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Procº nº 424/00 ACÓRDÃO Nº 220/01
1ª Secção Consº Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
I – RELATÓRIO
1. – A Câmara Municipal do Porto liquidou à firma 'M..., S.A.' por ocupação abusiva da via pública, a quantia de Esc.s: 4.096.000$000, a título de taxa e adicionais. Tendo visto indeferida a reclamação que apresentou, veio então deduzir contra tal liquidação a competente impugnação judicial.
Remetidos os autos ao Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, ali se constatou que a impugnante tinha sido entretanto condenada no pagamento de uma coima em virtude de ter sido levantada contra ela um processo de contraordenação relativamente à mesma ocupação da via pública sem licença. O Tribunal Tributário de 1ª Instância proferiu então a seguinte sentença:
'Pela análise do referido Regulamento verifica-se que, no momento da liquidação da taxa de ocupação da via pública em discussão, não continha o mesmo indicação expressa da lei habilitante dado que só, em 25 de Maio de 1997 foi aprovada, por unanimidade, a deliberação da Assembleia Municipal da C.M.P., segundo a qual no R.M.O., e apenas neste, passaria a constar a lei habilitante. O Tribunal Constitucional já se pronunciou inequivocamente que, de acordo com o disposto no artº 115º da C.R.P., os regulamentos - todo o qualquer regulamento, independentemente do órgão ou autoridade donde tiverem emanado - devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão, sob pena de padecerem de inconstitucionalidade formal, por desrespeito do citado preceito constitucional, como pode verificar-se também do acórdão de 20 de Outubro de 1999, proferido pelo Tribunal Constitucional no processo de impugnação nº 1/94, deste juízo. Assim, sem necessidade de mais análises, dado tratar-se de uma questão repetidamente afirmada na doutrina e na jurisprudência declaro, nos presentes autos, a inconstitucionalidade formal do referido regulamento, e, em consequência, a anulação do acto de liquidação nestes autos posta em causa, que não pode subsistir, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas nestes autos.'
O representante da Fazenda Pública e o Ministério Público junto do Tribunal Tributário, notificados desta decisão, vieram interpor recurso de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional, para apreciação da questão da inconstitucionalidade formal do 'Regulamento da Tabela de Taxas e Licenças ' da Câmara Municipal do Porto.
Recebidos os autos neste Tribunal, o relator do processo oficiou à Câmara Municipal do Porto 'no sentido de enviar a este tribunal, devidamente autenticado, um exemplar do Regulamento Municipal de Liquidação e Cobrança de Taxas e Licenças, com base no qual foi liquidada a taxa de Esc:
4.096.000$00, por ocupação da via pública sem licença, da responsabilidade da firma M..., S.A, relativa ao processo 1446/96, dessa Câmara, liquidação esta que está impugnada'.
Respondeu a recorrida, enviando o exemplar requerido e mais informando que, por deliberação da Assembleia Municipal, em reunião de 11 de Abril de 2000, se decidiu revogar a Observação 6ª, Secção IIª, Capítulo III da Tabela de Taxas e Outras Receitas Municipais, tendo-se deliberado 'no sentido da não aplicação dos agravamentos das taxas, relativas aos processos de liquidação em curso, sempre que uma obra ou facto tivesse sido iniciado ou praticado sem o respectivo licenciamento', pelo que a Câmara, em cumprimento de tal deliberação, procedeu 'junto do Tribunal Tributário de 1ª Instância à anulação do valor correspondente ao agravamento que incidia sobre as taxas devidas pelo licenciamento em apreço, procedendo-se assim à rectificação da liquidação'.
2. – Neste Tribunal, apenas o Ministério Público alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
'1 – A circunstância de a decisão recorrida considerar 'ilegal' a acumulação, em termos reais, da liquidação de uma taxa agravada, decorrente da falta originária de licença, e da coima decorrente da contraordenação, integrada pelo comportamento do particular que age desprovido de licença camarária bastante – reconhecendo ainda a autarquia implicitamente tal 'ilegalidade', ao requerer na instância competente a anulação e rectificação da liquidação de tal taxa – é susceptível de criar dúvidas sobre a utilidade de dirimição da questão de inconstitucionalidade formal das normas regulamentares em que assentou a liquidação impugnada nos autos.
2 – Face ao teor do documento junto aos autos, do regulamento de liquidação e cobrança das taxas e licenças municipais, editado pela Câmara Municipal do Porto e constante do edital nº 9/94, não consta qualquer menção da respectiva lei habilitante, o que determina a respectiva inconstitucionalidade formal.
3 – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade da decisão recorrida – caso se considere que subsiste utilidade na apreciação do recurso – enquanto reportado á versão publicitada através do referido edital nº
9/94.'
Tendo o Ministério Público suscitado, nas respectivas alegações, a questão prévia da inutilidade do conhecimento do recurso no que se refere ao agravamento da taxa de ocupação da via pública, foi a recorrida Fazenda Pública notificada para, querendo, responder, nada tendo dito.
Como se referiu, o representante da Fazenda Pública também interpôs recurso da decisão do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto. Porém, não apresentou alegações. Assim, por despacho do relator, foi julgado deserto o recurso interposto pela Fazenda Nacional, nos termos dos artigos 69º e 78º-B da Lei do Tribunal Constitucional e artigo 291º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTOS
3. – Cumpre antes de mais conhecer da questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
Esta questão é assim colocada pelo Ministério Público:
'Note-se liminarmente que é duvidosa a utilidade do presente recurso de constitucionalidade, no que se refere ao agravamento da taxa de ocupação da via pública, decorrente da observação 3ª ao artigo 13º do Regulamento em causa, na medida em que se considere acumulável, em termos de concurso real, a dita taxa agravada com a coima decorrente de condenação no processo contraordenacional que simultaneamente haja sido instaurado, pelo facto de a dita falta de licença camarária constituir também ilícito daquela natureza: na verdade, a decisão recorrida desde logo considerou que tal 'agravamento', inteiramente concorrente com a coima aplicável, seria 'ilegal', delineando, deste modo um fundamento alternativo – totalmente autónomo relativamente à questão de constitucionalidade suscitada – para a decretada anulação do acto de liquidação impugnado; e tal conclusão surge reforçada pelo teor do ofício de fls. 246, em que a Câmara Municipal do Porto afirma ter procedido, junto do tribunal «a quo», 'à anulação do valor correspondente ao agravamento que incidia sobre as taxas devidas pelo licenciamento em apreço, procedendo-se assim à rectificação da liquidação'.'
Importa desde logo salientar que tal questão é suscitada pelo Ministério Público unicamente na parte respeitante ao agravamento da taxa por ocupação da via pública. E, com efeito, a decisão recorrida pondera a ilação que se deve retirar do facto de, por um lado, a lei punir com uma contraordenação a ocupação da via pública sem licença e, por outro, cominar tal tipo de ocupação da via pública com um agravamento de 5 vezes o montante da taxa, coexistindo assim, no mesmo ordenamento, duas sanções para o mesmo comportamento, do que resultaria, na perspectiva da decisão recorrida, a ilegalidade do agravamento.
Este entendimento seria, de acordo com o Ministério Público, reforçado pelo facto de a Câmara Municipal do Porto ter comunicado, quer ao Tribunal Tributário de 1ª Instância quer à própria recorrida, a anulação do valor correspondente ao agravamento da taxa em questão, procedendo à rectificação da liquidação impugnada.
O Tribunal Constitucional tem uniformemente entendido que só pode conhecer do recurso de constitucionalidade se a resolução de tal questão se repercutir de alguma forma na questão substantiva apreciada na decisão recorrida, por força da natureza instrumental do recurso de constitucionalidade.
No caso em apreço, é manifesto que relativamente ao agravamento da taxa de ocupação da via pública sem licença é referido na decisão recorrida um fundamento alternativo: o da ilegalidade do agravamento, a qual, pelos vistos, foi mesmo reconhecida pela própria Câmara, que teria anulado, nessa parte, a liquidação impugnada.
O reconhecimento deste facto leva implícita esta conclusão: se, porventura, a decisão do Tribunal Constitucional implicar uma nova pronúncia do tribunal recorrido, a solução não poderia deixar de ser, de novo, a da anulação da liquidação, mas agora pelo fundamento alternativo, o que demonstrava a inutilidade do conhecimento do recurso de constitucionalidade.
Mas este aspecto da questão reporta-se apenas e tão somente à matéria do agravamento da taxa de ocupação da via pública sem licença: a questão de constitucionalidade suscitada pela recorrida e que foi acolhida na decisão de primeira instância mantém todo o interesse na parte respeitante à própria taxa de ocupação da via pública sem licença.
É certo que se pode dizer que também já não tem interesse discutir aqui este aspecto das coisas uma vez que a Câmara teria anulado a liquidação impugnada. Porém, como resulta do teor do ofício de fls.
246, a Câmara limitou-se a proceder à rectificação da liquidação, mantendo em dívida a quantia resultante da taxa de ocupação sem agravamento, relativamente à qual mantêm inteira validade as considerações respeitantes à questão de constitucionalidade suscitada.
Entende-se, por isso, que continua a ter interesse o conhecimento da questão de constitucionalidade que vem suscitada nos autos, independentemente da concordância com as razões aduzidas para não conhecimento do aspecto do agravamento da taxa em causa.
4. – Torna-se, assim, indispensável apreciar o mérito da questão de constitucionalidade que fundamentou a recusa de aplicação do Regulamento de Liquidação e Cobrança de Taxas e Outras Receitas Municipais da Câmara Municipal do Porto, na sua versão de 1994 que foi a aplicada nos autos, dado que a notificação para pagamento da taxa ocorreu em 4 de Janeiro de 1996 e
1 de Fevereiro de 1996 (a versão de 1996 teve o Aviso publicado no 'Diário da República', IIª Série, nº61, de 12 de Março de 1996, pág. 3386(33).
Face ao teor do documento junto aos autos, apensado por linha, do texto do Regulamento de Liquidação e Cobrança das Taxas e Licenças Municipais e respectiva Tabela de Taxas e Licenças, editado pela Câmara Municipal do Porto e publicitado pelo Edital nº 9/94, de 2 de Setembro de 1994, não consta qualquer menção da respectiva lei habilitante.
Ora, nos termos do nº 7 do artigo 115º da Constituição
(na versão, então em vigor, de 1992), os 'regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão'. Esta norma aplica-se a todo e qualquer regulamento, independentemente de se considerar o órgão ou autoridade de que tiverem emanado, dela decorrendo o princípio da primariedade ou precedência da lei que condiciona o âmbito, subjectivo e objectivo, do próprio regulamento.
A exigência de indicação de lei habilitante formulada pelo actual artigo 112º, n.º 8 da Constituição da República Portuguesa, visa não só disciplinar o uso do poder regulamentar, obrigando o Governo e a Administração a controlarem, em cada caso, se podem ou não emitir determinado regulamento, mas também, como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, a garantir 'a segurança e a transparência jurídicas, sobretudo relevantes à luz da príncipiologia do Estado de direito democrático' (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, pág. 516) na medida em que dão a conhecer aos destinatários o fundamento do poder regulamentar – neste sentido, ver os Acórdãos do Tribunal Constitucional, nºs 110/95 e 184/89, publicados in
'Diário da República', IIª e Iª Série, de, respectivamente, 12 de Abril de 1995 e 9 de Março de 1989, e, mais recentemente, Acórdão nº 490/2000, de 22 de Novembro de 2000, ainda inédito).
A violação do dever de citação de lei habilitante gera o vício de inconstitucionalidade formal. Como se escreveu no Acórdão nº 490/2000 citado, 'A menção do suporte habilitante, convocando a lei definidora da competência subjectiva e objectiva do regulamento, há-de ocorrer, para que não se frustre o seu próprio objectivo, no próprio texto do diploma ou, pelo menos, no entendimento de certa jurisprudência, no edital destinado a dar publicidade ao regulamento, como se ponderou no acórdão nº 1140/96, publicado no citado Diário, II Série, de 10 de Fevereiro de 1997'.
Como também este Tribunal referiu no Acórdão n.º 357/99
(publicado no Diário da República, II Série, n.º 52, de 2 de Março de 2000, p.
4255), 'não impõe a lei constitucional que a indicação da lei definidora da competência conste de um qualquer trecho determinado do Regulamento'. A Constituição exige, todavia, que a menção seja 'expressa', recusando deste modo a legitimidade de referências meramente implícitas à base legal autorizante.
Mas, ainda que se aceite que a menção da norma legal habilitante seja 'implícita' ou 'indirecta', certo é que, como se referiu, no caso em apreço, não consta nem do texto do Regulamento de Liquidação e Cobrança de Taxas e outras Receitas Municipais ou da respectiva Tabela de Taxas ou sequer do Edital que lhe deu publicidade qualquer menção da respectiva lei habilitante.
Deste modo, a falta de qualquer menção à lei habilitante determina a inconstitucionalidade formal de tal regulamento, por violação do nº7 do artigo 115º da Constituição (versão de 1992).
Assim, não pode deixar de se confirmar o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.
III – DECISÃO
Nos termos do exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar inconstitucional, por violação do nº7 do artigo 115º da Constituição
(versão de 1992), o Regulamento de Liquidação e Cobrança de Taxas e Outras Receitas Municipais e respectiva Tabela de Taxas constante do Edital nº 9/94, de
10 de Agosto de 1994, da Câmara Municipal do Porto e, em consequência, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida na parte impugnada.
Lisboa, 22 de Maio de 2001 Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa