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Proc. nº 853/03
3ª Secção Rel. Cons. Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. - Por sentença do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, foi julgado improcedente o recurso interposto por A., ao abrigo do nº 1 do art. 59º do DL nº 433/82, de 27 de Outubro, da decisão da Direcção-Geral de Viação ( Delegação de Setúbal) que o condenou na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias, pela prática de uma contra-ordenação prevista e punida nos termos do nº 1 e al. a) do nº 2 do artigo 27º e dos artigos 139º e al. b) do artigo 146º do Código da Estrada.
Em 7 de Outubro de 2003, o recorrente apresentou um requerimento de interposição de recurso dessa decisão ( fls. 52). Por despacho de 24 de Outubro de 2003 ( fls. 59), o juiz daquele Tribunal rejeitou o recurso.
O recorrente apresentou reclamação deste despacho, ao abrigo do nº 4 do artigo
76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro ( LTC ), com os seguintes fundamentos:
“1.- Por manifesto lapso de que o ora signatário se penitencia, não se indicou, como era intenção, que o recurso interposto, visando tão somente o conhecimento da invocada inconstitucionalidade das normas indicadas, era destinado ao Tribunal Constitucional.
2.- Aliás, que assim era resultou também perceptível pelo Tribunal recorrido que muito bem indica tal sentido do requerimento ao afirmar que tal “poderia pretender” o recorrente.
3.- Igualmente não se mencionou de forma expressa, mas sempre resultaria tacitamente dessa interposição no termo do prazo, a renúncia ao recurso ordinário a que se refere o mesmo douto despacho reclamado, condição legal necessária à admissão do recurso interposto.
4.- Dir-se-á, e com justeza, que são demasiados lapsos, numa questão que pela sua tecnicidade não os deveria permitir ao signatário, mas a mesma relevância e evidência do direito que se pretende ajuizar, impõe que seja admitida a correcção dos mesmos e em consequência admitido o recurso em tempo interposto, por quem tinha legitimidade, afim de que sejam removidas razões de ordem formal que impeçam o conhecimento de mérito do pedido formulado.”
Ouvido nos termos do nº 2 do art. 77º da LTC, o Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência da reclamação ( fls.
74v.-75).
Sem vistos, face à simplicidade da questão, cumpre decidir ( nº 3 do art. 77º da LTC).
2. - O requerimento de interposição do recurso ( fls. 52) é do seguinte teor:
“A., residente na --------------------------, ---------, ----------, em
--------, vem deduzir Recurso suscitada que foi, nos autos à margem referenciados, a inconstitucionalidade dos artigos 33º e 34º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas.”
Perante este requerimento, foi proferido o seguinte despacho:
“O arguido ‘vem deduzir recurso suscitada que foi [...] a inconstitucionalidade dos artigos 33º e 34º do Regime Geral das Contra-ordenações ‘. O recurso é admissível para o Tribunal da Relação, porque a decisão manteve a aplicação de sanção acessória (artigo 73º, nº 1, b) do regime dos ilícitos de mera ordenação social). Mas segue a tramitação do processo penal (artigo 74º, nº 4 do referido regime). O que significa que deve incluir a motivação, sob pena de não admissão do recurso (artigo 411º, nº 3 do CPP). O arguido não apresentou a motivação. Porventura poderia pretender ver a questão apreciada pelo Tribunal Constitucional, já que expressamente alude à matéria da inconstitucionalidade
(muito embora esta possa e deva ser apreciada por qualquer tribunal). Para tanto, haveria que ter atentado no artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei nº 22/82, de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas pela Lei nº 143/85, de 26 de Novembro, pelo Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei nº 88/95, de 1 de Setembro e pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro). Não se esgotaram os recursos ordinários e não houve renúncia à sua interposição. Assim, rejeita-se o recurso.”
3. - Previamente à apreciação dos argumentos do reclamante, convém deixar esclarecidos dois aspectos, a propósito dos quais poderiam gerar-se dúvidas sobre a idoneidade do meio processual utilizado.
O primeiro é o de que, embora o despacho reclamado conclua com a expressão
“rejeita-se o recurso”, é manifesto estarmos perante um despacho de
“indeferimento do requerimento de interposição” ou de “não admissão” do recurso interposto e, portanto, perante uma decisão relativamente à qual o meio de impugnação adequado é a reclamação ( o antigamente chamado recurso de queixa).
O segundo consiste em que o sentido ou o conteúdo decisório contra o qual o reclamante agora reage é o de indeferimento do requerimento de fls. 52 enquanto (suposto) veículo da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional. Efectivamente, o despacho contém um outro expresso sentido decisório que é o de não admissão do recurso para o Tribunal da Relação, com fundamento na falta de motivação, nos termos impostos pelo nº 3 do art. 411º do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no nº 4 do art. 74º do DL nº 433/82, de 26 de Outubro, diploma que estabelece o regime geral das contra-ordenações. Com esse outro conteúdo decisório do despacho – cuja apreciação não caberia na competência do Tribunal Constitucional, sublinhe-se – o reclamante conformou-se.
Assim, como o despacho de fls.59 perspectivou, embora em termos hipotéticos e num plano subsidiário de decisão, o requerimento de fls.52 como de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional e ( também com esse sentido) o indeferiu, é admissível o meio de impugnação previsto no n.º 4 do artigo 76º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
4. - Além dos requisitos que a lei para cada espécie estabeleça, os actos processuais devem ser redigidos de maneira a tornar claro o seu conteúdo
(art. 138º/3 do CPC). De um modo geral, vale para os actos processuais das partes, sobretudo para os actos postulativos (aqueles em que é solicitada uma decisão ao tribunal e cujos efeitos só se produzem mediante essa decisão), a regra que se retira das disposições conjugadas do nº 1 do artigo 236º, nº 1 do artigo 238º e 295º do Código Civil e artigo 75º-A da LTC, ou seja, centrando-nos no que para o caso interessa, actos do tipo do requerimento de interposição de recurso, que se desenvolvem apenas na vertente bipolar ( requerente < - > juiz ) da relação processual, devem ser interpretados com o sentido que um juiz normal, colocado na posição do juiz concreto, lhes daria. Vale por dizer que, aquando da interpretação do acto da parte, não pode ser considerada uma vontade que não tenha no texto que o corporiza um mínimo de correspondência verbal, embora nessa tarefa interpretativa o tribunal deva atender também às circunstâncias que resultam dos autos (o contexto e a dinâmica da lide), presumir que o requerente pretende o efeito mais favorável ou de maior utilidade para que o acto seja idóneo.
Ora, o requerimento de fls. 52 não satisfaz minimamente os requisitos de interposição de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional (De natureza “mais rígida” do que o regime geral; cf. Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, p.191, nota (1) ).
Em primeiro lugar, nem sequer é nele inteligível que o recurso interposto se destinasse ao Tribunal Constitucional. Efectivamente, o requerimento de fls.52 não contém qualquer menção ao Tribunal Constitucional, ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade ou a qualquer preceito legal da qual se pudesse inferir que era um recurso deste tipo que se visava interpor. Ora, quando no requerimento de interposição do recurso não se menciona o tribunal ad quem deve entender-se, segundo um juízo de normalidade, que se pretende interpor recurso ordinário para o tribunal competente inserido na hierarquia própria da ordem jurisdicional a que pertence o tribunal de que se recorre. A mera indicação de que o tema do recurso seria “a inconstitucionalidade dos artigos 33º e 34º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas” não é suficiente para que se entenda diversamente, porque a questão de constitucionalidade pode ser discutida perante os restantes tribunais (art.204º da Constituição).
Em segundo lugar, o requerimento não dá cumprimento a qualquer das exigências do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, designadamente, não indica a alínea do nº 1 do artigo 70º ao abrigo do qual o recurso é interposto, a norma ou princípio constitucional que se considera violado e (suposto que possa depreender-se daquela referência aos artigos 33º e 34º do regime geral das contra-ordenações que se pretendia recorrer ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.70º) a peça processual em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade.
Perante um tal concreto circunstancionalismo, nenhuma censura merece o despacho reclamado ao perspectivar, em primeira linha, o recurso como dirigido ao Tribunal da Relação e, consequentemente, ao nem sequer convidar o requerente a fazer as indicações indispensáveis à apreciação dos pressupostos específicos do recurso para o Tribunal Constitucional (nº 5 do artº 75º-A da LTC).
De todo o modo sucede que o reclamante nem agora, na fase de reclamação, supriu tais deficiências. Ficou apenas certo que, afinal, pretendia recorrer para o Tribunal Constitucional. As demais deficiências permanecem e com elas a impossibilidade de apreciar os pressupostos específicos do recurso de constitucionalidade, como seria indispensável ao provimento da reclamação.
Com efeito, fazendo a decisão caso julgado quanto à admissibilidade do recurso, nos termos do nº 4 do artigo 77º da Lei nº 28/82, é pressuposto do provimento da reclamação que estejam reunidas todas as condições para que o Tribunal Constitucional possa resolver definitivamente, no momento em que a aprecia, sobre a admissibilidade do recurso. Daí que o reclamante, quando não lhe tenha sido dada oportunidade de supri-las perante o tribunal a quo, tenha de aproveitar a reclamação para colmatar espontaneamente as deficiências do requerimento que possam obstar à admissão do recurso, sob pena de ver o indeferimento confirmado.
5. - O que antecede seria suficiente para a improcedência da reclamação. Mas a isto acresce uma razão, se assim pode dizer-se, ainda mais definitiva.
O despacho reclamado admitindo – num plano de apreciação subsidiária, já o dissemos - a hipótese de o recorrente pretender interpor recurso para o Tribunal Constitucional, considerou o recurso inadmissível por não esgotamento dos recursos ordinários, nos termos do nº 2 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
O reclamante não contesta que no caso coubesse recurso ordinário. O que afirma é que devem considerar-se esgotados os recursos ordinários, por renúncia (Cf. a disposição extensiva do conceito de esgotamento dos meios de recurso ordinários constante do nº 4 do artigo 70º da Lei nº 28/82, que o reclamante não refere mas que teve em mente). Para tanto, sustenta que, embora não tenha renunciado expressamente ao recurso ordinário, deve ser como tal interpretado o recurso para o Tribunal Constitucional no “termo do prazo”.
Mas, também por esta via, sem razão.
A renúncia tácita ao recurso é a que deriva da prática de qualquer facto inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer (art.681º/3 do CPC). Transpondo este conceito para a hipótese versada, a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional não é, seja de modo geral, seja no caso particular, um facto concludente inequívoco da vontade de não interposição de recurso ordinário (hoc sensu). Que não tem, em geral, esse significado inequívoco resulta do próprio sistema legal, designadamente da conjugação do nº
2 e do nº 4 do artigo 70º da Lei n.º 28/82. Não teria sentido útil, seria uma previsão legal redundante – que o intérprete não deve presumir; cf. art.9º/3 do Cod. Civil –, fazer depender a admissibilidade de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade de renúncia ao recurso ordinário ( art.º 70º/4) se a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional valesse ipso facto como renúncia àquele outro recurso. E que o não tem no caso concreto está já demonstrado pelo que acima se disse sobre a interpretação do requerimento de fls. 52, que levou o tribunal a quo a, acertadamente, solucionar a ambiguidade no sentido de que o ora reclamante pretendia interpor recurso para o Tribunal da Relação.
6. - Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação e condena-se o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 13 de Janeiro de 2004
Vítor Gomes Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida