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Processo n.º 524/03
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1.Em 15 de Julho de 2002, A., apresentou na Secretaria Geral de Injunção do Porto requerimento de injunção contra B., pelo não pagamento por este da sua factura n.º 188, de mercadoria para revenda no valor de € 330,31. À notificação ao requerido, emitida com aquelas menções em 16 de Setembro de 2002, respondeu este juntando documento comprovativo do pedido de apoio judiciário, na modalidade de nomeação de patrono e dispensa do pagamento de custas, tendo a providência de injunção sido remetida aos Juízos de Pequena Instância Cível do Porto no termo do prazo para o deferimento expresso do requerido apoio judiciário. Nomeado patrono, veio então o requerido deduzir oposição em que suscitou, designadamente, a inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, porque:
“O requerido, num processo de injunção, apenas recebe um documento de onde constam as quantias reclamadas sem qualquer outro tipo de suporte, inviabilizando uma defesa condigna e consentânea, colocando o requerente numa posição de supremacia sobre este. Nesta medida o processo de injunção, por não acautelar os direitos concedidos pela CRP, é inconstitucional.” Notificada das excepções apresentadas (inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º
269/98 e incompetência do tribunal) veio a requerente juntar a sua resposta, pugnando pela sua improcedência. Por decisão de 30 de Abril de 2003, do 2º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto, foi conferida força executiva ao requerimento de injunção, por se ter concluído pela “improcedência das excepções invocadas pelo Réu”, escrevendo-se, em resposta à invocada insuficiência do ‘documento’, que “este –
“o requerimento injuntivo” – obedece a requisitos legais, dele devendo constar não apenas as quantias reclamadas, como se refere, mas muito mais do que isso, como se colhe do disposto no art. 10º do diploma cuja constitucionalidade o Réu suscita, em ordem a que os demandados possam exercer cabalmente o seu direito de contraditório, como, aliás, o Réu fez.”
2.Insatisfeito, veio o requerido interpor recurso nos seguintes termos:
“Para o Tribunal Constitucional; Fundamento: Art. 70º, n.º 1, b), LOFCT; Norma inconstitucional: DL 269/98, de 01.09; Norma da CRP violada: Artigo 20º” Admitido o recurso com efeito meramente devolutivo, foi o recorrente convidado, nos termos do artigo 75º-A n.ºs. 5 e 6, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), por despacho do relator de 24 de Setembro de 2003,
“a indicar precisamente os elementos exigidos nos n.ºs 1 e 2 desse artigo, nomeadamente, a norma cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada e a peça processual em que suscitou a inconstitucionalidade, no prazo de 10 (dez) dias.” O recorrente respondeu que a norma cuja inconstitucionalidade pretendia ver apreciada era “o DL 269/98, de 01.09, como um todo, e mais concretamente os seus artigos 7º a 10º”, e que suscitara a sua inconstitucionalidade no requerimento de oposição à injunção. Determinada a produção de alegações, o recorrente veio juntar uma exacta transcrição das considerações que tecera, a propósito da política legislativa
(e) do Decreto-Lei n.º 269/98, na oposição à injunção, aditadas da seguinte conclusão:
“A) O DL 269/98, de 01-09, na medida em que institui o procedimento de injunção, e ao colocar o requerido numa situação de impossibilidade de apresentar uma defesa condigna e consentânea, já que este apenas recebe um documento onde constam as quantias reclamadas, viola o disposto no artigo 20º da CRP.” Nas suas contra-alegações, a recorrida defendeu a improcedência da alegada inconstitucionalidade, e, invocando o Acórdão n.º 170/92 deste Tribunal (em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22º vol., pág. 319), sustentou que a suscitação da inconstitucionalidade não fora adequada, por ser referida a todo um diploma legal, e não a normas, bem como, invocando o Acórdão n.º 543/03 (sem outra indicação), que não se justificaria o convite ao aperfeiçoamento. Concluiu assim:
“Entende-se que não se verifica qualquer inconstitucionalidade no caso em apreço, não devendo ser conhecidas as alegações do Recorrente por as mesmas carecerem de qualquer fundamentação; Assim, entende-se que, sem suscitação adequada durante todo o processo de uma inconstitucionalidade de alguma norma aplicada ao caso, não existe qualquer fundamento para interpor o apresentado recurso, nem para dele tomar conhecimento.” Cumpre apreciar e decidir, começando pela questão prévia suscitada nas alegações da recorrida. II. Fundamentos
3.Ao invocar o cabimento de uma decisão sumária, nos termos do artigo 78º-A, n.º
1, da Lei do Tribunal Constitucional, contestando a prolação de um despacho de aperfeiçoamento, a recorrida não se terá, porém, dado conta de que esses momentos processuais já tinham sido ultrapassados, sendo, pois, agora, tais pretensões inviáveis. Cabe, porém, dar conta das razões que determinaram opções opostas às que solicitou, a título prévio, nas suas alegações. Assim, quanto ao despacho de aperfeiçoamento, e ao contrário do que ocorreu no caso decidido pelo Acórdão n.º 543/03 (invocado pela recorrida e disponível em
www. tribunalconstitucional.pt), entendeu-se não ser líquido, antes de proferir tal despacho, que não pudessem vir a estar preenchidos os requisitos do recurso de constitucionalidade. E isto porque, muito embora o recorrente não indicasse no requerimento de recurso norma alguma impugnada (cfr. Acórdão n.º 376/91, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20º vol., pág. 345), a decisão recorrida, fazendo uma ponderação da constitucionalidade do Decreto-Lei n.º
269/98, de 1 de Setembro, centrara a sua atenção nas normas dos seus artigos
10º, 11º e 14º, n.º 2 (rectius, do “Regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância”, aprovado por aquele Decreto-Lei). Esta concretização normativa introduzida pelo tribunal a quo poderia, ou não, ser a correspondente ao vício de constitucionalidade diagnosticado pelo recorrente – e daí o entendimento no sentido da conveniência de um despacho de aperfeiçoamento.
4.É o seguinte o texto das normas do artigo 7º a 10º do “Regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância”, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro:
“(...) CAPÍTULO II Injunção Artigo 7.º Noção Considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro. Artigo 8.º Secretaria judicial competente
1 – O requerimento de injunção é apresentado, à escolha do credor, na secretaria do tribunal do lugar do cumprimento da obrigação ou na secretaria do tribunal do domicílio do devedor.
2 – No caso de existirem tribunais de competência especializada ou de competência específica, a apresentação do requerimento na secretaria deve respeitar as respectivas regras de competência.
3 – Havendo mais de um secretário judicial, o requerimento é averbado segundo escala iniciada pelo secretário do 1.º juízo.
4 – Podem ser criadas secretarias judiciais ou secretarias-gerais destinadas a assegurar a tramitação do procedimento de injunção. Artigo 9.º Entrega do requerimento de injunção O requerimento de injunção, num único exemplar, é entregue directamente na secretaria judicial ou a esta remetido pelo correio, sob registo, valendo, neste caso, como data do acto a do registo postal. Artigo 10.º Forma e conteúdo do requerimento
1 – Salvo manifesta inadequação ao caso concreto, o requerimento de injunção deve constar de impresso de modelo aprovado por portaria do Ministro da Justiça.
2 – No requerimento deve o requerente: a) Identificar a secretaria do tribunal a que se dirige; b) Identificar as partes; c) Indicar o lugar onde deve ser feita a notificação; d) Expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão; e) Formular o pedido, com discriminação do valor do capital, juros vencidos e outras quantias devidas; f) Indicar a taxa de justiça paga.
3 – Quando subscrito por mandatário judicial, é bastante a menção da existência do mandato e do domicílio profissional do mandatário.” Tendo, na resposta ao convite de aperfeiçoamento do requerimento de recurso, o recorrente identificado estas normas dos artigos 7º a 10º como aquelas em que,
“mais concretamente”, estaria sediada a inconstitucionalidade que queria ver apreciada, passou a ficar documentada uma (parcial) coincidência entre a questão de constitucionalidade que quis submeter a este Tribunal e aquela de que cuidara o tribunal a quo, tornando, desde logo, inviável uma decisão de não conhecimento do recurso ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional. De facto, muito embora as disposições dos artigos 11º e 14º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, respeitem a casos de recusa (do requerimento, ou de oposição da fórmula executória), e, portanto, não tenham sido aplicadas na decisão recorrida – que, justamente, validou a admissão do requerimento e lhe determinou a atribuição de “força executiva” – contribuíram, na fundamentação da decisão recorrida, para delimitar o sentido da norma do artigo 10º, e nesta se centrou a argumentação expendida pelo recorrente para invocar a inconstitucionalidade (falta de elementos para permitir “uma defesa condigna e consentânea”), correspondendo este artigo 10º também a uma das normas identificadas na resposta ao despacho de aperfeiçoamento. Sendo certo que o recorrente chegou a formular uma questão de incompetência que poderia ter acolhimento sub specie constitutionis no disposto no n.º 1 do artigo
8º (que, no mais, é indiferente ao que ora se discute), mas que nunca a formulou desse jeito, não pode agora cuidar-se dela, tal como não pode cuidar-se do disposto no artigo 9º sobre a “entrega do requerimento de injunção”, atenta a irrelevância do seu conteúdo preceptivo para a questão de constitucionalidade que foi suscitada.
5.Restam, portanto, os artigos 10º (“Forma e conteúdo do requerimento”) e 7º
(“Noção”), sendo que este, por ser “meramente qualificativo”, é insusceptível de sustentar outro juízo de constitucionalidade que não o que decorresse da incompatibilidade com a Constituição decorrente de se atribuir força executiva a um requerimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância – o que não está em causa (ou apenas estará na medida em que tal requerimento padeça do vício que lhe é assacado, isto é, de cercear os direitos de defesa, em resultado de insuficiência da sua forma e conteúdo). O que é dizer que objecto do presente recurso de constitucionalidade há-de ser, afinal, a norma do artigo 10º, por a ela se referirem as objecções de constitucionalidade formuladas, por a ela as ter feito reportar a decisão recorrida, e por o recorrente pedir a sua apreciação por parte deste Tribunal.
É verdade que atendendo a que o Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, que aprovou o “Regime” dos procedimentos em causa, só tem 8 artigos, poder-se-ia questionar a identificação das normas a que o recorrente procedeu: quereria, certamente, referir-se aos artigos do “Regime dos Procedimentos a que se refere o artigo 1º do Diploma Preambular”, anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, e não a este mesmo. Porém, a mais de tal lapso ser facilmente despistável, foi, aliás, também nesses termos que tais disposições foram referidas na decisão recorrida, o que não pode deixar de ser uma razão adicional para desculpar o lapsus calami, como aliás, é prática neste Tribunal (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 53/ 97, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36º vol., pág. 227).
6.Em decisão recente – Acórdão n.º 625/03, publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Fevereiro de 2004 – este Tribunal teve ensejo de dar conta dos traços essenciais do “Regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância”, fazendo-o nos seguintes termos:
“3 – Por intermédio do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, veio a concretizar-se a possibilidade consagrada no artigo 7º do Decreto-Lei n.º
329-A/98, de 12 de Dezembro, de, sem prejuízo da aplicação do regime do processo sumaríssimo, ser criada, por diploma próprio, uma espécie processual dotada de tramitação própria e referente a autos que corressem nos tribunais de pequena instância cível. Aquele diploma, todavia, não se circunscreveu àqueles tribunais de competência específica, vindo a concretizar o propósito estatuído no aludido artigo 7º, generalizando-o ao conjunto de tribunais judiciais e para o domínio do cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de contratos que não excedessem o valor da alçada dos tribunais de 1.ª instância ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de
17 de Fevereiro. Foi assim que veio a ser instituído o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância, publicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, revogando-se a providência de injunção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 404/93, de 10 de Dezembro. De harmonia com este novo regime, a injunção é uma providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância ou das obrigações das transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003 (cf. artigo 7.º desse regime, na redacção dada pelo diploma referido em último lugar), requerimento esse apresentado, consoante a vontade do credor, quer na secretaria do tribunal do cumprimento da obrigação quer na do tribunal do domicílio do devedor, e que, inter allia, deve indicar a taxa de justiça paga por intermédio de estampilha apropriada, de modelo aprovado por portaria do Ministro da Justiça (o que veio a suceder, no que ora interessa, por intermédio da Portaria n.º 233/2003, de 17 de Março), ou nos termos do n.º 4 dessa mesma portaria, no valor de um quarto de unidade de conta, quando o procedimento tenha valor inferior a metade da alçada do tribunal de 1.ª instância, meia unidade de conta, se o valor for igual ou superior a metade daquela alçada, ou uma unidade de conta, se o valor for igual ou superior à alçada, ou duas unidades de conta, se o valor for igual ou superior à alçada do tribunal da relação [cf. artigos 10.º, n.º 2, alínea f), e
19.º, n.º 1, do dito regime, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º
32/2003].” Está agora em causa, no presente recurso, a norma do artigo 10º na medida em que, segundo alega o recorrente, em obediência a ela recebe o requerido apenas
“um documento de onde constam as quantias reclamadas sem qualquer outro tipo de suporte”. Acontece, porém, que isto não é exacto: de acordo com o disposto na alínea d) do n.º 2 desse artigo, é necessário ao requerente “expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão”, e, no caso concreto, o conteúdo da notificação que lhe foi feita – reproduzindo, nos termos da alínea a) do artigo 13º do Regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, os elementos referidos no n.º 2 do artigo 10º do mesmo diploma – fornecia esses elementos sob a epígrafe “Observações”:
“A requerente dedica-se ao comércio de móveis e no seguimento de relações comerciais estabelecidas com o requerido, e para revenda, foi emitida a factura n.º 188, no valor de 330,31 euros que até à presente data não foi pago. O prejuízo descrito de 330,31 euros não foi ressarcido.” Ora, atendendo a que, na defesa por impugnação o requerido admitiu que “exercia a actividade comercial de venda de artigos de mobiliário”, que “adquiriu inúmeras peças para o efeito”, que se “encontram no seu estabelecimento sem que tenha comprador” e que “não tem liquidez para proceder ao pagamento dos valores em dívida”, não se vê – como não viu a decisão recorrida – “em que medida ou parâmetro viu o mesmo postergado o seu direito de defesa que constitucionalmente lhe assiste”, nem qual fosse o “suporte” de que carecia a identificação da dívida tal como foi feita, ou que, da norma impugnada pudessem ter resultado (e resultar em geral) as consequências que aponta. Conclui-se, pois, que o sentido que foi imputado como inconstitucional à norma do artigo 10º do Regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, não só não tem correspondência com a letra do preceito, como não teve aplicação na decisão recorrida, que decidiu julgar “improcedente a invocada inconstitucionalidade” justamente porque não detectou nenhuma limitação aos direitos de defesa dos requeridos na concreta situação do recorrente.
É esse juízo que agora se confirma, havendo, por conseguinte, que negar provimento ao recurso. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao presente recurso de constitucionalidade e confirmar a decisão recorrida, bem como condenar em custas o recorrente, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 21 de Abril de 2004.
Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos