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Processo n.º 801/03
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1.A., condenado pelo Tribunal Judicial da Comarca de ------- na pena única de 16 anos de prisão, resultantes do cúmulo jurídico das penas parcelares aplicáveis, e em diversas indemnizações, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, dando provimento parcial ao recurso, o absolveu do crime de detenção de arma proibida, fixando em 15 anos e 5 meses o cúmulo das penas remanescentes. O arguido interpôs então recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que, em conferência, mas com um voto de vencido, decidiu, em 27 de Fevereiro de 2003, não conhecer do recurso, por intempestivo, já que teria sido interposto “para além do termo final (com multa) do respectivo prazo”, contado a partir “do respectivo depósito na secretaria”. Veio o arguido pedir o esclarecimento e reforma da referida decisão, juntando cópia do registo e aviso de recepção demonstrativos de que a data do registo postal era anterior, invocando, em primeiro lugar, que, como, nos termos dos artigos 104º e 107º, n.º 5, do Código de Processo Penal e 150º, alínea b), do Código de Processo Civil, a data da prática do acto processual é a da efectivação do registo postal, o recurso tinha dado entrada dentro do prazo de realização dos actos com multa, mesmo aceitando-se o modo de contagem do prazo adoptado pela conferência; e, em segundo lugar, que a contagem do prazo para interposição do recurso devia iniciar-se a partir da notificação do acórdão e não do depósito da decisão, logo suscitando a inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 411º e 425º do Código de Processo Penal neste último sentido. O pedido de esclarecimento e reforma foi indeferido pela conferência, em 5 de Junho de 2003, apesar de o Ministério Público se ter pronunciado favoravelmente ao prosseguimento do recurso e de se ter mantido, na essência, a posição do Conselheiro que votara vencido a anterior decisão.
2.Veio então o recorrente:
- recorrer para o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça suscitando a nulidade da decisão com fundamento na não unanimidade dos votos da deliberação de rejeição (artigos 420º, n.º 2, 379º, n.º 1, alínea c), e
425º, n.º 4, do Código de Processo Penal) e na indevida recusa de conhecimento do recurso;
- reclamar para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça da decisão de rejeição do recurso, com os mesmos fundamentos; e
- recorrer para o Tribunal Constitucional para obter “a fiscalização concreta da constitucionalidade dos arts. 411º, n.º 1, e 425º, n.º 6, do Código de Processo Penal”. Em 15 de Julho de 2003, na sequência de anterior decisão do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por delegação do Presidente, o Conselheiro-relator indeferiu o requerimento de interposição do recurso para o Pleno das Secções Criminais. Em 1 de Agosto de 2003 o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça decidiu não conhecer da reclamação que lhe foi dirigida. Em 19 de Setembro de 2003 o Conselheiro-relator no Supremo Tribunal de Justiça decidiu não admitir o recurso de constitucionalidade, com fundamento no trânsito em julgado do acórdão de 27 de Fevereiro de 2003 e com fundamento na não aplicação do artigo 425º, n.º 6, do Código de Processo Penal, na decisão recorrida.
3.Veio então o arguido reclamar para o Presidente do Tribunal Constitucional “do despacho de não admissão do recurso interposto”, tendo o Ministério Público junto deste Tribunal promovido que fossem certificadas as datas de notificação ao arguido dos acórdãos proferidos em 27 de Fevereiro de 2003 e em 5 de Junho de
2003. Isso feito, o Ministério Público no Tribunal Constitucional pronunciou-se nos seguintes termos:
“O recurso do constitucionalidade foi interposto tempestivamente, nos 10 dias subsequentes à notificação da decisão que rejeitou o pedido de reforma/esclarecimento, deduzido pelo arguido: na verdade, por força do preceituado no 686º, n.º 1, do CPC, é evidente que a simples improcedência de tal pretensão não preclude o regime ali claramente estabelecido, apenas se iniciando o prazo de interposição do recurso para este Tribunal com a notificação ao interessado da decisão proferida sobre o requerimento de aclaração e reforma do precedente acórdão. Verificam-se, por outro lado, os pressupostos do recurso de constitucionalidade interposto pela ora reclamante – não lhe sendo exigível a suscitação antecipada da questão de constitucionalidade que coloca quanto à norma do art. 411º do CPP, dado o carácter insólito e imprevisível adoptada no Supremo –, já julgada, aliás, colidente com a Constituição através do Acórdão n.º 87/03. Nestes termos, somos de parecer que a presente reclamação deverá ser julgada procedente.” Cumpre decidir. II. Fundamentos
4.Como se tem entendido no Tribunal Constitucional (v.g. nos Acórdãos n.ºs
569/95 e 515/96, publicado no Diário da República [DR], II série, de 13 de Março de 1996, o primeiro), “a circunstância de a reclamação vir endereçada ao Exmº Conselheiro Presidente deste Tribunal, sendo certo competir o julgamento da mesma à Secção (artigo 77º, n.º 1, da LTC), não torna (...) impossível o seu conhecimento (...). Na situação que aqui se configura, não tendo ocorrido admissão ou tramitação da reclamação por entidade incompetente, haverá que tratar a referência do reclamante ao Presidente deste Tribunal como mera imprecisão terminológica que de modo algum preclude o conhecimento da reclamação” (Acórdão n.º 569/95, citado). Por outro lado, nota-se que não cabe a este Tribunal, na decisão de reclamação contra a retenção ou não admissão de recurso, verdadeiramente reapreciar a fundamentação da decisão nesse sentido, mas antes, como se escreveu no Acórdão n.º 490/98 (disponível em www.tribunalcosntitucional.pt), apurar se se verificou no caso uma “indevida preterição do direito de reapreciação (...) de uma questão de constitucionalidade” (v.g. Acórdãos n.ºs 24/99, 517/99, 641/99, 46/01, 47/02,
43/03, 67/03 e 370/03, publicados, os dois primeiros, no DR, II série, de 11 de Março de 1999, de 15 de Novembro de 1999, e os outros disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt).
5.Importa, portanto, apreciar a verificação dos requisitos específicos do tipo de recurso interposto, em 24 de Junho de 2003, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, requisitos, esses, que, como se sabe, no caso são: a) Que tenha sido suscitada uma questão de constitucionalidade normativa durante o processo, ou que se esteja perante uma daquelas situações em que tal não é exigível; b) Que o juízo de (in)constitucionalidade seja relevante para a decisão da causa, por a norma impugnada ter sido aplicada pela decisão recorrida; c) Que se tenham esgotado os graus disponíveis de recurso ordinário.
6.Sem dificuldade se conclui que o terceiro requisito indicado se encontra preenchido, pois pretendeu recorrer-se de uma decisão proferida no mais alto Tribunal da ordem dos tribunais comuns. E isto, aliás, só depois de o recorrente ter requerido aclaração e reforma da decisão recorrida, de ter invocado a sua nulidade e de, em simultâneo com o recurso de constitucionalidade, se ter intentado recurso para o Pleno das suas secções criminais e reclamação para o seu Presidente. Também é evidente que a interposição destes recursos e reclamações não prejudica a interposição do recurso de constitucionalidade, como decorre do n.º 2 do artigo 75º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que, como é referido pelo Exmº. Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal, o recurso de constitucionalidade “foi interposto tempestivamente”, inexistindo outras razões para obstar à admissão do recurso de constitucionalidade que não sejam a falta de verificação dos pressupostos do recurso.
7.Quanto ao segundo requisito, é igualmente evidente que o juízo que venha a ser formulado sobre a conformidade constitucional da interpretação dada à norma do n.º 1 do artigo 411º do Código de Processo Penal (de que o prazo para a interposição do recurso se conta a partir do depósito do acórdão na secretaria e não da respectiva notificação) terá repercussão na decisão de que se pretendeu recorrer, qualquer que seja o entendimento que venha a prevalecer sobre a aplicação, ou não, na decisão recorrida, do n.º 6 do artigo 425º do Código de Processo Penal (matéria de que adiante se cuidará). Tal norma foi, na verdade, aplicada pelo acórdão de 27 de Fevereiro de 2003, que rejeitou o recurso.
8.Resta, portanto, apreciar se o requisito da suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo impede a admissão do recurso de constitucionalidade. Ora, com efeito, a inconstitucionalidade não foi suscitada “durante o processo”, no sentido de o ter sido antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo “sobre a matéria a que tal questão de constitucionalidade respeita” (Acórdão n.º 90/85, publicado no DR, II série, de 11 de Julho de 1985), já que só o foi no momento em que foi apresentado o requerimento de aclaração/reforma da decisão recorrida (cfr. Acórdão n.º 62/85, publicado no DR, II Série, de 31 de Maio de
1985). Porém, não era exigível que tivesse sido suscitada antes: como bem refere o Ministério Público neste Tribunal, trata-se aqui de um daqueles casos em que tal
ónus é de afastar por não se poder de exigir ao recorrente que antevisse a possibilidade de a norma em causa – a do artigo 411º, n.º 1, do Código de Processo Penal – ter sido aplicada com o sentido em que o foi (cfr., v. g. os Acórdãos n.ºs. 61/92, 569/95 e 595/96, publicados, respectivamente, no DR, II Série, de 18 de Agosto de 1992, de 13 de Maio de 1996 e de 22 de Julho de 1996). E isto porque não foi sequer ponderada a data da notificação do expediente ao recorrente, tendo, consequentemente, o dies a quo para a contagem do prazo sido fixado de forma inusitada (cfr., aliás, no sentido da inconstitucionalidade de entendimento normativo próximo, relativo ao preceito em causa, o Acórdão n.º
87/03, deste Tribunal Constitucional, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
9.Estão portanto preenchidos os requisitos para que se conheça do recurso interposto no que diz respeito ao n.º 1 do artigo 411º do Código de Processo Penal. Já quanto ao n.º 6 do artigo 425º do Código de Processo Penal (“O acórdão é notificado aos recorrentes, aos recorridos e ao Ministério Público”, na redacção do Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro), a mais de o Conselheiro-relator no Tribunal a quo ter entendido, no despacho de sustentação, que tal norma não foi aplicada na decisão recorrida, não foi esclarecido o sentido em que, segundo o recorrente, seria inconstitucional (não sendo isso decorrente nem do seu teor, nem do modo como tenha eventualmente sido aplicada nos autos), nem, portanto, um juízo que viesse a ser formulado sobre a conformidade ou desconformidade constitucional de tal norma se repercutiria no sentido da decisão recorrida. Tal norma ficará, pois, fora da apreciação do Tribunal Constitucional por, em relação a ela, não estarem preenchidos os requisitos para o seu conhecimento. III. Decisão
Pelos fundamentos expostos decide-se deferir a reclamação apresentada e determinar a admissão do recurso de constitucionalidade, nos termos referidos.
Lisboa, 19 de Dezembro de 2003 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos