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Proc. n.º 103/04 TC - 1ª Secção Rel.: Cons.º Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 - No recurso supra identificado em que é recorrente A. e recorrida a B. foi proferida a seguinte decisão sumária:
'1 – A A. intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra a B., em 8 de Novembro de 1993, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de 710 000 000$00 e juros à taxa legal a contar da citação, com diversos fundamentos, a saber: forjamento de um certificado internacional de transferência do jogador C.; na ilegalidade da sua participação no campeonato português; no alinhamento irregular deste último pelo D. na época de 1987/1988; na derrota que este clube lhe infligiu em 15 de Maio de 1988; na ilegalidade da consideração desses dois pontos a favor do vencedor; na descida à II Divisão Nacional de Futebol apesar de ter ficado com os mesmos pontos dos dois clubes que se posicionaram imediatamente; nas perturbações que ao tempo todos esses factos e os processos deles decorrentes causaram aos seus dirigentes; no empobrecimento progressivo derivado da falta de receitas e na dificuldade em regressar à I Divisão Nacional de Futebol.
Na contestação, a Ré invocou a insindicabilidade judicial das decisões estritamente desportivas por violação de normas de natureza técnica ou disciplinar, a incompetência do tribunal em razão da matéria e do território, a prescrição do direito de crédito exigido, a regularidade da inscrição do referido jogador, a inexistência de nexo de causalidade entre a perda do jogo e a descida de divisão e entre esta e o prejuízo invocado pela autora.
Houve réplica da A. a negar as excepções e a reafirmar o anteriormente articulado na petição inicial, tendo-lhe sido concedido o apoio judiciário na modalidade de dispensa de preparos e do pagamento de custas.
A invocada excepção de incompetência do tribunal em razão do territótrio foi julgada procedente, tendo a Ré agravado do despacho que julgou o tribunal competente em razão da matéria e da hierarquia: o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
Realizado o julgamento, foi proferida, em 17 de Setembro de 2001, sentença que julgou a acção improcedente com fundamento na regularidade da inscrição do jogador C..
Inconformada, a A. recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 8 de Outubro de 2002, negando provimento ao agravo, mas julgando procedente a apelação, condenou a Ré – B. – a pagar à Autora – A. – a título de indemnização, por danos patrimoniais: a quantia de 748 196,80 € por perda de receitas de bilheteira, a quantia de 27 746,70€ por não recebimento das quantias da Ré, quantia a liquidar em execução de sentença correspondente às receitas das transmissões televisivas directas e dos resumos de jogos, bem como correspondente às receitas do totobola da E. e ainda quantia proveniente dos contratos de publicidade nas camisolas dos jogadores e, por danos não patrimoniais, a quantia de 498 797,90 €.
A Ré, inconformada, interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1 – A inscrição do jogador C. na época futebolística de 86/87 haveria tão só e apenas de ser arquivada, a partir de 30 de Abril de 1987, não padecendo de qualquer nulidade, já que não ofendeu qualquer disposição legal: - artigo 294º do Código Civil e ponto 45 do Comunicado Oficial da Ré nº 1 para a época de
1986/87;
2 – A inscrição do jogador para a época futebolística de 1987/88 foi inteiramente regular em face do disposto nos Comunicados Oficiais da Ré nºs.
102, de 14/3/78 (alínea F) da especificação) e 1º para a época de 1987/88
(alínea G” da especificação); Ainda que assim se não entenda.
3 – O comportamento da Ré (a omissão da punição do D.) não constituiu causa adequada dos danos peticionados pela Autora: - artigo 563º do CC; mas acresce ainda, caso assim se não julgue;
4 – O facto culposo da Autora de não subir à I Divisão no final da época futebolística de 88/89 concorreu para o agravamento dos danos, pelo que são inteiramente infundados os prejuízos peticionados posteriormente ao final dessa
época de 88/89;
5 – Ao condenar a Ré no pagamento de danos morais não peticionados o, aliás douto, acórdão recorrido condenou não só em quantidade superior ao pedido, em objecto diverso do pedido como ainda tomou conhecimento de questão de que não podia conhecer, cometendo assim as nulidades previstas nas alíneas d) e e) do nº
1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.
6 – Julgando em contrário o, aliás douto, acórdão em censura violou as normas invocadas nas presentes conclusões.”
A, então recorrida, A. contra-alegou, tendo dito a concluir:
“1. O atleta C., jogou na época de 1986/87 pelo D., ainda sem inscrição e ao abrigo das disposições do nº. 46 e sob a condição dos nºs 3 e 4 do CO nº 1 da B. para a época de 86/87, sendo da responsabilidade do clube “AS DEFICIÊNCIAS OU IRREGULARIDADES QUE VENHAM A SER DETECTADAS”.
2. Sem o CERTIFICADO INTERNACIONAL, ou seja o documento que prova que o jogador está livre para se poder inscrever, não há inscrição na Ré.
3. Para poder haver inscrição o CERTIFICADO INTERNACIONAL havia de dar entrada na B. e até 30.04.87. Tendo sido apresentado apenas a 29.05.87, o PEDIDO da inscrição foi ARQUIVADO nos termos do nº 45, parte final, do CO para a época de
86/86, então vigente.
4. A invocação por parte da Ré, efectuada na presente revista, de que “não procedeu ao arquivamento do processo”, e nisso consisitiu a sua “falta” trata-se de uma conclusão de facto, subtraída à apreciação deste Venerando Supremo Tribunal de Justiça.
5. O CERTIFICADO INTERNACIONAL, no caso de inscrição com transferência de jogador estrangeiro como era o caso do jogador C., assume a natureza de requisito essencial para o acto de inscrição, pois é imposta por disposição regulamentar, no caso, pelo nº 45 do CO nº 1 da Ré, época 86/87.
6. A apresentação do CERTIFICADO INTERNACIONAL para o acto de inscrição é um elemento da condição da sua própria existência, sem o qual o próprio PEDIDO DE INSCRIÇÃO é arquivado (nº 45, CO nº 1, parte final, época 86/87).
7. E ainda que tivesse de se considerar haver inscrição sob condição, essa inscrição é NULA. Sendo como é uma nulidade que decorre da falta de um elemento essencial, igualmente dela não resulta qualquer efeito jurídico.
8. O acto nulo é insusceptível de se tornar um acto válido por qualquer forma de convalidação e assim também, por maioria de razão, o acto inexistente, não podendo por isso produzir quaisquer efeitos jurídicos.
9. Não é pelo facto de o CERTIFICADO INTERNACIONAL chegar mais tarde, ou seja em
29.05.87, quando teria de ser apresentado até 30.04.87, que se pode considerar válido o pedido de inscrição anterior, pois como ensinam Freitas do Amaral, Sérvulo Correia, Marcelo Caetano e Esteves Oliveira “a formalidade tem que se verificar no momento em que a lei a exige, de nada valendo a sua observância fora do tempo. A nulidade que daí decorre não pode ser sanada a posteriori”.
10. O pedido ou inscrição efectuado ainda em 1986 apenas com a informação prestada por telex, da liberdade do jogador para se poder inscrever, mas sem o certificado internacional, ou, pura e simplesmente não existe, ou foi feita sob condição que não se verificou, não se consumando pois. Por isso o pedido de inscrição foi arquivado, ou ainda que assim não se entendesse a dita inscrição sempre seria nula por falta de um requisito essencial – O CERTIFICADO INTERNACIONAL.
11. A aplicação da excepção prevista no CO nº 102 de 14.03.78 só tem lugar, quando existe uma prévia inscrição e sempre no pressuposto de esta ser válida ou não esteja ferida de nulidade.
12. Actuando como actuou, a B. gerou situações de desigualdade no acesso dos clubes participantes no Campeonato Nacional da I Divisão para a época de 87/88 à inscrição de jogadores, violando também o artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
13. Ainda assim, não se sabe qual o certificado que a Ré considerou para validar a inexistente inscrição, pois do respectivo processo constam duas fotocópias de dois certificados internacionais, com diferenças indiciadoras de falsificação com carimbo de entrada em 30.04.87, mas que só nela entraram em 29.05.87.
14. A inscrição do jogador C., na época 86/87, tem que observar o CO nº 1 vigente para esta época, e não o CO nº 1, para a época 87/88, que só entrou em vigor em 01.08.87.
15. A “revalidação” da “inscrição” provisória e sob condição e nula, da época
86/87, para a época 87/88, ocorreu com interpretação ou aplicação abusiva da excepção prevista no CO nº 102 de 14.03.78.
16. Não podendo a inscrição do jogador ser “revalidada”, o jogador foi utilizado no jogo realizado em 15.05.87 com o D. em condição ilegal e não regulamentar, pelo que deveria ser aplicado o artigo 57º do Regulamento de Disciplina da Ré, aprovado em Assembleia Geral de 11.08.84 e em consequência atribuída a pena de derrota – 0 pontos – ao seu clube, D..
17. E caso a Ré tivesse aplicado a pena da derrota – 0 pontos – àquele clube, deveria ser ele classificado em antepenúltimo lugar e não a recorrida, que assim deveria manter-se na I Divisão do Campeonato Nacional e não descer à II Divisão, como desceu.
18. O comportamento da Ré – omissão de punição do D. com 0 pontos – comportamento este prosseguido com um conjunto de factos ilícitos e culposos, constitui causa adequada dos danos sofridos pela Autora, pois determinou-lhe a descida de divisão e consequentes prejuízos que daí decorreram.
19. Apurar se caso não jogasse o atleta C., a recorrente ganhava ou não o jogo que disputou com a recorrida, ou se, a causa da descida foi “a frágil classificação da Autora”, constitui matéria de facto, subtraída à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça, que tem de acatar a interpretação lógica dos factos e as ilações lógicas que as instâncias retiram desses mesmos factos.
20. Não tendo sido conhecido nas instâncias e porque a questão não lhe foi colocada, se foi ou não por “negligência, imperícia, falta de destreza e incapacidade dos seus órgãos e jogadores” da Autora, que ocorreu agravamento dos danos sofridos por ela, não pode agora na revista conhecer-se de tal questão, tanto mais que o que se provou foi que “as perturbações que a conduta dos funcionários e órgãos da Ré e suas consequências, causou, ao tempo, nos seus dirigentes e jogadores e o empobrecimento progressivo derivado da falta de receitas que obteria da I Divisão, contribuíram para a dificuldade regressar à I Divisão”.
21. Alegando e provando a autora ter sofrido danos morais e pedindo que a Ré seja condenada em determinada quantia nos termos e condições expostas, embora não quantificando a parte relativa àqueles danos, deverá o Tribunal fixá-los na sentença, embora não excedendo o montante global peticionado”.
Por acórdão de 3 de Julho de 2003 o Supremo Tribunal de Justiça concedeu provimento ao recurso, revogou o acórdão recorrido, mantendo o decidido em primeira instância.
A A. por requerimento de 15 de Julho de 2003 pediu a aclaração do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, tendo a pretendida aclaração sido negada por acórdão de 23 de Outubro de 2003.
Em 5 de Novembro de 2003, a A. veio arguir nulidades, tendo suscitado nessa peça processual a inconstitucionalidade de diversas normas (ou sua interpretação) pela decisão recorrida.
O Supremo Tribunal de Justiça julgou improcedentes as arguidas nulidades e as questões de constitucionalidade suscitadas por acórdão de 11 de Dezembro de
2003.
De novo inconformada, a A. veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, tendo dito no requerimento de interposição de recurso:
“O presente recurso baseia-se no disposto no artigo 70º, 1, alínea b) do C.T.C. No presente suscita-se a apreciação da inconstitucionalidade das seguintes normas: Artigo 729º, nº 1 do Código de Processo Civil; Artigo 10º, nº 1 do Código Civil; Artigo 89º do Dec.Lei 100/84 e Número 45 do Comunicado Oficial para a época futebolística de 1986/87 da B.. A inconstitucionalidade de tais normas foi suscitadas pela recorrente na reclamação, pela qual se suscitou a nulidade da douta decisão de fls...
(...) Em qualquer dos casos em apreço foram violados os seguintes princípios constitucionais:
- Princípio da Igualdade – artigo 13º da C.R.P.
- Princípio do Estado de Direito Democrático – artigo 2º da C.R.P.
- Princípio da legalidade da administração – artigo 266º, nº 2 da C.R.P.
- Princípio da protecção da confiança e de segurança jurídica – artigo
2º do C.R.P.
- Princípio do processo justo e equitativo (due process) – direito a uma decisão fundada no direito – artigo 2º da C.R.P.”
Cumpre apreciar e decidir.
2 - O recurso vem intentado ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº. 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, sendo necessário, para se poder conhecer de tal recurso, a par do esgotamento dos recursos ordinários e de que a norma impugnada tenha sido aplicada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido, que a inconstitucionalidade desta norma, ou dimensão normativa, tenha sido suscitada durante o processo.
Como é já sobejamente sabido, no direito constitucional português vigente apenas as normas são objecto de fiscalização de constitucionalidade concentrada em via de recurso (cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/96, in Diário da República, II Série, de 15 de Maio de 1996, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1998, p.
821), com exclusão dos actos de outra natureza (políticos, administrativos, ou judiciais em si mesmos).
É jurisprudência pacífica deste Tribunal que a questão de constitucionalidade suscitada “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (cfr. o artigo 72º, n.º 2, da LTC), há-de ser uma questão de constitucionalidade normativa, isto é, referida à conformidade (...) constitucional de norma(s).
Ao Tribunal Constitucional “só lhe cumpre proceder ao controle da constitucionalidade de ‘normas’ e não de ‘decisões’ – o que exige que, ao suscitar-se uma questão de inconstitucionalidade, se deixe claro qual o preceito legal cuja legitimidade constitucional se questiona, ou, no caso de se questionar certa interpretação de uma dada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa do preceito que se tem por violador da lei fundamental.” (ver Acórdão n.º 199/88, in DR, II Série, de 28 de Março de 1989 e também, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 178/95, in DR, II Série, de 21 de Junho de 1995 –, 521/95 e
1026/96, inéditos).”
Como se disse no Acórdão nº. 23/03, de 15 de Janeiro, inédito, citando o Acórdão nº. 367/94, in DR, II Série, de 7 de Setembro, “[E]sse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado por, desse modo, violar a Constituição.”
3 - No requerimento de interposição de recurso são indicadas as normas constantes do artigo 729, nº. 1 do Código de Processo Civil, do artigo 10º do Código Civil, do artigo 89º do Decreto-Lei nº. 100/84 e do número 45 do Comunicado Oficial da B. para a época de futebol de 1986/87, com a explicitação do sentido com que tais normas teriam sido interpretadas pela decisão recorrida.
Assim:
- quanto à norma do artigo 729º n.º 1 do CPC, ela teria sido aplicada 'com o entendimento de que ela permite ir além dos factos materiais fixados nas instâncias, construir factos novos, apreciar questões novas não abordadas e decididas nas instâncias';
- quanto às normas dos artigos 10º n.º 1 do Código Civil e 89º do Decreto-Lei n.º 100/84, a primeira teria sido aplicada no sentido de que ela permitiria a aplicação analógica do disposto na segunda que dispõe para os actos das autarquias locais, por nesse mesmo entendimento procederem as razões justificativas dessa regulamentação autárquica ;
- quanto à norma do n.º 45 do Comunicado Oficial n.º 1 da B. da época de
1986/1987, ela teria sido aplicada no sentido de, apesar do certificado do jogador C. não ter sido recebido até 30/4/87, permitir que o pedido de inscrição não seja formalmente arquivado e que aquela falta do certificado é uma ilegalidade que apenas gera a anulabilidade do acto de inscrição, ilegalidade que pode ser sanada com a junção do dito certificado para além do prazo indicado na norma e sem a intervenção dos demais interessados, mesmo prejudicados, e por igualmente se entender que revalidar, não é, ou não é apenas validar o acto juridicamente válido, mas sim que 'o acto jurídico de revalidação é o que torna legítimo, legal ou juridicamente válido, o acto que pode ser praticado ilegalmente ou sem eficácia jurídica'.
Pressuposto do recurso de constitucionalidade é a suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, de modo a permitir que esse tribunal saiba que tem de apreciar essa questão (artigos 70º n.º 1 alínea b) e 72º n.º 2 da LTC).
E é por isso que a recorrente indica ter suscitado as questões em causa no requerimento de arguição de nulidades do acórdão de 3/7/2003.
Tem o Tribunal Constitucional firmado jurisprudência no sentido de que o requerimento de arguição de nulidades não é, em princípio, momento processual adequado para suscitar questões de constitucionalidade durante o processo, por estar esgotado o poder de cognição do tribunal recorrido quanto a esse tipo de questões.
Ressalvam-se, assim - e no que concerne à arguição de nulidades - as questões que respeitam aos próprios poderes exercidos pelo tribunal no âmbito do conhecimento das referidas nulidades.
Isto, desde logo significa que, no caso, só a questão de constitucionalidade da suposta interpretação da norma contida no artigo 729º n.º 1 do CPC se pode considerar suscitada durante o processo.
Para todas as outras é irrelevante o que se alegou na reclamação por nulidades, pois o STJ não dispunha já de poderes para as decidir.
Porém, tal não obsta, só por si, ao conhecimento das alegadas constitucionalidades no presente recurso, no ponto em que a exigência da suscitação durante o processo pressupõe, obviamente, que o recorrente tenha tido oportunidade (processual) para o fazer.
Quer isto em suma dizer que:
a) suscitada durante o processo a questão da constitucionalidade da interpretação da norma do artigo 729º n.º 1 do CPC, haverá apenas, nesta fase, que apreciar se tal interpretação foi acolhida no acórdão recorrido, integrado pelo aresto que se pronunciou sobre as nulidades arguidas;
b) no que respeita às restantes normas, deverá averiguar-se se a recorrente dispôs, ou não, de oportunidade para suscitar a questão de constitucionalidade perante o STJ.
4 - É do seguinte o teor a norma artigo 729º n.º 1 do CPC:
“1. Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado”.
Respondendo à questão de saber se o STJ adoptou a interpretação desta norma nos termos referidos pela recorrente, deve, desde já, dizer-se que não.
Com efeito, a este propósito, o STJ deixa claro - sem aliás citar expressamente o disposto no artigo 729º n.º 1 do CPC - que 'no quadro da liberdade de qualificação jurídica que a lei lhe confere e da fundamentação não contraditória que julgou pertinente, só conheceu das questões que lhe foram postas por via das conclusões de alegação destituídas de novidade (...)'; por outro lado, refere ainda que 'como o tribunal, nos termos do artigo 664º do Código de Processo Civil é livre na aplicação do direito aos factos provados, as mencionadas questões [as questões que lhe sejam colocadas pelos recorrentes e pelos recorridos] não se consubstanciam na argumentação das partes, mas nas que se referem à causa de pedir, ao pedido e às excepções'.
A interpretação que o acórdão recorrido recorrido faz
(expressivamente, no acórdão que se pronuncia sobre a arguição de nulidades) sobre os poderes do STJ em recurso de revista não é, pois, a que a recorrente indica.
E a verdade é que, mesmo se nos desligarmos (sendo isto legalmente possível) daquelas afirmações dogmáticas supra transcritas e sindicarmos os termos concretos em que terá sido feita a aplicação dos princípios enunciados, não se vê no acórdão recorrido qualquer juízo que contrarie esses princípios.
Não pode, assim, conhecer-se do objecto do recurso quanto à norma do artigo 729º n.º 1 do CPC, por não ter sido aplicada no acórdão recorrido com a interpretação indicada pela recorrente.
5 - No que concerne às restantes interpretações normativas questionadas pela recorrente, têm todas elas uma base comum: a qualificação do vício que inquinaria a inscrição do jogador C. na época futebolística de 1986/87 e os seus efeitos na inscrição do mesmo jogador para as épocas seguintes, particularmente a de 1987/88.
É patente que, no recurso interposto pela B. para o STJ - em que a ora recorrente figura como recorrida - a tese sustentada pela então recorrente assentava num ponto essencial: a de a inscrição do referido jogador na época de
86/87 não estar ferida de nulidade, sendo regular a inscrição na época de 87/88.
Tal foi, aliás, bem compreendido pela então recorrida, cujas alegações têm como principal objectivo a demonstração de que a inscrição de
86/87 se mostra ferida de nulidade, por falta de um elemento essencial - a falta do certificado internacional - não podendo o acto nulo ser objecto de qualquer forma de convalidação.
Ora, entendendo a recorrente - como agora se vê - que tese contrária só poderia assentar em interpretações normativas colidentes com a Constituição - fosse por via do disposto no artigo 89º do Decreto-lei n.º 100/84, ou do disposto do n.º 45º do Comunicado Oficial n.º 1 da B. da época de 86/87 - e sendo ao menos plausível que a tese da então recorrente pudesse vir a obter vencimento no STJ, deveria ela, desde logo, suscitar as questões de constitucionalidade pertinentes, sujeitando o STJ à apreciação dessas questões se obtivesse vencimento a tese da B., o que não fez.
As questões de constitucionalidade não foram, pois, suscitadas perante o tribunal recorrido, dispondo a recorrente de oportunidade para o fazer.
Mas, outra razão determina, ainda o não conhecimento do objecto do recurso.
Com efeito, o acórdão impugnado, muito embora tenha concluído no sentido de que a ilegalidade da inscrição para a época de 86/87 não gerava nulidade - isto sempre com o objectivo de determinar o efeito na inscrição para as épocas subsequentes - não deixa de ponderar uma solução de nulidade, concluindo que, de igual modo, não ficaria afectada a inscrição para as referidas épocas.
Diz. a propósito, o aresto:
'Mas ainda que se tratasse de vício de nulidade, que foi considerado na Relação, a solução, segundo os vários interesses envolvidos, não poderia ser no sentido da ilegalidade da designada revalidação'.
Tal só pode significar que um eventual juízo de inconstitucionalidade respeitante às normas em causa (no ponto em que o acórdão recorrido nelas teria assentado para julgar meramente anulável a inscrição para a época de 1986/87) não teria qualquer efeito útil na decisão de mérito proferida pelo mesmo acórdão, que sempre se manteria como decorre do trecho supra transcrito.
Dado o carácter instrumental do recurso interposto, não pode o Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a constitucionalidade de normas quando, por certo - pelos termos em que se mostra construída a decisão recorrida
- o seu juízo nenhuma incidência teria na mesma decisão.
6 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não tomar conhecimento do objecto do presente recurso.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 7 Ucs, a cobrar se e quando se verificarem as circunstâncias referidas no artigo 54º n.º 1 da Lei n.º
30-E/2000.'
Notificada desta decisão veio a recorrente reclamar para a conferência.
Na sua reclamação, a recorrente limita a sua discordância ao que foi decidido relativamente ao disposto no n.º 45 do Comunicado Oficial n.º 1 da B. da época de 86/87.
E, em síntese, sustenta que:
- não teve outra oportunidade para suscitar a questão de inconstitucionalidade senão na arguição de nulidade do acórdão recorrido, uma vez que o n.º 45 do Comunicado Oficial nunca fora aplicado com o sentido de que a ilegalidade decorrente da falta de certificado internacional poderia ser sanada com a sua junção fora do prazo e sem a intervenção dos demais interessados, mesmo prejudicados e só com uma parte, um interessado, no caso, o D.;
- tal interpretação redunda numa clara violação do princípio da igualdade, como foi suscitado e demonstrado nas alegações de recurso para o STJ e até consta das suas alegações.
Respondeu a recorrida, sustentando o indeferimento da reclamação, quer por a norma em causa não ser uma norma pública, não sendo, assim, sindicável pelo Tribunal Constitucional, quer pelo que se decidiu na decisão sumária, não contrariada pela reclamante com novos argumentos.
Cumpre decidir.
2 - Como se deixou relatado, a presente reclamação limita-se a discordar do decidido quanto ao não conhecimento do objecto do recurso, na parte em que ele se reporta ao n.º 45º do Comunicado Oficial n.º 1 da B., da época de
86/87.
Salienta-se, desde já, a incongruência de, por um lado se afirmar que o único momento que a reclamante dispôs para suscitar a inconstitucionalidade foi a arguição de nulidades do acórdão recorrido e, por outro, se dizer que a inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, foi suscitada no recurso para o STJ.
Ora, não é verdade que a reclamante tenha suscitado a inconstitucionalidade da 'norma' em causa nas alegações de recurso para o STJ, pois o que aí se limitou a alegar foi que a então recorrente (B.), com o procedimento adoptado, gerara situações de desigualdade no acesso de clubes participantes ao campeonato nacional da 1ª divisão, na época de 98/98 e à inscrição de jogadores, com violação do princípio da igualdade.
De todo o modo, se a aplicação da citada 'norma', com a aludida interpretação, fora feita de modo imprevisível no acórdão recorrido, nem sequer se impunha que a recorrente suscitasse a inconstitucionalidade em sede de arguição de nulidade; tratar-se-ia, então, de uma decisão-surpresa, caso em que o Tribunal Constitucional tem sempre admitido a dispensa do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade.
E foi por isso que na decisão reclamada se conheceu da questão de saber se a ora reclamante dispusera, ou não de oportunidade, para suscitar a inconstitucionalidade em causa perante o STJ.
A essa questão respondeu afirmativamente a decisão reclamada, sem que a reclamante logre agora infirmar o julgado.
Mas - e decisivamente - não contraria a reclamante um outro fundamento da decisão sumária para não conhecer do objecto do recurso: o de o acórdão recorrido ter admitido a hipótese da nulidade, sem que a solução de direito se alterasse, do que resultaria a inutilidade de um eventual juízo de inconstitucionalidade das normas em causa, no ponto em que o mesmo acórdão nelas teria assentado para julgar meramente anulável a inscrição para época de
1986/87.
Improcede, pois, a reclamação.
3 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs, a cobrar se e quando se verificarem as circunstâncias referidas no artigo 54º n.º
1 da Lei n.º 30-E/2000.
Lisboa, 13 de Abril de 2004
Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida