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Proc. nº 88/2001
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. F... instaurou, junto do Tribunal Judicial de Cascais, acção com processo ordinário contra M..., para execução específica de um contrato promessa de compra e venda de uma fracção autónoma.
O Tribunal Judicial de Cascais, por decisão de 22 de Fevereiro de
1999, considerando o contrato-promessa válido, 'enquanto negócio fiduciário' cum creditore, julgou improcedente a acção, absolvendo a ré do pedido, e condenando o autor por litigância de má fé.
Nas peças processuais apresentadas, não foi suscitada qualquer questão de constitucionalidade ou de legalidade normativa.
2. F... interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa da decisão de 22 de Fevereiro de 1999.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 28 de Março de 2000, considerou que houve abuso de representação por parte da representante da ré e negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida. Mais uma vez, não foi suscitada qualquer questão de constitucionalidade ou de legalidade normativa.
3. F... interpôs recurso do acórdão de 28 de Março de 2000 para o Supremo Tribunal de Justiça.
Nas respectivas alegações, o recorrente afirmou o seguinte:
17. Tal figura jurídica de negócio fiduciário cum creditore, conhecida, aceite e aplicada na sentença da 1ª instância, nunca foi invocada nem defendida nas instâncias antes daquela sentença, não tendo sido, pois, dada oportunidade ao recorrente de sobre ela se pronunciar, pelo que estamos perante uma 'decisão surpresa', com ofensa do princípio do contraditório, da igualdade e do direito de defesa, violando-se, dessa forma, o disposto nos arts. 13°, 18 e 20° da Constituição e 3° e 3° A do C.P .Civil.
Nas conclusões das alegações, recorrente reiterou o que havia afirmado, do seguinte modo: A. Entre recorrente e recorrida foi celebrado o contrato-promessa de compra e venda com recibo de sinal, em 12 de Janeiro de 1989, relativamente à fracção letra 'Q', identificada nos autos, pelo preço de 15.000.000$00. B. Nos termos desse documento o recorrente manifestou vontade em adquirir essa fracção. C. O recorrente fez entrega à legítima procuradora da recorrida das quantias de 500.000$00 e de 14.500.000$00, a título de sinal e integral pagamento do preço da referida compra e venda. D. As partes não prescindiram expressamente da execução específica do dito contrato-promessa. E. A procuração da recorrida foi passada em 14/2/86 na Secretaria Notarial de Cascais, a favor da procuradora A..., nos precisos termos em que dela constam e que se dá por reproduzida. F. Tais factos dados como provados estão em perfeita contradição com o também provado em que o contrato-promessa fora efectuado como garantia prestada por A... ao recorrente de um empréstimo constituído junto deste. G. Igual contradição se verifica na matéria dada como provada, em que por um lado, o recorrente e a A... tiveram vários negócios entre eles e, por outro, na resposta ao quesito 27, o recorrente não fizera qualquer negócio com a tal senhora A.... H. O articulado superveniente não observou as disposições legais e processuais aplicáveis tendo como único intuito apresentar uma dada notícia que seria mais tarde para ser 'confirmada' por uma testemunha ex-empregada da procuradora da recorrida, que com aquela se havia incompatibilizado, tudo bem preparado e delineado para se atingir o objectivo final. I. Concorda-se com o entendimento da douta sentença da 1ª instância em que não houve negócio simulado. J. Contudo, já não se aceita como juridicamente válida a afirmação de que terá havido entre recorrente e a procuradora da recorrida negócio 'fiduciário cum creditore' , porque legalmente impossível, dado o princípio da tipicidade em direitos reais. K. E tal figura nunca foi antes alegada e reconhecida nas instâncias, verificando-se uma verdadeira decisão surpresa, com ofensa dos direitos de defesa e princípios do contraditório, e da igualdade (Constituição, arts. 13°,
18°, e 200 e C.P.Civil, arts. 3° e 3° A). L. Tendo, por isso, havido condenação em objecto diverso do pedido sendo, assim, nula a sentença (art. 668°, nº 1, do C.P.Civil). M. Igualmente, se aplica o regime expendido nas 2 últimas conclusões anteriores, com a nulidade consequente do Acórdão recorrido, quando a Relação veio a conhecer da figura de 'abuso de representação' e a ineficácia do negócio, sendo que a recorrida se encontrava legal e legitimamente representada no negócio, actuando com o recorrido sempre dentro dos limites dos poderes que lhe foram concedidos na procuração em causa. Nestes termos, deve ser revogado o douto Acórdão recorrido e a sentença da 1ª instância que o mesmo confirmou, seguindo-se os demais trâmites legais, até final. Assim se fará justiça.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 11 de Janeiro de 2001, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
4. F... interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão de 11 de Janeiro de 2001, ao abrigo das alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição e da legalidade dos artigos 722º, nº 2, do Código de Processo Civil e 405º do Código Civil, tal como foram interpretados e aplicados pelas instâncias, afirmando na resposta ao despacho proferido ao abrigo do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, ter suscitado tais questões nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
A Relatora proferiu Decisão Sumária no sentido do não conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade, uma vez que não foi suscitada durante o processo qualquer questão de constitucionalidade ou de legalidade normativa.
5. F... vem agora reclamar para a Conferência, nos termos do artigo
78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, afirmando o seguinte: Efectivamente, nas suas Alegações de Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente entendeu ter havido violação dos direitos de defesa e dos princípios do contraditório e da igualdade, por efeito de uma decisão surpresa, quer quanto à figura de negócio fiduciário 'cum creditore' considerada na sentença de 18 instância, quer quanto à figura de 'abuso de representação' e da ineficácia do negócio conhecidos pela Relação. Foram, então, invocados os artigos constitucionais violados: artºs 13°, 18° e
20° da C.R.P ., tal como os artºs 3° e 3° A do C.P.C.. No requerimento de interposição do recurso para este Venerando Tribunal, foi expressamente alegado que haviam sido violados aqueles citados artigos da Constituição (13°, 18° e 20°), considerando, ainda, a ilegalidade e inconstitucionalidade das normas efectivamente aplicadas no Acórdão da Relação de Lisboa e do Supremo, concretamente, o art. 722°, n° 2 do C.P .Civil e o art.
405° do C.Civil, na interpretação que lhes foi dada pelos referidos Acórdãos. Ora, tal como este Venerando Tribunal já tem entendido, por diversas vezes, tratando-se de 'decisão surpresa', não é possível antes da respectiva decisão, invocar a ilegalidade ou inconstitucionalidade de quaisquer normas, tal como aconteceu no caso 'sub judice'.
A reclamada pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre decidir.
6. O reclamante sustenta que foi proferida 'decisão surpresa', quer pela 1ª instância quer pelo Tribunal da Relação de Lisboa, relativamente 'à figura do negócio fiduciário ‘cum creditore’' e 'à figura de ‘abuso de representação’', respectivamente. Nessa medida, o reclamante considerou não ter sido 'possível antes da respectiva decisão, invocar a ilegalidade ou inconstitucionalidade de quaisquer normas'.
Ora, tal afirmação em nada colide com o fundamento da Decisão Sumária reclamada. Na verdade, a presente reclamação somente confirma que o Tribunal Constitucional não pode tomar conhecimento do objecto do presente recurso, por manifesta falta dos respectivos pressupostos processuais.
Com efeito, resulta com clareza do que o reclamante sustenta que no momento em que interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça já havia sido confrontado com as decisões que apreciaram a questão decidenda no que respeita
às figuras do negócio fiduciário 'cum creditore' e do 'abuso de representação', podendo então suscitar as questões de constitucionalidade e de legalidade normativas que considerasse pertinentes, pelo que tal seria exigível.
O Supremo Tribunal de Justiça não proferiu, pois, qualquer 'decisão surpresa' quanto a tais matérias, tendo apenas confirmado o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.
Como se demonstrou cabalmente na Decisão Sumária reclamada, o reclamante não suscitou perante o Supremo Tribunal de Justiça (antes, portanto, da prolação do acórdão de 11 de Janeiro de 2001) qualquer questão de legalidade ou de constitucionalidade normativa, quando é manifesto, como se viu, que o podia, e por isso devia, fazer. Não se verificam, nessa medida, os pressupostos processuais dos recursos interpostos, pelo que improcede a presente reclamação.
7. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a Decisão Sumária reclamada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs. Lisboa, 23 de Maio de 2001 Maria Fernanda Palma Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa