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Proc. n.º 546/03 TC - 1ª Secção Rel.: Cons.º Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 - Nos autos de recurso supra identificados em que é recorrente A. foi proferida a seguinte decisão sumária:
'1 - A., com os sinais dos autos, recorre para este Tribunal ao abrigo do artigo
70º n.º 1 alínea b) da LTC da sentença de fls. 28 e segs. pretendendo a apreciação da 'inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 825º do Código de Processo Civil, dado que tal como foi posterga o direito de o cônjuge do executado ser citado inicialmente para a acção executiva quando a nomeação à penhora recaia sobre bens comuns'.
Admitido o recurso no tribunal a quo e remetidos os autos a este Tribunal, ordenou o relator a notificação da recorrente para esclarecer qual a interpretação normativa cuja constitucionalidade pretendia ver apreciada.
A recorrente respondeu ao convite nos seguintes termos:
'.............................................................................................................
Na execução que seja instaurada contra um só dos cônjuges só podem ser penhorados bens comuns do casal, desde que o exequente ao nomeá-los requeira a citação do cônjuge daquele que é o executado para, querendo, requerer a separação de bens ou, caso, esta esteja pendente, a fazer prova dessa mesma pendência.
Este é que basicamente estabelece o n.º 1 do artº 825º do CPC que, no entendimento da ora recorrente, retrata de forma clara e precisa o pensamento do legislador. Assim,
A interpretação dessa norma, inibinativa, é a de que o exequente para penhorar bens comuns do casal previamente deverá requerer a citação do cônjuge- não devedor para, querendo, requerer a separação ou fazendo prova desta pendência. Ora,
O Tribunal de 1ª Instância, salvo melhor entendimento, não apreciou no caso vertente sequer a aplicação deste normativo, não obstante esta matéria ter sido suscitada em tempo e se oportuna.'
Cumpre decidir.
2 - Resulta dos autos:
-(Jornal) B., requereu, como dona , sacadora e legítima portadora de uma letra de câmbio aceite por C., execução para pagamento de quantia certa
(264.392$00).
- A exequente nomeou à penhora saldos de contas bancárias, em dois bancos, do executado.
- A ora recorrente, cônjuge do executado, veio deduzir embargos de terceiro, alegando, em síntese, ser contitular da conta bancária cujo saldo fora penhorado e de não sido requerida a sua citação, como o impunha o artigo 825º n.º 1 do CPC; estaria vedado à exequente nomear à penhora bens comuns do casal sem terem sido penhorados bens próprios do executado, que os tinha.
- Os embargos foram rejeitados por sentença documentada a fls. 10 e segs. de onde se extracta o seguinte trecho:
'No caso 'sub judice' dúvidas não existem de que a embargante tem a qualidade de terceiro uma vez que não é exequente nem executada no processo em que a penhora foi efectuada, não figura como devedora no título executivo, nem representa quem nele se obrigou (o executado).
Porém, embora esteja indiciariamente demonstrado pelos documentos juntos a fls. 4 e 5 que a embargante é contitular da conta bancária em que se realizou a penhora em causa, também resulta claro da declaração do banco, a fls.
21 dos autos de execução apensos, que tal penhora incidiu apenas sobre a quota-parte do executado sobre o saldo existente naquela conta à data da penhora, sendo que a penhora foi no valor de 320.000$00 e em 01/05/2001 o saldo da conta era de 1.054.415$00, só tendo sido reduzido em 02/05/2001, quando o executado procedeu ao levantamento da quantia de 600.000$00 em numerário (cfr. fls. 14).
Por outro lado, resulta também claro da prova já produzida nos autos e apensos que a dívida exequenda resultou da publicação de anúncios pelo executado no B., no âmbito do exercício da sua actividade profissional e obviamente no interesse comum do casal, pois que é da publicitação e do exercício dessa actividade profissional que provêm, pelo menos em parte, os rendimentos do casal, pelo que, os bens comuns do casal sempre teriam que responder pelo pagamento dessa dívida (cfr. arts. 1691 e 1695º do Cód Civ.)
Assim e sem necessidade de outras considerações, entendemos que não existe probabilidade séria da existência de direito da embargante que seja incompatível com a realização da penhora em causa.'
3 - No recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC a interpretação normativa (quando é o caso) questionada tem que necessariamente corresponder à que foi feita na decisão recorrida e constituiu fundamento determinante do julgado.
Por outro lado, uma eventual decisão do recurso favorável ao recorrente há-de imperativamente reflectir-se na decisão impugnada, o que leva este Tribunal, em jurisprudência constante, a julgar inúteis os recursos em que só é posta em causa a constitucionalidade da norma em que assentou um dos fundamentos daquela decisão, quando nela se aduzem fundamentos alternativos.
No caso, é desde logo de assinalar que a própria recorrente reconhece que a sentença recorrida não faz apelo à norma em causa, sendo certo que a interpretação normativa questionada pressupõe que se procedeu à penhora de bens comuns.
Não será, no entanto, exactamente assim.
Com efeito, pode entender-se que, no segundo fundamento da decisão impugnada, parece implícita a aplicação de tal norma, no ponto em que se refere que, dada a natureza da dívida, sempre responderiam bens comuns do casal e implicitamente se não reconhece a exigência de requerimento de citação do cônjuge do executado; e, a ser assim, nada obstaria ao conhecimento do objecto do recurso.
A verdade, porém, é que no primeiro fundamento - que na economia da decisão, seria bastante para rejeição dos embargos - já o enquadramento da questão é diferente: aí o que se releva não é já a penhora em bens comuns, mas a penhora apenas da quota parte do executado no saldo da conta bancária penhorado.
E a propósito deste fundamento - alheio à problemática da penhora de bens comuns do casal - não põe a recorrente em causa qualquer questão de constitucionalidade no presente recurso.
O que significa que, mesmo a julgar-se procedente a alegação de inconstitucionalidade feita pela recorrente, sempre se poderia manter a rejeição dos embargos, com o aludido primeiro fundamento, ou seja o facto de se não terem atingido bens comuns.
Tanto basta para, pelas razões apontadas, para se julgar inútil o conhecimento do objecto do presente recurso.
4 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não conhecer do objecto do recurso, por inutilidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 Ucs., sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga.'
Desta decisão vem agora a recorrente reclamar para a conferência, expondo o seguinte:
'Sustenta a douta decisão ora reclamada que a questão da inconstitucionalidade suscitada nos presentes autos não terá incidência prática na decisão impugnada, tornando-se assim inútil a sua apreciação e, por isso inadmissível.
Ora, com todo o respeito, o recorrente entende, salvo melhor opinião, que o que está em causa é a penhora de um saldo de uma conta bancária de depósitos à ordem com titularidade plural, em que a movimentação é passível de ser efectuada por qualquer dos titulares, independentemente da propriedade das verbas ali depositadas.
Donde resulta que a falta de citação prevista no artº 825º n.º 1 do CPC, a norma cuja constitucionalidade resulta violada na interpretação dada na decisão sob recurso, é de capital importância, pois que posterga absolutamente os direitos de movimentação dessa conta pela recorrente, sua titular, podendo induzi-la de forma inadvertida à prática de ilícitos penais e sofrer consequências administrativas por via de emissão de cheques sem provisão bastante.
Com uma influência imediata e relevante na decisão impugnada, pois que a interpretação inconstitucional dada tem influência directa na outra parte da decisão judicial em causa, sobre os embargos deduzidos.'
Cumpre decidir.
3 - A decisão sumária reclamada que julgou o recurso inútil assenta, antes do mais, no que constitui jurisprudência firme deste Tribunal: o imperativo de se poder reflectir na decisão impugnada o eventual julgamento de inconstitucionalidade da norma ou da interpretação normativa em causa.
Isto conduz, em geral, nos casos em que a decisão impugnada assenta em fundamentos alternativos, à inutilidade do recurso quando a questão de inconstitucionalidade suscitada se reporta apenas a um daqueles fundamentos. Com efeito, um eventual julgamento de inconstitucionalidade, nestas situações, não afectará à decisão recorrida, uma vez que ela sempre se manterá pelo fundamento
(alternativo) que ficou incólume.
No caso, a interpretação questionada pela recorrente tinha como pressuposto a consideração de que a penhora efectuada incidira sobre bens comuns do casal.
Ora, admitiu-se na decisão sumária reclamada que, implicitamente, um dos fundamentos da rejeição dos embargos assentara, de facto, na qualificação do saldo da conta bancária sobre que recaíra a penhora como bem comum.
Simplesmente, reconheceu-se na mesma decisão que a sentença rejeitara os embargos também considerando que a penhora incidira apenas na quota parte do executado no referido saldo, não suscitando aí a recorrente qualquer questão de inconstitucionalidade.
Na sua reclamação, a recorrente nada diz sobre este fundamento da decisão sumária, limitando-se a chamar a atenção para as dificuldades que futuramente poderão surgir na movimentação da conta bancária.
Certo, porém, é que, no caso, o julgamento da utilidade do recurso de constitucionalidade passa unicamente pela 'antecipação' do que, em consequência de um eventual julgamento de inconstitucionalidade, possa contender com a decisão - de rejeição ou de procedência - dos embargos. E, neste aspecto, a conclusão da decisão sumária reclamada é inatacável: os embargos sempre seriam rejeitados.
3 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão decide-se indeferir a reclamação
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs, sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga.
Lisboa, 19 de Dezembro de 2003
Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida