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Procº nº 476/2003.
3ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA
1. Em autos pendentes pelo 2º Juízo Criminal da comarca de Lisboa, em que figura como arguido A. - o qual se encontra acusado pela autoria de factos que foram subsumidos ao cometimento de três crimes de emissão de cheque sem provisão, previsto e puníveis nos termos das combinadas disposições dos artigos 23º e 24º do Decreto nº 13.004, de 12 de Janeiro de
1927, na redacção conferida pelo artº 5º do Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, e 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, com referência ao artº 217º do Código Penal - arguido esse que veio a ser declarado contumaz, a dada altura, o Juiz daquele Juízo, em 24 de Março de 2003, proferiu o seguinte despacho:
“Os factos ocorreram em 8.11.91 e 13.2.92. É-lhes aplicável o disposto no CP/1982 e, designadamente, o seu regime de prescrição, que é mais favorável.
Com efeito, em face do regime do CP/1982 os factos prescreveram respectivamente em 8.11.96, 13.11.96 e 13.2.97.
A notificação do despacho que recebeu a acusação a 1.7.96 (fls. 77 verso) não interrompe a prescrição, pela razão de que o regime o CP/1982 só previa o despacho de recebimento da acusação em processo correccional e não previa o despacho de recebimento da acusação em processo comum.
O regime de prescrição do CP/1982 só estava adaptado às formas de processo do CPP/1929 e não, como é óbvio, às formas de processo do CPP/1987, que lhe é posterior. Assim, a interpretação analógica do art. 120 nº 1 al c) do CP/1982, no sentido de incluir na expressão ‘ou equivalente’ o despacho de recebimento da acusação proferido em processo comum no âmbito do CPP/1987, é inconstitucional por violar os arts. 18, nº 2 e 29 ns. 1 e 4 da CRP.
Pelo exposto, declaro inconstitucional o art 120 nº 1 al c) do CP/1982, na interpretação segundo a qual na expressão ‘ou equivalente’ se inclui o despacho de recebimento da acusação proferido no processo comum no âmbito do CPP/1987 e, em consequência, determino o arquivamento dos autos por prescrição do procedimento criminal.
Sem taxa”.
Do transcrito despacho recorreu para o Tribunal Constitucional a representante do Ministério Público junta do indicado Juízo, o que fez ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, por intermédio de tal recurso intentando a apreciação da recusa de aplicação da norma ínsita na alínea c) do nº 1 do artº 120º da versão originária do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82, “na interpretação segund[o] a qual nela se inclui o despacho de recebimento da acusação proferido nos termos do art. 311º do CPP de 1987”.
2. Determinada a feitura de alegações, rematou o Representante do Ministério Público junto deste Tribunal a por si produzida com as seguintes «conclusões»:
“1 - A decisão recorrida afastou a aplicação por inconstitucionalidade do acórdão n° 5/2001 do pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça.
2 - Esse afastamento e o seu fundamento motivaram a interposição, pelo Ministério Público, de um recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa e de outro para o Tribunal Constitucional.
3 - Como nestes casos o Tribunal tem entendido que deve ser dada prioridade ao conhecimento daquele primeiro recurso, não deve tomar-se conhecimento do objecto do presente recurso.
4 - Não implica violação do princípio da aplicação da lei penal mais favorável ao arguido a aplicação do regime dos actos interruptivos da prescrição do procedimento criminal que vigorava à data da prática do facto, em consequência de o Tribunal ter constatado que a aplicação retroactiva da lei nova, em vigor sobre tal matéria, conduziria identicamente a considerar interrompido o procedimento criminal, em nada beneficiando o arguido.
5 - Não implica qualquer raciocínio de cariz ‘analógico’ o que se traduz em qualificar, para efeito de aplicação da norma constante do artigo 120°, n° 1, alínea c) do Código Penal de 1982, o despacho a que alude o artigo 311º do Código de Processo Penal como sendo - atenta a sua estrutura e típica funcionalidade - ‘equivalente à pronúncia’, dada a similitude de natureza e função processual entre tal despacho e o que estava previsto no artigo 390° do Código de Processo Penal de 1929, e que merecia inquestionavelmente tal qualificação.
6 - Na verdade, em qualquer daqueles dois despachos está cometida ao juiz
(nomeadamente nos casos em que, como no dos presentes autos, não houve instrução) uma liminar apreciação da acusação e o saneamento do processo, assegurando o seu trânsito para a fase de julgamento - sem necessidade de exaustiva apreciação de fundamentos da acusação e de expressa descrição da matéria de facto, que caracteriza o despacho de pronúncia.
7 - Tal interpretação normativa não implica, deste modo, violação do princípio da legalidade.
8 - Pelo que, a conhecer-se do objecto do recurso, deverá o mesmo proceder”.
O recorrido não apresentou alegação.
3. Como se viu, inicia a entidade recorrente por colocar uma questão prévia atinente ao não conhecimento do objecto do recurso.
Consiste a mesma, em, tendo, do despacho ora sub iudicio, sido interpostos dois recursos, um para o Tribunal da Relação de Lisboa, e o outro o de que agora curamos, e sendo um dos fundamentos do primeiro
justamente ter aquele despacho sido proferido em contrário da jurisprudência fixada por intermédio do acórdão de fixação de jurisprudência nº 5/2001
(publicado na I Serie-A do Diário da República de 15 de Março de 2001), não se deveria, no seguimento da doutrina que se extrai do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 281/2001, tomar conhecimento do objecto do vertente recurso.
Entende-se que, efectivamente, a suscitada questão prévia tem pertinência.
Na realidade, este Tribunal, no aludido Acórdão nº
281/2001, fundamentou a decisão que aí tomou nos seguintes termos:
“...............................................................................................................................................................................................................................................................
Notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou alegações, nas quais suscitou a questão prévia da inadmissibilidade do recurso interposto para o Tribunal Constitucional. Em seu entender, tendo sido proferida uma decisão contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, haveria previamente de ter sido interposto recurso (obrigatório segundo o artigo 446º do Código de Processo Penal) no âmbito dos tribunais judiciais, só cabendo recurso para o Tribunal Constitucional, eventualmente, ‘da decisão que venha a ser proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça’. Assim resultaria do disposto no nº
5 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
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4. Na verdade, segundo o nº 5 do artigo 70º citado, ‘não é admitido recurso para o Tribunal Constitucional de decisões sujeitas a recurso ordinário obrigatório, nos termos da respectiva lei processual’.
Ora no presente recurso a decisão recorrida, afastando a aplicação do assento nº 10/00 por inconstitucionalidade, está, como resulta do disposto no nº
1 do artigo 446º do Código de Processo Penal, sujeita a recurso obrigatório por parte do Ministério Público.
Sucede, porém, que o Código de Processo Penal qualifica este recurso como um recurso extraordinário (no sentido de que é interposto após o trânsito em julgado da decisão recorrida); assim, coloca-se a questão de saber se este caso está ou não abrangido pelo citado nº 5 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
5. Para o efeito, cabe averiguar se a razão que justifica o regime previsto neste nº 5 – apenas recorrer para o Tribunal Constitucional da decisão que proferir a última palavra na ordem dos tribunais que julgaram a causa – ocorre no caso presente, e, em caso afirmativo, se deve prevalecer não obstante se tratar, por um lado, de um recurso interposto ao abrigo do disposto na al. A) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, e, por outro, de um recurso obrigatório extraordinário.
É sabido que a Lei nº 28/82 apenas impõe a prévia exaustão das vias de recurso no âmbito dos recursos interpostos ao abrigo do disposto nas als. B) e f) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, ou seja, interpostos de decisões que aplicaram norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade foi suscitada durante o processo; e que, diferentemente, abre recurso directo para o Tribunal Constitucional de decisões não definitivas (ainda susceptíveis de recurso ordinário) de recusa de aplicação de normas, pelos mesmos motivos, como é o caso presente.
Ora, quer num caso, quer no outro, a não ser interposto previamente o recurso obrigatório dentro da ordem a que pertence o tribunal que julgou a causa, pode vir a subsistir uma decisão sujeita a recurso obrigatório que versa exactamente sobre a norma julgada pelo Tribunal Constitucional; e o problema põe-se da mesma forma quando é o recurso previsto no artigo 446º do Código de Processo Penal que está em causa, apesar de ser qualificado por lei como recurso extraordinário.
Vejamos o caso, precisamente, do recurso imposto por este preceito.
A ser julgado primeiro o recurso interposto para o Tribunal Constitucional por recusa de aplicação de uma norma, se o Tribunal Constitucional confirmar o juízo de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, subsiste uma decisão contrária a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça – logo, ainda sujeita a recurso obrigatório, que não pode deixar de ser interposto.
Interposto esse recurso – e vamos admitir que chegamos ao Supremo Tribunal de Justiça –, este Tribunal, para respeitar o caso julgado formado no processo sobre a questão de constitucionalidade, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 80º da Lei nº 28/82, tem de alterar a orientação jurisprudencial que definiu, revendo o assento, sem ter tido a oportunidade de se pronunciar sobre a decisão que recusou a respectiva aplicação por inconstitucionalidade. Do ponto de vista das relações institucionais entre o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional, há-de concordar-se não ser esta a melhor solução.
Nos termos do disposto no nº 3 do artigo 9º do Código Civil, o intérprete há-de presumir, ao fixar o sentido da lei, que o legislador consagrou a solução mais acertada. E essa directriz leva-nos a não distinguir, para efeitos de aplicação do disposto no nº 5 do artigo 70º da Lei nº 28/82, entre recursos ordinários e o recurso previsto no artigo 446º do Código de Processo Penal.
...............................................................................................................................................................................................................................................................”
Ora, no caso sub specie, a verdade é que o recurso a que alude o nº 1 do artº 446º do Código de Processo Penal não teria sido (recte, ainda não teria sido) interposto (já que o recurso ordinário incidente sobre o despacho de 24 de Março de 2003 - também impugnado no presente recurso de constitucionalidade - foi dirigido, e como tal admitido, ao Tribunal da Relação de Lisboa, não se vislumbrando que, em face do que se estatui no nº 2 daquele artº 446º, o recorrente desejasse lançar mão, com a impugnação ordinária que deduziu, do recurso obrigatório de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça).
De outra banda, em rectas contas, o despacho judicial sob recurso veio, inquestionavelmente, a desrespeitar a doutrina fixada pela jurisprudência fixada por intermédio do Acórdão de fixação de jurisprudência nº
5/2001.
Impunha-se (ou impor-se-á), neste contexto, atenta a doutrina que resulta do Acórdão de que partes acima se encontram extractadas e tocantemente à interpretação que deve ser conferida à norma constante do nº 5 do artº 70º da Lei nº 28/82, que, precedentemente ao recurso de constitucionalidade, seja facultada à ordem dos tribunais judiciais que a mesma se pronuncie sobre o desrespeito do citado Acórdão de fixação de jurisprudência nº 5/2001.
4. Em face do exposto, não se toma conhecimento do objecto do presente recurso.
Sem custas, por não serem elas devidas.
Lisboa, 12 de Novembro de 2003
Bravo Serra Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida