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Procº nº 520/2003.
3ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Em 14 de Julho de 2003 o relator lavrou nos vertentes autos a seguinte decisão:
“1. O A. impugnou judicialmente a decisão, tomada em 17 de Junho de 2002 pelo Delegado Distrital da Direcção Geral de Viação, que lhe aplicou a coima de € 120 por infracção ao disposto no nº 1 do artº 82º do Código da Estrada, tendo, no petitório da impugnação, efectuado, para o que ora releva, as seguintes asserções:
‘............................................................................................................................................................................................................................................
20. - Ora, como é bom de ver, o n.º 9 do artigo 156.º do Código da Estrada, numa leitura conforme à Constituição, não autoriza a autoridade recorrida a ter como efectuada a notificação naqueles casos em que o autuado se recusa a assinar o auto de notícia.
21. - É que, uma vez mais se insiste, não se pode confundir a recusa em receber ou assinar a notificação a que se refere o n.º 9 do artigo 156.º do Código da Estrada, com a recusa em subscrever os factos constantes de um auto de notícia, sob pena de se obter uma confissão do arguido a pretexto de se pretender efectuar a notificação no acto de autuação.
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25. - Assim, entende o recorrente que a recusa em subscrever o auto de notícia não pode ser lavada à conta de recusa em receber a notificação a que se refere o artigo 155.º do Código da Estrada, sob pena de violação dos seus direitos de defesa consagrado nos n.º 10 do artigo 32.º da Constituição e no artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
.............................................................................................................................................................................................................................................. V - CONCLUSÕES
66. - Em face do exposto o recorrente formula as seguintes conclusões:
1.ª Uma interpretação do n.º 9 do artigo 156.º do Código da Estrada como a que é efectuada pela autoridade recorrida equivale, na prática, a impedir o exercício do direito de defesa na fase administrativa do processo de contra-ordenação, além de implicar uma renúncia à possibilidade de contestar os factos descritos no auto de notícia, o que importa violação do disposto no n.º 10 do artigo 32º da Constituição, bem como do disposto no artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, aplicável às contra-ordenações estradais por força do disposto no n.º 1 do artigo 150.º do Código da Estrada.
2.ª Não se pode confundir a recusa em receber ou assinar a notificação a que se refere o n.º 9 do artigo 156.º do Código da Estrada, com a recusa em subscrever factos constantes de um auto de notícia, sob pena de se obter uma confissão do arguido a pretexto de se pretender efectuar a notificação no acto de autuação.
3.ª A recusa em assinar o auto de notícia não pode ser considerada notificação para efeitos do artigo 155.º do Código da Estrada e dos artigos 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro e 32.º, n.º 10 da Constituição.
4.ª Não tendo o arguido, ora recorrente, sido notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, e no artigo 155.º do Código da Estrada, é nulo todo o processado, nos termos do artigo 119.º, alínea c) do Código de Processo Penal, e é nula a decisão impugnada, nos termos do artigo 122.º do mesmo Código, aplicável às contra-ordenações de direito estradal por força do disposto nos artigos 150.º, n.º 1 do Código da Estrada e 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
............................................................................................................................................................................................................................................’
Realizada a audiência de discussão e julgamento, veio, em 7 de Março de
2003, a ser proferida sentença, notificada ao acoimado por intermédio de carta recebida em 13 dos mesmos mês a ano, a qual julgou improcedente o recurso.
No que ao presente caso interessa, pode ler-se naquela sentença:-
‘....................................................................................................................................................................................................Mas o arguido levanta várias questões, a saber:
1 - Falta de audição do arguido na fase administrativa do processo de contra-ordenação.
A este respeito, tendo o arguido recusado a assinar o auto de notícia, entende que não foi notificado do auto de notícia.
Nos termos do artº. 156º., nº. 2 do C. Estrada as notificações efectuam-se, no acto da autuação, sempre que possível.
E não se diga, como o faz o arguido, que o facto de o autuado assinar o comprovativo de ter recebido a notificação, o impede de exercer o seu direito de defesa na fase administrativa ou impugnar a decisão administrativa.
Tal assinatura não equivale, de modo nenhum, a nenhuma confissão, nem implica uma renúncia [à] possibilidade de contestar os factos descritos no auto de notícia, como pretende o arguido, pois apenas assina (e no auto de notícia isso está bem expresso) em como recebeu a notificação por meio de triplicado do auto assinado.
Não há qualquer diminuição dos direitos do arguido, com tal assinatura, pois que a notificação não significa confissão, mas apenas dar conhecimento de um facto. Aliás, o local próprio no auto destinado à assinatura da notificação é bem explícito e não se confunde com a aceitação ou confissão dos factos constantes do auto, pois ali refere-se que a assinatura é a de confirmar que recebeu a notificação por meio de triplicado do respectivo auto.
Por isso, se o notificado se recusa a receber ou a assinar a notificação, o funcionário certifica a recusa, considerando-se efectuada a notificação, nos termos do artº. 156º., nº. 9 do C. Estrada, pois que tomou conhecimento dos factos no acto da autuação e, como tal, deve considerar-se notificado.
Ora foi o que os Srs. Agentes da G.N.R. fizeram: No auto e local próprio para o efeito certificaram tal recusa.
Assim, se o arguido se recusou a assinar a notificação, não pode agora vir a arguir a falta da notificação.
A mencionada disposição não contraria o disposto no artº. 50 do Dec. Lei nº. 433/82 de 27/10 nem sequer o nº. 10 do artº. 32º da Constituição da República Portuguesa, pois que o arguido considera-se notificado.
Não é como diz o arguido no seu item 9 da interposição do recurso que a notificação no acto só é possível quando o notificando a queira assinar. Estar-se-ia a deixar ao critério do notificando querer, ou não, ser notificado, o que não é admissível, nem tal interpretação é possível retirar-se da letra e espírito da lei.
Como já se referiu acima, a notificação não equivale a qualquer confissão nem sequer tem esse sentido, como pretende o arguido.
Por isso não têm razão de ser as conclusões 1ª a 4º formuladas a final pelo arguido.
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Da sentença de que parte se encontra transcrita recorreu o acoimado para o Tribunal da Relação de Coimbra, recurso que, porém, não veio a ser admitido por despacho exarado em 3 de Abril de 2003 pelo Juiz do Tribunal de comarca da Covilhã.
Desse despacho reclamou o acoimado para o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, o qual, por decisão de 24 de Junho de 2003, indeferiu a reclamação.
Em 26 de Junho de 2003 deu entrada na secretaria do Tribunal de comarca da Covilhã requerimento com o seguinte teor:
‘A., Advogado em causa própria, titular da Cédula Profissional n.º ----------, emitida em --- de ------ de 1991 pelo Conselho Distrital de Lisboa, onde exerce a sua actividade profissional, com escritório na Avenida -----------, -------, Lisboa, e recorrente nos autos de impugnação judicial de contra-ordenação à margem referenciados, tendo sido notificado do douto despacho do Senhor Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, que indefere a reclamação do despacho de fls. 89, que não admitiu o recurso da douta sentença de fls. 53 a 70, vem dela interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz nos termos dos artigos 70º., n.º 1, alínea b), n.ºs 2, 3 e 4 da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada pela Lei n.º 143/85, de 26 de Novembro, pela Lei n.º
85/89, de 7 de Setembro, pela Lei n.º 88/95, de 1 de Setembro, e pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro).
A norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo e a cuja apreciação se cinge o presente recurso é a constante do n.º 9 do artigo
156.º do Código da Estrada, por violação do n.º 10 do artigo 32.º da Constituição, que consagra o princípio da protecção dos direitos de audiência e defesa em processos sancionatórios, o que se invoca nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 72.º, n.º 2 e 75.º-A, n.ºs 1 e 2 da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional. Mais concretamente, a inconstitucionalidade do n.º 9 do artigo 156.º do Código da Estrada foi invocada nos n.ºs 7, 19, 20 e 25 da petição de recurso da decisão administrativa, tendo o Tribunal a quo considerado que a referida norma não contraria o n.º 10 do artigo
32.º da Constituição a fls. 67 da douta sentença recorrida’.
O Juiz do Tribunal de comarca da Covilhã, por despacho de 2 de Julho de
2003, admitiu o recurso.
2. Uma vez que tal despacho não vincula este Tribunal (cfr. nº 3 do artº 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro) e porque se entende que o recurso não deveria ter sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do artº 78º-A da mesma Lei, a vertente decisão, por intermédio da qual se não toma conhecimento do objecto da presente impugnação.
Como se viu, o ora recorrente elegeu como norma cuja apreciação pretende que fosse levada a efeito por este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa, a ínsita no nº 9 do artº 156.º do Código da Estrada, preceito que reza assim:
Artigo 156.º
Notificações
1-
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2 -
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3 -
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4 -
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5 -
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6 -
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7 -
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8 -
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9 - Se o notificando se recusar a receber ou a assinar a notificação, o funcionário certifica a recusa, considerando-se efectuada a notificação.
Contudo, como bem ressalta do petitório de impugnação da decisão administrativa que lhe impôs a coima, não foi em face à literalidade do transcrito preceito que o ora recorrente descortinou ofensa do asseguramento, em processo contra-ordenacional, dos direitos audiência e defesa do arguido, postulados pelo nº 10 do artigo 32º da Lei Fundamental.
Uma tal ofensa, na sua perspectiva, resultava da conferência, ao dito preceito, de uma dimensão interpretativa de harmonia com a qual, no caso de o notificando se recusar a assinar o auto de notícia, se considerar que, pelo mesmo, eram subscritos os factos constantes de tal auto, dessa arte se considerando também que os mencionados factos se haveriam de ter por confessados.
Esta, pois, a questão de inconstitucionalidade que, pelo acoimado, foi colocada aquando da impugnação da decisão aplicadora da coima.
Ora, a sentença desejada colocar sob a censura do Tribunal Constitucional não conferiu ao preceito em causa o sentido interpretativo que foi questionado pelo ora recorrente na peça processual consubstanciadora da impugnação da decisão que lhe aplicou a coima.
Na verdade, como inequivocamente deflui da transcrição supra efectuada, a sentença prolatada em 7 de Março de 2003 pelo Juiz do Tribunal de comarca da Covilhã não aplicou o preceito sub iudicio numa interpretação da qual resultasse que a recusa de recebimento ou de assinatura da notificação implicava a subscrição, pelo notificando, dos factos a que se reportava o auto notícia, ou a confissão do que naquele mesmo auto se continha. Aquela sentença, pelo contrário, recusou explicitamente uma interpretação em tal sentido, ao na mesma se vincar que a recusa em assinar o auto de notícia não equivalia, de modo algum, a uma confissão ou implicava uma renúncia à possibilidade de contestar os factos descritos nesse auto.
Vale isto por dizer que a peça processual querida impugnar perante o Tribunal Constitucional não procedeu à aplicação da norma (alcançada por via de um processo interpretativo) cuja enfermidade com o Diploma Básico (e nessa dimensão) foi questionada antes do seu proferimento.
Neste contexto, haverá de concluir-se que, in casu, falece um dos pressupostos do recurso a que se reporta alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, e isto independentemente da questão de saber da tempestividade do recurso interposto para o Tribunal Constitucional (cfr., quanto a este ponto, o Acórdão deste Tribunal nº 149/2002, publicado na 2ª Série do Diário da República de 29 de Maio de 2002).
Termos em que se não conhece do objecto da presente impugnação, condenando-se o recorrente nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em cinco unidades de conta”.
É da transcrita decisão que, pelo A., vem, de acordo como nº 3 do artº 78º-A da Lei nº 28/82, deduzida a presente reclamação.
Em síntese, o ora reclamante vem sustentar que, embora entenda que assiste razão na peça processual sub specie quando nela se refere que “norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo não foi concretamente aplicada pelo juiz a quo com o sentido interpretativo suscitado” pelo mesmo reclamante, já tal razão se não verifica quando naquela peça se
“concluiu que não foi posta em causa a literalidade do preceito constante do n.º
9 do artigo 156.º do Código da Estrada”, como decorre da 3ª conclusão da petição do recurso da decisão aplicadora da coima.
O Representante do Ministério Público junto deste Tribunal, ouvido sobre a reclamação em crise, veio dizer que a mesma era manifestamente improcedente, já que, cabendo ao recorrente, no requerimento de interposição do recurso, delimitar, em termos definitivos, a questão de constitucionalidade que pretende ser dirimida pelo Tribunal Constitucional, e reconhecendo o ora impugnante que a dimensão normativa por ele especificada no requerimento de interposição de recurso não foi aplicada pela decisão tomada no Tribunal de comarca da Covilhã, era obviamente irrelevante tudo o mais, nomeadamente o teor de outras alegações ou conclusões, formuladas em precedentes momentos processuais.
Cumpre decidir.
2. No requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, o ora reclamante veio, concretamente, especificar que, por seu intermédio, pretendia a apreciação da norma vertida no nº 9 do artº 156º do Código da Estrada numa dimensão interpretativa tal como aquela que foi questionada no petitório do recurso da decisão aplicativa da coima.
Ora, nesse petitório, o agora reclamante e então recorrente escreveu nos seus items 19, 20, 21 e 25 e nas «conclusões» 1.ª, 2.ª e
3.ª:
“........................................................................................................................................................................................................................................................................................
19.- Uma interpretação conforme à constituição do n.º 9 do artigo 156.º do Código da Estrada sempre exigiria que não se confundisse a recusa da confissão de factos exarados pelo autuante, com a recusa em aceitar a notificação dos factos constitutivos da alegada infracção e demais indicações mencionadas no n.º
1 do artigo 155.º do Código da Estrada, as quais devem ocorrer, como reza o corpo do n.º 1 daquele artigo, «após o levantamento do auto»
20. - Ora, como é bom de ver, o n.º 9 do artigo 156.º do Código da Estrada, numa leitura conforme à Constituição, não autoriza a autoridade recorrida a ter como efectuada a notificação naqueles casos em que o autuado se recusa a assinar o auto de notícia.
21. - É que, uma vez mais se insiste, não se pode confundir a recusa em receber ou assinar a notificação a que se refere o n.º 9 do artigo 156.º do Código da Estrada, com a recusa em subscrever os factos constantes de um auto de notícia, sob pena de se obter uma confissão do arguido a pretexto de se pretender efectuar a notificação no acto de autuação.
............................................................................................................................................................................................................................................
25.- Assim, entende o recorrente que a recusa em subscrever o auto de notícia não pode ser levado à conta de recusa em receber a notificação a que se refere o artigo 155.º do Código da Estrada, sob pena de violação dos seus direitos de defesa consagrados no[ ] n.º 10 do artigo 32.º da Constituição e no artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
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1.ª Uma interpretação do n.º 9 do artigo 156.º do Código da Estrada como a que é efectuada pela autoridade recorrida equivale, na prática, a impedir o exercício do direito de defesa na fase administrativa do processo de contra-ordenação, além de implicar uma renúncia à possibilidade de contestar os factos descritos no auto de notícia, o que importa violação do disposto no n.º 10 do artigo 32º da Constituição, bem como do disposto no artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, aplicável às contra-ordenações estradais por força do disposto no n.º 1 do artigo 150.º do Código da Estrada.
2.ª Não se pode confundir a recusa em receber ou assinar a notificação a que se refere o n.º 9 do artigo 156.º do Código da Estrada, com a recusa em subscrever factos constantes de um auto de notícia, sob pena de se obter uma confissão do arguido a pretexto de se pretender efectuar a notificação no acto de autuação.
3.ª A recusa em assinar o auto de notícia não pode ser considerada notificação para efeitos do artigo 155.º do Código da Estrada e dos artigos 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro e 32.º, n.º 10 da Constituição.
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....................................................................................................................”
Resulta, pois, do extractado que a interpretação do preceituado no nº 9 do artº 156º do Código da Estrada que, pelo ora reclamante, na ocasião em que impugnou a decisão aplicadora da coima, era tida por desconforme com a Lei Fundamental, era aquela de onde resultasse que a recusa em assinar o auto de notícia implicava que o notificando subscrevia e confessava os factos dele constantes.
E, de outro lado, como resulta da decisão ora em apreço, aquele preceito, tido na sua literalidade, não foi elegido, no requerimento consubstanciador da interposição de recurso para este Tribunal, como constituindo o respectivo objecto.
Neste contexto, e porque o sentido interpretativo conferido ao mencionado nº 9 do artº 156º do Código da Estrada não foi o acolhido na sentença intentada recorrer, não merece censura o decidido.
Termos em que se indefere a reclamação, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 19 de Setembro de 2003
Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida