coimbra, 1984, pp.
218-219. O princípio do juiz natural tem, assim, a ver com a independência dos tribunais perante o poder político. O que ele proíbe é a criação (ou a determinação) de uma competência «ad hoc» (de excepção) de um certo tribunal para uma certa causa. O princípio proíbe, em suma, os tribunais ad hoc. Dizendo com Figueiredo Dias (revista citada):
«O princípio do juiz legal não obsta a que uma causa penal venha a ser apreciada por tribunal diferente do que para ela era competente ao tempo da prática do facto que constitui o objecto do processo, só obsta a tal quando, mas também sempre que, a atribuição de competência seja feita através da criação de um juízo ad hoc (isto é: de excepção), ou da definição individual (e portanto arbitrária) da competência, ou do desaforamento concreto (e portanto discricionário) de uma certa causa penal, ou por qualquer outra forma discriminatória que lese ou ponha em perigo o direito dos cidadãos a uma justiça penal independente e imparcial.»” Por sua vez, no Acórdão n.º 212/91 (in DR, II série, n.º 211, de 13 de Setembro de 1991), retomado noutro arestos posteriores (assim, por exemplo, no acórdão n.º 125/94, inédito), escreveu-se:
“Nos termos do artigo 32º, n.º 7, do texto constitucional ‘nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior’ o que consubstancia o chamado princípio do juiz natural ou do juiz legal (cf. sobre esta matéria, Figueiredo Dias ‘Sobre o sentido do princípio jurídico-constitucional do ‘juiz natural’’, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 111º, pp. 83 e segs.). Ao nível processual representa este princípio uma emanação do princípio da legalidade em matéria penal, tendo a ver com a independência dos tribunais perante o poder político e proibindo ‘a criação (ou a determinação) de uma competência ad hoc (de excepção) de um certo tribunal para uma certa causa – em suma, os tribunais ad hoc)’ ”. Encontrou, por isso, este princípio consagração já nas Constituições oitocentistas, e, mesmo antes, já na lei da nova organização judiciária saída da Revolução Francesa (indicações a este respeito encontram-se em J. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, cit., págs. 323 e segs.). Entre nós, logo a Constituição de 1822, para além de proibir os “privilégios do foro nas causas cíveis ou crimes” (artigo 9º), atribuía exclusivamente aos juízes o poder judicial (artigo 176º: “Nem as Cortes, nem o Rei o poderão exercitar em caso algum. Não podem portanto avocar causas pendentes; mandar abrir as findas; nem dispensar nas formas do processo prescritas pela lei.”). E o princípio do juiz legal resultava também, quer da Carta Constitucional, quer da Constituição de 1838 (artigo 145º, § 10º, da primeira – “Ninguém será sentenciado senão pela Autoridade competente, por virtude de Lei anterior, e na forma por ela prescrita” – e artigos 18º e 19º da segunda: “Ninguém será julgado senão pela autoridade competente, nem punido senão por lei anterior”, e “Nenhuma autoridade pode avocar as causas pendentes, sustá-las, ou fazer reviver os processos findos”). Actualmente, esse princípio encontra-se igualmente consagrado noutras Constituições europeias – como, por exemplo, na Lei Fundamental da Alemanha, no artigo 101º, n.º 1 (“São proibidos os tribunais de excepção. Ninguém pode ser subtraído ao seu juiz legal”), na Constituição italiana (artigo 25º: “Ninguém pode ser privado do juiz natural pré-constituído por lei”) ou na Constituição espanhola (artigo 24º, n.º 2: “Todos têm direito ao juiz ordinário pré-determinado por lei”) –, podendo ainda ser aproximado da exigência, constante de vários instrumentos internacionais, de que a causa penal será examinada por um “tribunal independente e imparcial” (artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e artigo 6º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) – cf. também, quer o artigo 14º, n.º 1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (“…tribunal independente e imparcial, estabelecido por lei”), quer, mais explicitamente, a “Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia”, publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, n.º C-364 de 18 de Dezembro de 2000, págs. 1-22, o artigo
47º, 2º par. (“Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei”). E, entre nós, a LOFTJ dispõe com um alcance geral, no seu artigo 23º (com a epígrafe “Proibição de desaforamento”), que “Nenhuma causa pode ser deslocada do tribunal competente para outro, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.”
8. Também a jurisprudência constitucional se tem já por várias vezes defrontado com a invocação do princípio do “juiz natural”, confrontando com este diversas normas. O problema a este respeito mais frequentemente posto a este Tribunal foi, sem dúvida, o da admissibilidade, por confronto com aquele princípio, do método de determinação concreta da competência previsto no artigo 16º, n.º 3, do Código de Processo Penal, tendo-se nele firmado jurisprudência no sentido de que esta norma não viola o princípio do juiz natural (e não dizendo, aliás, as declarações de voto exaradas a propósito desta norma do Código de Processo Penal respeito ao confronto com o parâmetro que ora nos ocupa). Esta foi a posição adoptada nos citados Acórdãos n.ºs 393/89 e 212/91, bem como em muitos arestos posteriores, como, por exemplo, nos Acórdãos n.ºs 435/89, in DR, II série, de 21 de Setembro de 1989, 41/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 15º, pág. 151, 9/91, in DR, II série, de 18 de Junho de 91, 265/95, in DR, II série, de 19 de Julho de 1995, além de muitos outros não publicados (assim, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 145/90, 147/90, 164/90, 165/90, 166/90. 167/90,
168/90, 178/90, 183/90, 195/90, 197/90, 206/90, 208/90, 217/90, 218/90, 219/90,
220/90, 226/90, 252/90, 269/90, 276/90, 282/90, 291/90, 293/90, 296/90, 297/90,
301/90, 319/90, 320/90, 326/90, 327/90, 328/90, 335/90, 5/91, 11/91, 24/91,
28/91, 31/91, 35/91, 41/91, 43/91, 45/91, 46/91, 47/91, 50/91, 78/91, 79/91,
169/91, 170/91, 171/91, 214/91, 281/91, 300/91, 301/91, 302/91, 303/91, 304/91,
305/91, 306/91, 307/91, 308/91, 309/91, 310/91, 311/91, 312/91, 313/91, 314/91,
385/91, 436/91, 455/91 e 456/91). Decidiu-se nestes arestos que o princípio do juiz natural, ao proibir a criação de tribunais ad hoc, não se opõe ao método da determinação concreta da competência do tribunal, que atende a pena que, num juízo prévio de prognose, se espera que venha a ser aplicada ao crime, não abrindo também tal preceito a porta a uma arbitrária manipulação da competência para julgar. Assim, por exemplo, no citado Acórdão n.º 125/94 pode ler-se
(depois da passagem supra transcrita):
“(…) Sendo este o sentido e o alcance do princípio do juiz natural, é manifesto que não é ele violado pela norma sob sindicância, porquanto nela não se determina o tribunal competente de forma arbitrária, discricionária ou discriminatória. Lançando mão de critérios objectivos como são os critérios legais de determinação concreta da pena, o legislador limita-se a permitir a utilização do chamado método de determinação concreta da competência para a identificação do tribunal competente para o julgamento. Este método – da determinação concreta da competência –, oposto ao método da determinação abstracta da competência, não tem sido o tradicional entre nós, sendo no entanto corrente em países onde igualmente se acha consagrado o princípio do juiz natural (cf. Figueiredo Dias, Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal, cit.).” Mais recentemente, no Acórdão n.º 193/97 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36º vol., págs. 395 e segs.), o Tribunal Constitucional confrontou com o princípio do juiz natural certa interpretação normativa relativa ao conceito de “intervenção na conferência” do Presidente da Secção, dizendo a este propósito:
“O que aqui está em causa são, tão-só, duas interpretações possíveis do conceito de ‘intervenção na conferência’ do Presidente da Secção. Não parece é que se possa elevar uma dessas interpretações à categoria de ‘composição e modo de funcionamento previamente estabelecido do tribunal’, para daí partir, face a uma interpretação diversa, para a afirmação de que se está a ‘mexer’ na composição do Tribunal e, consequentemente, a violar o princípio do juiz natural, subjacente ao artigo 32º, n.º 7, da Constituição.
2.1.1. Apontam-se como dimensões concretizadoras deste princípio, a ‘exigência de determinabilidade’ (prévia individualização por lei geral do juiz competente), o ‘princípio da fixação da competência’ (observância das competências decisórias legalmente atribuídas a esse juiz) e o respeito ‘das determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna’ (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra 1994, p. 207). Associam-se, assim, à vulneração do princípio do juiz natural, intervenções a posteriori sobre as regras de competência e divisão funcional que, de alguma forma, ponham em causa os critérios pré-fixados na lei, ou seja, a ‘prévia fixação por lei de critérios objectivos gerais de repartição da competência’
(…). Ora, ao adoptar-se, em detrimento de outra, determinada visão interpretativa do conceito de ‘intervenção na conferência’ do Presidente da Secção (que, aliás, corresponde a uma prática já anteriormente seguida pela Relação de Coimbra, como se pode observar na ‘Colectânea de Jurisprudência’) em nada se está a alterar a composição do tribunal competente para o julgamento: este sempre foi o Tribunal da Relação correspondente ao Distrito Judicial que abrange a 1ª Instância de julgamento, através de um relator e dois adjuntos, apurados por distribuição, funcionando em conferência onde interveio (em determinada leitura interpretativa) o Presidente da Secção. Não se verifica, assim, qualquer ofensa ao princípio constitucional do juiz natural.” No Acórdão n.º 337/2003 (não publicado), analisou-se uma alegada violação do princípio do juiz natural, consagrado no artigo 32°, n.º 9, da Constituição da República, pela norma do artigo 28º, n.º 1, do Código Penal, interpretada em termos de possibilitar a sujeição ao foro militar do comparticipante que não possui a qualidade típica exigida pelos crimes previstos no Código de Justiça Militar, concluindo-se pela inexistência de inconstitucionalidade, e dizendo-se que “constitui evidente petição de princípio o partir de uma das interpretações possíveis do preceito para, face a uma interpretação diversa, afirmar que se está a alterar a competência dos Tribunais e, consequentemente, a violar o princípio do juiz natural, subjacente ao artigo 32º, n.º 9, da Constituição.” E outras normas foram igualmente confrontadas com o princípio que nos ocupa, nos Acórdãos n.ºs 409/94 (artigo 192º do Código das Custas Judiciais) e 216/99
(interpretação dos artigos 310º, n.º 1, e 308º, n.º 3, do Código de Processo Penal no sentido da irrecorribilidade das decisões sobre questões prévias ou incidentais constantes do despacho de pronúncia), publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, respectivamente no 28º vol., págs. 283 e segs., e no vol. 43º, págs. 239 e segs., tendo-se igualmente concluído pela inexistência de violação desse parâmetro constitucional (deixando em aberto as “complexas questões de concordância prática entre o disposto nos nºs. 3 e 7 do art. 32º da Constituição”, a propósito da consagração, “como causa de suspeição, da inimizade grave entre o juiz e o arguido”, sob pena de cf. o Acórdão n.º 227/97, ainda inédito).
9. Também jurisdições constitucionais estrangeiras se têm confrontado repetidamente com a densificação e aplicação do princípio do “juiz legal”.
É o caso, designadamente, do Tribunal Constitucional Federal alemão (v., por exemplo, Gabriele Britz, Das Grundrecht auf den gesetzlichen Richter in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts, in Juristische Arbeitsblätter,
2001, págs. 573 e segs., e, menos recente, Karl August Bettermann, Das gesetzliche Richter in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts, in Archiv des öffentlichen Rechts, 1969, págs. 263 e segs.). Assim, este Tribunal reconheceu que a garantia do juiz legal, consagrada no artigo 101º, n.º 1, 2ª frase, da Lei Fundamental, com um âmbito que ultrapassa a matéria penal, pode também ser violada por medidas ou decisões judiciais que, com o efeito de alterar a competência legal, ultrapassem o mero error in procedendo, sendo arbitrárias, e aplicou esta orientação também, por exemplo, à violação do dever de suscitar uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias – assim, as decisões de 26 de Fevereiro de 1954, de 13 de Outubro de
1970, de 31 de Maio de 1990 e de 3 de Novembro de 1992 (respectivamente in Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, vol. 3, págs. 359 e segs., esp.
364 e seg., vol. 29, págs. 198 e segs., esp. 207, vol. 82, págs. 159 e segs., esp. 194, e vol. 87, págs. 282 e segs., esp. 286). Considerou-se, a este propósito, que a ameaça de privação do juiz determinado por lei resultava, hoje em dia, menos do poder executivo – como na origem histórica do princípio – do que da aplicação errada de disposições processuais, por parte do poder judiciário, devendo, nesta medida, intervir um controlo de arbitrariedade por parte do Tribunal Constitucional Federal. Também a intervenção de um juiz impedido no processo, ainda que apenas para a marcação da data da audiência, foi considerada violadora do princípio do juiz legal, considerando-se que este princípio vale igualmente para essa marcação, pois ela poderia alterar a composição da formação judiciária interveniente
(decisão de 20 de Março de 1956, in Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, vol. 4, págs. 412 e segs.), considerando-se que, se originariamente esse princípio visava evitar sobretudo a intervenção exterior, designadamente do executivo (com a sua “justiça de gabinete”) na administração da justiça, actualmente a sua função protectora se dirigia também contra a influência de qualquer outra pessoa, dentro ou fora da organização judiciária, sobre o juiz predeterminado por lei (sobre a necessidade de previsão de regras e procedimentos de impedimento e recusa, v. as decisões de 8 de Fevereiro de 1967 e de 26 de Janeiro de 1971, in Entscheidungen…, respectivamente vol. 21, págs.
139 e segs., e vol. 30, págs. 149 e segs.). Por sua vez, na decisão de 16 de Abril de 1969 (Entscheidungen…, cit., vol. 25, págs. 336 e segs.), decidiu-se que o princípio do juiz legal valia igualmente para o juiz na fase de inquérito (o “Untersuchungsrichter”). Particularmente relevantes afiguram-se as decisões relativas à forma de determinação em concreto, dentro de cada Tribunal, das formações judiciárias que intervêm na decisão. Assim, a participação na decisão de um juiz em substituição do Presidente, em caso de impedimento deste e de insuficiência no caso concreto dos membros do Tribunal não foi considerada violadora do princípio (decisão de 9 de Junho de
1961, in Entscheidungen…, cit., vol. 31, págs. 145 e segs.). Já, porém, na decisão de 24 de Março de 1964 (colectânea cit., vol. 17, págs.
294 e segs., esp. 299 e segs.) se decidira que o “juiz legal” no sentido constitucional não é apenas o tribunal como unidade organizatória, ou o tribunal enquanto órgão decisor, mas também o próprio juiz chamado a tomar a decisão num caso concreto, devendo as regras de determinação do juiz legal determinar previamente, tão precisamente quanto possível, que formação judiciária e que juízes, dela integrantes, serão chamados a decidir – tendo o Tribunal anulado, por esta razão, um plano de distribuição interna de trabalho que permitia uma excessiva variação dos juízes concretamente integrantes do Tribunal, e, no limite, uma manipulação arbitrária da sua composição (v. também sobre a composição do Tribunal em caso de existência de juízes excedentários – de
Überbesetzung –, a decisão de 18 de Maio de 1965, in Entscheidungen…, vol. 19, págs. 52 e segs.). Mais recentemente, a forma de determinação dos juízes intervenientes numa decisão num tribunal superior veio a ser objecto de decisão pelo pleno do Tribunal Constitucional Federal alemão (pondo termo a uma divergência a este respeito entre as secções integrantes do Tribunal). Assim, a decisão de 8 de Abril de 1997 (in Entscheidungen…, vol. 95, págs. 322 e segs. – e v. igualmente a decisão de 28 de Outubro de 1997, in Entscheidungen…, cit., vol. 97, págs. 1 e segs.) veio precisar as exigências do princípio do juiz legal quanto ao plano interno de distribuição de processos, para casos em que os juízes que integram o tribunal superior em causa (no caso, tratava-se do Tribunal Federal das Finanças) sejam em número superior aos que hão-de integrar a formação judiciária decisora. Segundo o Tribunal Constitucional Federal, decorre do princípio constitucional um dever de determinação prévia, segundo critérios abstractos, dos juízes que intervirão em cada processo, devendo poder deduzir-se dessa determinação prévia a composição da formação judiciária competente. Pode ler-se nessa decisão, com interesse para as exigências do princípio do juiz natural sobre o sistema de distribuição de processos:
“1. Com a garantia do juiz legal pretende o artigo 101º, n.º 1, frase 2, da Lei Fundamental evitar que a justiça seja exposta a influências estranhas através da manipulação dos órgãos jurisdicionais. Deve evitar-se que através de uma escolha no caso individual do juiz que vai decidir possa vir a ser influenciado o resultado da decisão, independentemente da questão de saber de que lado provém tal manipulação (…). Procura-se assim garantir a independência da administração da justiça e a confiança dos sujeitos processuais e da comunidade na imparcialidade e nos critérios substanciais dos tribunais (…). Esta confiança seria lesada se o cidadão que procura a justiça tivesse que recear ver-se confrontado com um juiz que havia sido escolhido em consideração do seu caso e da sua pessoa.
(...) O comando do artigo 101º, n.º 1, frase 2, da Lei Fundamental, no sentido de se determinar tão precisamente quanto possível o juiz chamado a intervir no caso concreto, tem como consequência que, sempre que tal seja possível sem prejuízo para a eficácia da actividade jurisdicional e de acordo com o tipo de regulamentação adoptado, se deve efectuar essa determinação segundo critérios que excluam valorações subjectivas. Isto significa, por exemplo, que, nos casos em que a decisão de uma lide pode ser transferida de um órgão colegial a um juiz singular e em que este é o respectivo relator, se deve regular no plano de intervenção dos juízes pertencentes ao órgão colegial quais serão, respectivamente, relatores para os processos que vão entrando. O mesmo vale se numa formação judiciária de um tribunal com juízes excedentários a composição do grupo que vai decidir se fizer a partir da pessoa do relator. Na medida em que a composição não dependa da determinação do relator, esta
última não contende com o juiz legal. O presidente de um órgão judiciário não está, por isso, impedido de designar, a partir dos seus membros – mesmo que ad hoc –, um determinado juiz como relator. Constitui, porém, pressuposto para tal que a competência do grupo de juízes integrantes da formação judiciária tenha sido determinada, nesse caso, em geral e previamente, segundo outras características objectivas, como, por exemplo, o n.º do processo, a data de entrada, o ramo do direito ou a origem do processo. Este pressuposto não pode considerar-se preenchido se num plano de intervenção dos juízes inicialmente apenas se previr que juízes haverão de intervir em que dias de sessão, e apenas a calendarização de cada processo conduzir à sua atribuição a uma concreta formação judiciária. Neste caso, o presidente mantém uma margem de decisão sobre a chamada de cada juiz a intervir em cada processo que não é necessária para o desempenho efectivo das funções da jurisdição, em face de outros sistemas de distribuição disponíveis, e à qual, por isso, se opõe a garantia do juiz legal.” A jurisprudência alemã tem, porém, admitido a utilização de conceitos indeterminados, ou carecidos de interpretação, na determinação do juiz competente (v., assim, as referidas decisões de 24 de Março de 1964 e 8 de Abril de 1997). Mais recentemente (em decisão de 27 de Setembro de 2002), num caso em que estava em questão uma alteração das regras sobre competência das secções para processos penais contra advogados e notários, aplicável também a processos pendentes, o Tribunal Constitucional Federal alemão veio considerar que tal regime não era inconstitucional. Assim, salientou que
“também as regras sobre distribuição de trabalho, complementares das disposições legais, que se contêm nos planos anuais de distribuição elaborados pelos tribunais, que determinam a competência de cada formação judiciária e atribuem os juízes necessários a cada uma (…) têm de respeitar as características gerais dos preceitos legais. Têm, pois, por um lado de ser escritas, e, por outro lado, de regular previamente, de forma geral e abstracta, a competência de cada formação judiciária, de tal forma que cada processo seja atribuído ao juiz que vai decidir ‘cegamente’, com base em características previamente fixadas, e que, assim, a suspeita de uma manipulação do poder judiciário seja excluída (…). Mas não deixou de notar em seguida:
“5. A imposição (...) de determinação prévia do juiz legal tão clara e precisamente quanto possível não exclui novos regimes, que alterem o direito anterior relativo ao juiz legal. (…). A actividade dos tribunais e dos corpos que os integram é frequentemente confrontada com realidades e acontecimentos concretamente imprevisíveis, tais como excesso de processos, insuficiente número de processos saídos, mudança ou impedimento de magistrados. Nas regras sobre a determinação do juiz legal pode dar tanto conta destas circunstâncias [citando decisões relativas à utilização de conceitos indeterminados] como das exigência relativas à eficácia da actividade dos órgãos jurisdicionais (…). O artigo 101º, n.º 1, frase 2, da Lei Fundamental não se opõe, pois, a uma alteração da competência, mesmo para processos já pendentes, se o novo regime valer em geral, e, portanto, abranger, além de processos pendentes, um número indeterminado de processos futuros do mesmo tipo, e se não ocorrer por razões materialmente injustificadas [“sachwidrige Gründen”] (…).” Também em Itália a jurisdição constitucional se tem ocupado repetidamente com o princípio do “juiz natural”, já desde a década de 60, e igualmente num âmbito mais vasto do que o criminal, a que se reporta, entre nós, o artigo 32º, n.º 9, da Constituição (sobre a jurisprudência da Corte Costituzionale, v. Franco Cordero, Procedura Penale, 8ª ed., Milano, 1985, págs. 254 e segs., em perspectiva crítica devido a alegada sobrevalorização da exigência de
“pré-constituição pela lei”, e menor relevância do qualificativo “natural”; e cf. também já, entre nós, J. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, cit., págs. 326-7). Assim, a possibilidade de reenvio do processo para outro juiz de sede diversa, por “graves motivos de ordem pública ou por legítima suspeição” não foi considerada violadora desse princípio (assim, a decisão n.º 144/63, de 5 de Novembro de 1963). Com uma formulação que se encontra igualmente noutras decisões posteriores (por exemplo, na decisão n.º 161/92, de 19 de Março de 1992), e que é considerada jurisprudência constante da Corte Costituzionale, afirmou-se na sentenza n.º
56/67, de 27 de Abril de 1967, que se verifica “violação do princípio do juiz natural, sancionada pelo artigo 25º, primeiro parágrafo, da Constituição, quando o juiz seja designado a posteriori relativamente a um determinado litígio, ou directamente pelo legislador por excepção singular às regras gerais, ou ainda por actos de outros sujeitos aos quais a lei atribua tal poder, para além dos limites impostos pela reserva de lei.” Precisou-se, porém, que tal princípio é respeitado se a lei, mesmo que com efeito sobre os processos pendentes, modifica em geral os pressupostos ou critérios de determinação do juiz competente. Sobre a alteração de critérios versaram, igualmente, por exemplo, as “sentenças” n.ºs 301/86, de 19 de Dezembro de 1986 (num caso de alteração dos limites da competência civil do juiz conciliador, o princípio do juiz natural não é violado, afirmando-se que “a garantia da pré-constituição, em relação às controvérsias, do juiz chamado a dizer a justiça nada tem que ver com a repartição da competência para conhecer de litígios entre vários juízes, desde que estejam pré-constituídos”) e 268/87, de 3 de Julho de 1987, segundo a qual a
“pré-constituição” do juiz natural não implica uma cristalização dos critérios para a competência, mas apenas que a eventual alteração destes não seja deixada
à mera discricionariedade. Na sentenza n.º 146/69, de27 de Novembro de 1969, por sua vez, excluiu-se, por violação do princípio do juiz natural, que pudesse ser o juiz a criar discricionariamente hipóteses de alteração da competência, e que a definição dos pressupostos legais para esta possa depender de juízos não susceptíveis de serem sindicados por iniciativa das partes. Por sua vez, na sentenza n.º 117/668, de 21 de Novembro de 1968, considerou-se que “o princípio da não derrogabilidade do juiz natural recebe aplicação igualmente na fase instrutória do processo penal” (já na sentenza n.º 97/75, de
23 de Abril de 1975, se excluiu que tal princípio pudesse abranger as competências do Ministério Público). Ao longo de várias décadas de elaboração jurisprudencial sobre o princípio em causa, encontra-se, frequentemente a fórmula segundo a qual “a noção de juiz natural não se cristaliza na determinação legislativa de uma competência geral, mas compõe-se também por todas aquelas disposições que derrogam tal competência, com base em critérios que valoram racionalmente os diversos interesses postos em jogo pelo processo” (assim, a “sentença” n.º 139/71, de 16 de Junho de 1971, bem como muitas outras). A disciplina de impedimentos ou de situações de carência pessoal nos órgãos judiciários foi, assim, confrontada com o princípio do “juiz natural”. Segundo a “sentença” n.º 137/70, de 26 de Novembro de 1970, este princípio não exclui que, no interesse da continuidade e prontidão da função jurisdicional, se faça frente a tais situações de carência mediante medidas temporárias e contingentes de substituição, “certamente não pré-ordenadas a constituir o órgão judicante em vista de determinados processos ou litígios”. E na “sentença” n.º 71/75 admitiu-se também que a “proibição de constituição do juiz a posteriori, com relação a processos já pendentes” não pode estender-se também a hipóteses em que, fixada a competência do órgão judiciário definido previamente pela lei, se torne necessária a substituição de um juiz (sobre a compatibilidade da previsão de um sistema de substituição de juízes, v. também a sentenza n.º 52/77, de 24 de Março de 1977). E também, por exemplo, na jurisprudência constitucional espanhola se encontram decisões relativas ao “direito ao juiz ordinário pré-determinado pela lei” (v., por exemplo, Francisco Fernandez Segado, El sistema constitucional español, Madrid, 1992, págs. 278-280). Afirma-se, assim, que essa “pré-determinação do juiz, por virtude da qual a sua existência tem de ser anterior ao início do processo em questão, opõe-se à figura do juiz ad hoc, estabelecido ex post facto”. E salienta-se que “a pré-determinação do juiz significa que a lei, com generalidade e com anterioridade ao caso, tem de conter os critérios de determinação competencial cuja aplicação a cada hipótese litigiosa permita determinar qual é o Tribunal chamado a conhecer do caso”, podendo tal “direito ao juiz pré-determinado ficar prejudicado se um processo for subtraído indevida e injustificadamente àquele ao qual a lei o atribui para seu conhecimento, manipulando o texto das regras de distribuição de competências com manifesta arbitrariedade” (cfr., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 43/1987, de 8 de Abril,
101/1984, de 8 de Novembro, 199/1987, de 16 de Dezembro, 262/1994, de 3 de Outubro, 64/1997, de 7 de Abril, 35/2000, de 14 de Fevereiro, e 87/2000, de 27 de Março).
10. Também a doutrina tem entre nós densificado o sentido do princípio do “juiz natural”. Assim, ainda antes da Constituição de 1976 – e deplorando, aliás, a falta de consagração expressa do princípio no texto constitucional anterior – Jorge de Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, cit., págs. 322 e seg.) salientava que pelo princípio do “juiz natural” ou do “juiz legal” “se procura sancionar, de forma expressa, o direito fundamental dos cidadãos a que uma causa seja julgada por um tribunal previsto como competente por lei anterior, e não ad hoc criado ou tido como competente”, com um tríplice significado: no plano da fonte, só a lei pode instituir o juiz e fixar-lhe a competência; no plano temporal, afirmando um princípio de irretroactividade; no plano da previsão legal, a vinculação a uma “ordem taxativa de competência, que exclua qualquer alternativa a decidir arbitrária ou mesmo discricionariamente”, e, designadamente, com proibição de jurisdições de excepção. Voltando ao tema posteriormente à Constituição de 1976 (Sobre o sentido do princípio jurídico-constitucional do “juiz natural”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 111º, págs. 83 e segs.), Figueiredo Dias salientou que o sentido material do princípio é a
“proibição da criação ad hoc, ou da determinação arbitrária ou discricionária ex post facto, de um juízo competente para a apreciação de uma certa causa penal. Se bem seja certo que, deste modo, cabe no princípio uma qualquer ideia de anterioridade na fixação da competência relativamente ao facto que vai ser apreciado, não se trata nele tanto (diferentemente do que sucede com o princípio do «nullum crimen, nulla poena sine lege») de erigir uma proibição geral e absoluta de «retroactividade», quanto sobretudo de impedir que motivações de ordem política ou análoga – aquilo, em suma, que compreensivelmente se pode designar pela raison d’État – conduzam a um tratamento jurisdicional discriminatório e, por isso mesmo, incompatível com o princípio do Estado-de-direito.” Assim, pese embora o teor literal do preceito – que, como resulta do elemento histórico, afirma ir mais longe do que a sua razão de ser –, defende que ele não pretende proscrever “toda e qualquer atribuição de competência feita por lei que não seja anterior à prática do facto que constitui objecto do processo” – mas apenas “quando, mas também sempre que, a atribuição de competência seja feita através da criação de um juízo ad hoc (isto é: de excepção), ou da definição individual (e portanto arbitrária) da competência, ou do desaforamento concreto
(e portanto discricionário) de uma certa causa penal, ou por qualquer forma discriminatória que lese ou ponha em perigo o direito dos cidadãos a uma justiça penal independente e imparcial”. O princípio do juiz natural não poderia, assim, opor-se à modificação legal, com efeitos imediatos, da organização judiciária (o que seria patente, designadamente, quando tal modificação representasse um aperfeiçoamento ou avanço na forma de garantir os direitos dos cidadãos). Já Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa anotada, 3a ed., Coimbra, 1993, pág. 207) parecem, porém, dar um alcance mais vasto ao princípio, escrevendo:
“O princípio do juiz legal (…) consiste essencialmente na predeterminação do tribunal competente para o julgamento, proibindo a criação de tribunais ad hoc ou a atribuição de competência a um tribunal diferente do que era legalmente competente à data do crime. Juiz legal é não apenas o juiz da sentença em 1ª instância, mas todos os juízes chamados a participar numa decisão (princípio dos juízes legais). A exigência constitucional vale claramente para os juízes de instrução e para os tribunais colectivos. A doutrina costuma salientar que o princípio do juiz legal comporta várias dimensões fundamentais: (a) exigência de determinabilidade, o que implica que o juiz (ou juízes) chamados a proferir decisões num caso concreto estejam previamente individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível inequívoca; (b) princípio da fixação da competência, observância das competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz e à aplicação dos preceitos que de forma mediata ou imediata são decisivos para a determinação do juiz da causa; (c) observância das determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para a fixação de um plano de distribuição de processos (embora esta distribuição seja uma actividade materialmente administrativa, ela conexiona-se com o princípio da administração judicial).” Por sua vez, Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, 4ª ed., Lisboa
2000, pág. 54) salienta que o princípio do juiz natural ou legal
“tem por finalidade evitar a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para resolver um caso determinado. As normas, tanto orgânicas como processuais, têm de conter regras que permitam determinar o tribunal que há-de intervir em cada caso em atenção a critérios objectivos; não é, pois, admissível que a norma autorize a determinação discricionária do tribunal ou tribunais que hão-de intervir no processo.” A exigência de anterioridade da lei não poderia, porém, razoavelmente, colocar entraves a qualquer reforma da organização judiciária, pelo que, “em ordem a assegurar a imparcialidade dos juízes e tribunais, excluindo ad hoc, ad casum e suspectus”, o que importa não seria a competência individualizada de determinado tribunal, mas
“apenas que em razão daquela causa ou de categorias de causas a que ela pertence sejam criados post factum tribunais de excepção, ou a definição individual da competência, ou do desaforamento discricionário de uma certa causa, ou por qualquer outra forma discricionária que ponha em perigo o direito dos cidadãos a uma justiça penal independente e imparcial”.
(ob. cit., pág. 58)
11. O princípio do “juiz natural”, ou do “juiz legal”, para além da sua ligação ao princípio da legalidade em matéria penal, encontra ainda o seu fundamento na garantia dos direitos das pessoas perante a justiça penal e no princípio do Estado de direito no domínio da administração da justiça. É, assim, uma garantia da independência e da imparcialidade dos tribunais (artigo 203º da Constituição). Designadamente, a exigência de determinabilidade do tribunal a partir de regras legais (juiz legal, juiz predeterminado por lei, gesetzlicher Richter) visa evitar a intervenção de terceiros, não legitimados para tal, na administração da justiça, através da escolha individual, ou para um certo caso, do tribunal ou do(s) juízes chamados a dizer o Direito. Isto, quer tais influências provenham do poder executivo – em nome da raison d’État – quer provenham de outras pessoas
(incluindo de dentro da organização judiciária). Tal exigência é vista como condição para a criação e manutenção da confiança da comunidade na administração dessa justiça, “em nome do povo” (artigo 202º, n.º 1, da Constituição), sendo certo que esta confiança não poderia deixar de ser abalada se o cidadão que recorre à justiça não pudesse ter a certeza de não ser confrontado com um tribunal designado em função das partes ou do caso concreto. A garantia do “juiz natural” tem, assim, um âmbito de protecção que é, em larga medida, configurado ou conformado normativamente – isto é, pelas regras de determinação do juiz “natural”, ou “legal” (assim G. Britz, ob. cit, pág. 574, Bodo Pieroth/Bernhard Schlink, Grundrechte II, 14ª ed., Heidelberg, 1998, pág.
269). E, independentemente da distinção no princípio do juiz legal de um verdadeiro direito fundamental subjectivo de dimensões objectivas de garantia, pode reconhecer-se nesse princípio, desde logo, uma dimensão positiva, consistente no dever de criação de regras, suficientemente determinadas, que permitam a definição do tribunal competente segundo características gerais e abstractas. Logo pela própria ratio do princípio, tais regras não podem, assim, limitar-se à determinação do órgão judiciário competente, mas estendem-se igualmente à definição, seja da formação judiciária interveniente (secção, juízo, etc.), seja dos concretos juízes que a compõem. E isto, quer na 1ª instância, quer nos tribunais superiores, e quer para o julgamento do processo penal, quer para a fase de instrução (referindo que o princípio se aplica igualmente ao juiz de instrução, v., além das decisões já citadas dos tribunais constitucionais alemão e italiano, entre nós, já Figueiredo Dias, Sobre o sentido…, cit., pág. 83, nota
3). Assim, as regras de determinação do juiz, relevantes para efeitos da garantia do
“juiz natural”, terão de incluir, não apenas regras constantes de diplomas legais, mas também outras regras que servem para determinar essa definição da concreta formação judiciária que julgará um processo – por exemplo, as relativas ao preenchimento de turnos de férias –, mesmo quando não constam da lei e antes de determinações internas aos tribunais (por exemplo, regulamentos ou outro tipo de normas internas). Trata-se, aqui, das referidas “determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos)”, apontando, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, “para a fixação de um plano de distribuição de processos”, pois, “embora esta distribuição seja uma actividade materialmente administrativa, ela conexiona-se com o princípio da administração judicial”.
É, pois, ao conjunto das regras, gerais e abstractas mas suficientemente precisas (embora possivelmente com emprego de conceitos indeterminados), que permitem a identificação da concreta formação judiciária que vai apreciar o processo (embora não necessariamente a do relator, a não ser que, como acontece entre nós, da sua determinação possa depender a composição da formação judiciária em causa), que se refere a garantia do “juiz natural”, pois é esse o alcance que é requerido pela sua razão de ser, de evitar a arbitrariedade ou discricionariedade na atribuição de um concreto processo a determinado juiz ou a determinados juízes. Para além desta dimensão positiva, incluindo o aspecto de organização interna dos tribunais, o princípio tem, igualmente, uma vertente negativa, consistente na proibição de afastamento das regras referidas, num caso individual – o que configuraria uma determinação ad hoc do tribunal. Afirma-se, assim, a ideia de perpetuatio jurisdictionis, com “proibição do desaforamento” depois da atribuição do processo a um tribunal, quer a proibição de tribunais ad hoc ou ex post facto, especiais ou excepcionais – a qual deve, aliás, ser relacionada também com a proibição, constante do artigo 209º, n.º 4, da Constituição, de
“existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes”, salvo os tribunais militares durante a vigência do estado de guerra (artigo 213º da Constituição). Como tem sido salientado na nossa doutrina e resulta igualmente da jurisprudência constitucional referida, o princípio do juiz natural não pode, porém, proibir nem a alteração legal da organização judiciária – incluindo da competência para conhecer de determinados processos –, nem a possibilidade de aplicação imediata destas alterações, embora os processos concretos possam, assim, vir a ser apreciados por um tribunal diverso daquele que resultaria das regras em vigor no momento da prática do facto em questão. Esta alteração, quer de regras legais, quer de regras de procedimento para a divisão interna de processos, pode impor-se por acontecimentos ou circunstâncias que não podem ser descritas previamente de forma esgotante, podendo valer mesmo para processos já pendentes. Ponto é, porém, que o novo regime – ou a revogação, e não apenas derrogação, para um caso concreto, do anterior – valha em geral, abrangendo um número indeterminado de processos futuros, e não exprima razões discriminatórias ou arbitrárias, que permitam afirmar que se está perante uma constituição ou determinação ad hoc da formação judiciária em causa (neste sentido, além da citada jurisprudência constitucional alemã e italiana, por exemplo Chr. Degenhart, comentário 12 ao artigo 101º da Lei Fundamental, in Michael Sachs, Grundgesetz – Kommentar, 2ª ed., München, 1999, pág. 1822). Será o caso se tal alteração for justificada por imperativos de realização da justiça.
12. Determinado o alcance do princípio jurídico-constitucional do “juiz natural”, ou do “juiz legal”, importa, revertendo ao caso dos autos, reconhecer que tal princípio é igualmente aplicável ao processo que nele está em questão. Na verdade, trata-se aqui de um processo relativo a um incidente de recusa de intervenção de um juiz de instrução criminal, num processo penal, portanto. Ora, o artigo 32º, n.º 9, encontra-se entre as garantias de processo criminal (cfr. a epígrafe do artigo 32º), valendo, pelo menos, para estes processos, quer para o tribunal do julgamento, quer para o juiz de instrução criminal, durante as fases processuais anteriores ao julgamento, uma vez que a exigência de independência e imparcialidade, bem como a necessidade de evitar influências estranhas sobre o conteúdo das decisões, através da escolha do decisor, não valem só para o julgamento, mas também para a actuação judicial durante o inquérito e a instrução penais. Por outro lado, não se vê razão para que o princípio do “juiz natural” tenha um
âmbito limitado à 1ª instância, sendo, até, que os seus fundamentos podem valer com força acrescida para tribunais superiores, quer profiram decisões definitivas, quer decisões que, mesmo estando sujeitas a recurso, reapreciam e podem alterar decisões da 1ª instância. No presente caso, aliás, não estava em causa uma reapreciação de qualquer decisão concreta do tribunal de instrução criminal, mas, antes, o julgamento de incidente de recusa do juiz de 1ª instância. Ora, também neste aspecto não se descortina qualquer fundamento para que a garantia do tribunal legalmente competente não seja aplicável a um processo do qual pode resultar a substituição do juiz de 1ª instância. Antes pelo contrário, pode dizer-se que, a não ser essa garantia aplicável ao julgamento de incidentes de recusa de juízes em matéria penal, como no caso dos autos, estaria aberta a porta para se conseguir aquilo que o legislador constitucional pretendeu evitar justamente com a consagração do princípio do “juiz natural”: em vez de se poder influenciar a decisão logo pela escolha do juiz da 1ª instância, poderia obter-se o mesmo efeito pelo afastamento deste (e pelo não afastamento de um qualquer outro, por hipótese), determinado pelo tribunal superior cuja determinação fora realizada ad hoc, em consideração do incidente de recusa (e do processo) em questão. É evidente que se poderia assim contornar a “proibição do desaforamento”, retirando ad hoc um processo a um determinado juiz, e atingindo o (nefasto) resultado que o princípio do “juiz natural” pretende impedir. Pode, pois, concluir-se que o parâmetro constitucional invocado pelos recorrentes é, efectivamente, aplicável ao presente incidente de recusa de juiz de instrução, que tem, pois, de ser julgado por um tribunal determinado em conformidade com o princípio do “juiz natural”.
13. Segundo os recorrentes, a desconformidade com o artigo 32º, n.º 9, da Constituição resultaria da revogação do “Provimento n.º 3/2003” depois da apresentação do requerimento de recusa no Tribunal da Relação, e consequente alteração da data da distribuição, num momento em que, devido ao mapa dos turnos de férias, podia prever-se como, consoante a data de realização da distribuição, viria a ser composta a formação judiciária que julgaria esse incidente. Na verdade, no presente caso a composição dos turnos de férias estava pré-definida, com anterioridade, desde Junho, antes da apresentação de qualquer peça processual em férias, e não se verificou qualquer alteração na composição previamente estabelecida das formações judiciárias que, em cada período, iriam apreciar os processos que fossem distribuídos.
É, pois, claro que os recorrentes não invocam a verificação de qualquer desconformidade com o princípio do “juiz natural” devido a uma directa determinação, de forma arbitrária ou discricionária, do tribunal (rectius, dos juízes que integrariam a conferência) ao qual competiria apreciar o incidente de recusa. Não está em causa, por exemplo, a atribuição directa do processo a um determinado conjunto de juízes, sem sorteio, ou a alteração dos turnos de férias fixados desde Junho de 2003, igualmente por uma regra interna. Trata-se, antes, de uma alteração de regras relativas ao tempo ou momento da distribuição – pois apenas sobre elas versava o “provimento” em questão –, das quais apenas indirectamente resultaria uma alteração da composição do tribunal e, consequentemente, a violação do princípio em causa. Se não pode, pois, dizer-se que a revogação do “Provimento n.º 3/2003”, nos termos da decisão reclamada, implique directamente qualquer alteração de regras
(legais ou, sequer, materiais) previamente fixadas para a distribuição, e que são relevantes para a divisão ou repartição funcional interna, mediante sorteio, dos recursos – designadamente, para a identificação da concreta formação judiciária à qual competiria apreciar o processo, é, porém, certo que, durante as férias judiciais, dada a organização de turnos com duração fixada previamente e com juízes – na Secção Criminal e naquela(s) da qual são chamados adjuntos – em número inferior aos que devem integrar a conferência, se pode saber antecipadamente quem intervirá nos processos que vierem a ser distribuídos em determinada(s) data(s). Assim, no presente caso, e de acordo com as normas legais já referidas, no turno de 3, 4 e 5 de Setembro no Tribunal da Relação de Lisboa, um processo penal como o presente seria distribuído a um dos dois Desembargadores de turno da Secção Criminal, que ficaria como relator, actuando o outro como adjunto, e sendo ainda chamado um terceiro elemento, da Secção Cível (pois que não estava nenhum de turno na Secção Social), a determinar segundo a sua posição na ordem de precedência em relação ao relator. Já, porém, na semana seguinte, no turno de 8 e 9 de Setembro, o processo seria distribuído a um dos Desembargadores da Secção Criminal de turno, actuando o outro como adjunto, e sendo chamado a completar a conferência o (único) Desembargador então de turno da Secção Social – podendo, pois, saber-se como viria a ser composta a conferência segundo esse turno. Ora, como se referiu, a distribuição nos tribunais da Relação é efectuada na
“primeira sessão seguinte” ao recebimento ou apresentação do processo, e a competência para marcação de tal sessão depende, nos termos da lei, ou de tabela previamente homologada, ou do Presidente tratando-se, como é o caso, de sessões extraordinárias. Nas circunstâncias referidas, a marcação ou fixação do dia da próxima sessão – e consequente definição da data da distribuição – permite, pois, determinar indirectamente os juízes que serão competentes para apreciar o processo, mesmo sem alteração dos turnos ou atribuição directa do processo a um determinado conjunto de juízes. Na verdade, a lei não impõe expressamente a previsão de qualquer plano de distribuição em dias certos. Antes se basta, durante as férias judiciais, com a prévia fixação dos turnos de serviço, em termos gerais e abstractos – isto é, independentemente dos concretos processos que derem entrada para ser distribuídos –, que impõe (artigo 32º, n.º 1, da LOFTJ, aplicável por força 53º, n.º 1 desta Lei), e confia na marcação das datas das sessões em férias, para efeito de distribuição, pelo Presidente, consoante o serviço existente.
É certo, porém, que resulta, para processos em que existam arguidos detidos ou presos, da própria protecção constitucional do direito à liberdade (cfr., por exemplo, os artigos 27º, n.º 4, e 28º, n.º 1, da Constituição), bem como das regras gerais sobre processos que continuam a correr em férias – artigos 103º, n.º 2, e 104º, n.º 2, do Código de Processo Penal (e, por exemplo, no Tribunal Constitucional, artigo 43º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional) –, que a distribuição desses processos deve ser efectuada tão rapidamente quanto possível. Tal exigência de imediata distribuição, mesmo que não prescrita expressamente por nenhuma norma legal – pois a lei (artigo 223º, n.º 1, do Código de Processo Civil) limita-se a remeter para a “primeira sessão seguinte”, sem definir para quando deve esta ser marcada –, está, na verdade, implícita na própria ideia de urgência, e nas razões que levaram o legislador a determinar que esses processos não deixam de correr durante as férias judiciais. Logo daquela exigência de distribuição imediata deve, pois, resultar o afastamento da possibilidade de, pela alteração da data da distribuição, se influenciar a composição da formação judiciária interveniente. Cumpre notar, por outro lado, que a referida consequência, relativa à possibilidade de conhecimento e de determinação da composição da conferência, é, por natureza, transitória, não correspondendo a qualquer sistema-regra, ou normal, de distribuição dos processos, pois tem a sua origem na verificação cumulativa, nesse período, de determinadas circunstâncias: a mudança dos juízes que estão de turno, e a falta, nesse período de férias, de juízes em cada turno, intervenientes na distribuição, em número suficiente para que possa ficar assegurada a alea normalmente associada ao sorteio. Apesar da verificação destas circunstâncias, é claro que a alteração ou revogação de regras relativas à data da distribuição contende, em primeira linha, justamente com a rapidez de andamento do processo, sendo tais regras apenas indirectamente – pela via das mudanças de turnos e da limitação do número de juízes que os integram – incidentes sobre a definição do tribunal que julgará o processo. Designadamente, eventuais regras sobre a data da distribuição não criam, em processos urgentes, qualquer “direito” das partes ou sujeitos processuais – no caso, dos recorrentes – à realização da distribuição apenas em dias determinados da semana, e não anteriormente. Mas, mesmo não cabendo a possibilidade de determinação do tribunal pela manipulação da data da distribuição nas regras relativas à distribuição em férias de processos urgentes, importa apurar em que medida uma alteração ou revogação – como a que se verificou, e é consentida pela dimensão normativa em causa – conduz a uma violação do princípio do “juiz natural”: pois, se tal alteração ou revogação não têm de resultar de qualquer pré-ordenação à escolha dos juízes que irão intervir no seu julgamento (pois que podem ser justificadas antes por outros motivos), pelo menos deixam em aberto tal possibilidade de definição do tribunal competente, consoante os turnos já conhecidos.
14. Importa, na verdade, considerar que, segundo a decisão reclamada, e nos termos da norma que ela aplicou, o “Provimento n.º 3/2003” pode ser revogado. Não está, pois, em causa a possibilidade de as regras em causa serem, apenas, afastadas ou derrogadas para um determinado processo concreto, mas, antes, revogadas – justamente por isso se tendo definido a dimensão normativa aplicada na dimensão recorrida, e impugnada pelos recorrentes, como a que possibilita que a regra relativa à data da distribuição em certo dia da semana durante as férias judiciais possa ser alterada ou revogada, em termos de se efectuar a imediata distribuição de incidente de recusa de juiz de instrução criminal que já deu entrada no tribunal. Ora, como se referiu, o princípio do “juiz natural” não proíbe toda e qualquer revogação ou alteração imediata, com aplicação a processos pendentes, de regras de procedimento para a divisão interna de processos – e no caso, repete-se, tratava-se apenas de uma regra relativa ao dia da distribuição. Tal alteração de regras de procedimento para a divisão interna de processos pode impor-se por circunstâncias não previstas anteriormente, no momento da aprovação da regra, e que vêm a ser postas em evidência, ou às quais um determinado, ou determinados, processos vêm conferir novo peso e relevo – como, por exemplo, o grave (ou a gravidade do) inconveniente que pode existir em um processo urgente ficar parado, inutilmente, quase uma semana, em período de férias, quando podia ser logo distribuído. Importa, porém, que tal alteração ou revogação, por um lado, não valha apenas para um caso concreto, mas para um número indeterminado de processos futuros, e, por outro lado, não seja justificada em razões discriminatórias ou arbitrárias, em termos de se estar perante uma determinação ad hoc da formação judiciária em causa. No presente caso, a decisão recorrida admite a revogação (sem esclarecer se total, se parcial) do “Provimento” em causa, e é justamente a possibilidade de uma alteração com aplicação imediata – e não apenas o afastamento, derrogação ou não aplicação do “Provimento”, no caso concreto – que está em causa na dimensão normativa em apreciação. Não existem, por outro lado, elementos que permitam concluir com segurança que se tenha verificado apenas uma derrogação, com tratamento de excepção, para o concreto processo que deu origem ao presente recurso, e não verdadeira revogação do “Provimento” em causa, na parte em que determinava a distribuição apenas às segundas-feiras dos processos urgentes. E isto, quer se tenha tratado de uma revogação total, para todos os processos desta natureza, quer apenas
(qualitativamente) parcial, apenas para (todos os futuros) processos relativos a incidentes de recusa da intervenção de juiz em matéria penal em processos com arguidos presos (elementos, esses, que permitiriam a conclusão num ou noutro sentido, consoante, por exemplo, um novo incidente de recusa deste tipo tivesse, posteriormente, vindo a ser distribuído imediatamente ou apenas na segunda-feira da semana seguinte). Admitindo-se, assim – por ser o que está em causa na dimensão normativa impugnada e aplicada pela decisão recorrida –, que se verificou uma verdadeira revogação ou alteração da regra em questão, impõe-se, por outro lado, a conclusão de que estas não exprimiram critérios discriminatórios ou arbitrários em relação a um certo processo concreto – ou, sequer, “particulares exigências de celeridade” na apreciação apenas do concreto processo dos autos. E isto – o que é decisivo –, desde logo, porque tal antecipação da distribuição, visada com essa revogação ou alteração, encontra, ou pode encontrar, atento o contexto, plena justificação nas finalidades de celeridade processual visadas com a referida exigência de distribuição imediata de processos urgentes.
15. Com efeito, a norma impugnada reporta-se à revogação de regra relativa à data da distribuição em férias judiciais de um processo urgente – que os recorrentes, aliás, alegavam ter como efeito o impedimento de diligência de conservação de prova num processo com arguidos presos –, no sentido de se efectuar a imediata distribuição do incidente de recusa. Ora, não há dúvidas de que, em face de um processo do tipo do presente, as particulares exigências de celeridade no seu andamento e apreciação não só são fundamento perfeitamente legítimo para a imediata realização da distribuição, como estão mesmo em consonância com o regime que a lei definiu para este processo e para as diligências cuja realização o juiz de instrução criminal determinara (cfr. os artigos 103º, n.º 2, alínea a), 104º, n.º 2, 271º e 320º do Código de Processo Penal). Considere-se apenas, na verdade, que se tratava de um incidente de recusa de intervenção de juiz num processo com arguidos presos, que o juiz posto em causa pretendia realizar diligências destinadas a permitir a conservação da prova – mais precisamente, declarações para memória futura previstas no artigo 271º do Código de Processo Penal e qualificadas, pelo artigo 320º do mesmo Código, como
“actos urgentes ou cuja demora possa acarretar perigo para a aquisição ou a conservação da prova, ou para a descoberta da verdade” (itálico aditado) –, e que os próprios requerentes defenderam, bem ou mal, no requerimento de recusa, que o juiz recusando ficara impedido de realizar tal diligência. Isto, já para não falar de outras circunstâncias, como a de estar em causa, num processo com a natureza de urgente, uma suspeição ou imparcialidade do juiz, que, apesar desta grave acusação, poderia continuar a praticar actos urgentes indispensáveis, nos termos do artigo 42º, n.º 2, do Código de Processo Penal (aplicável por força do artigo 45º, n.º 4). A revogação de uma regra, constante do referido “Provimento”, que previa o diferimento por vários dias da distribuição do processo encontra, pois (e independentemente da questão da plena conformidade deste diferimento com normas legais e constitucionais), inteira justificação em razões de celeridade que, não só eram consideradas relevantes já anteriormente à entrada do processo em causa no Tribunal da Relação, como há muito recebiam, mesmo, expressão em normas constitucionais e legais – designadamente, as relativas à imediata informação das razões da detenção e à também quase imediata sujeição da detenção a apreciação judicial (artigos 27º, n.º 4, e 28º, n.º 1, da Constituição), ou ao andamento em férias dos processos urgentes, como o presente (os citados artigos
103º, n.º 2, e 104º, n.º 2, do Código de Processo Penal). E tais motivos de celeridade eram já, mesmo, relevantes para o próprio “Provimento” em causa, que não deixava de, em férias judiciais, abrir excepções à distribuição apenas às segundas-feiras, prevendo, para certos processos com prazos curtos e a correr no Tribunal da Relação, a distribuição “logo que derem entrada neste Tribunal”. Isto, não deixando, ainda, de notar-se que a antecipação da distribuição só poderia significar que o requerimento de recusa apresentado pelos arguidos seria apreciado mais rapidamente, não afrontando, portanto, tais motivos de celeridade a posição jurídica dos requerentes – que se encontravam em situação de prisão preventiva –, enquanto sujeitos processuais. Só por si, tais considerações são bastantes para se poder concluir que a alteração ou revogação do provimento, com imediata distribuição do processo – antes da mudança de turno que ocorreria nos próximos dias –, nos termos possibilitados pela norma em apreciação, não se revela fundada em quaisquer razões arbitrárias ou discriminatórias, alheias aos interesses substanciais em causa no processo (na expressão alemã, em “sachwidrige Gründen”), mas, antes, na conveniência, evidentemente justificada, de que um processo em tais circunstâncias não ficasse seis dias parado a aguardar que fosse distribuído. Ora, nestas circunstâncias, sendo a referida revogação, permitida pela dimensão normativa em causa, justificada por motivos que eram tidos como relevantes, pela Constituição da República, pela lei processual penal, e pelo próprio
“Provimento” revogado, já anteriormente à entrada no Tribunal da Relação do processo em causa – processo, este, cuja decisão, aliás, já foi entretanto reapreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça –, essa norma não pode ser considerada violadora do princípio do “juiz natural”.
16.Conclui-se, por conseguinte, que a interpretação dos preceitos em questão, no sentido de que pode ser revogada a regra relativa à data da distribuição em férias judiciais, permitindo imediata distribuição de incidente de recusa de juiz de instrução criminal já apresentado, num contexto em que para tal revogação relevem especiais imperativos de urgência, não viola o artigo 32º, n.º
9, da Constituição, nem, por outro lado, qualquer outra norma ou princípio constitucional (aliás, não invocados pelos recorrentes). E, portanto, deve ser negado provimento ao presente recurso. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Negar provimento ao recurso; b) Condenar os recorrentes em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 12 de Dezembro de 2003 Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos