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Processo n.º 651/99
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. C... deduziu, por apenso aos autos de providência cautelar de ratificação de embargo de obra nova a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Almada,
'incidente de falsidade da parte da acta de fls. 110, relativamente ao despacho datado de 4.9.91' contra A... e D... alegando, entre o mais, que 'em 4.9.91 foi ditada para a acta parte da matéria dada como provada, a qual se encontra aí omissa, e também não corresponde ao conteúdo do despacho de fls. 111, de 5.9.91, que contém a mais os quatro últimos parágrafos'. Por sentença proferida em 2 de Julho de 1997, foi o incidente de falsidade julgado improcedente e o requerente condenado como litigante de má fé, porquanto
'não só não se provou a versão do requerente, como se veio a provar o contrário do alegado por si, isto é, ficou assente que, afinal, na presença dos mandatários das partes presentes e da funcionária judicial, D..., foi proferido o despacho que consta da acta a fls. 110, que reproduz, na íntegra, o que se passou, do que os advogados das partes foram notificados, nenhum deles levantando qualquer obstáculo ou pedindo qualquer esclarecimento.
[...] Ao litigar da forma descrita, utilizaram aqueles Srs. Advogados o mandato que lhes foi conferido para prosseguir objectivos que não cabem no mesmo.' Desta decisão, interpôs o ora recorrente recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, formulando, nas alegações que oportunamente apresentou, conclusões sustentando que
'o Tribunal Colectivo interpretou restritiva e inconstitucionalmente o disposto no art.º 564º do CPC – hoje revogado – violando o direito de acesso à Justiça no seu alcance mais amplo – art.º 20º da Lei Fundamental – porque impediu a reapreciação da matéria factual na 2ª Instância quando proibiu o registo, a gravação e a transcrição da audiência'. O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu em 14 de Julho de 1998 Acórdão pelo qual negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida. Inconformado, o requerente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas conclusões das alegações apresentadas repetiu o que já anteriormente defendera quanto à inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 564º do Código de Processo Civil. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 20 de Janeiro de 1999, negou provimento à revista, baseando-se, no que concerne à pretendida inconstitucionalidade, na seguinte fundamentação:
'A Relação de Lisboa decidiu que, nos termos do artigo 564º do Cód. Proc. Civil anterior, não havia gravação dos depoimentos, porque prestados perante o Tribunal Colectivo, o que não colide com o art.º 20º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que este preceito destina-se a assegurar que a nenhum cidadão possa ser coarctado o acesso ao direito e aos tribunais por insuficiência de meios económicos.
[...] O art.º 564º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil foi uma criação do Código de 1961, tendo sido adoptada, conforme notícia do Cons. Rodrigues Bastos ‘para, sem sacrificar a redução final a escrito, consentir uma gravação adicional do depoimento que não seja perante o Colectivo, para mais fiel reprodução daquele’ – Notas ao Cód. Proc. Civil., Vol. III, pág. 127. A explicação dada por Jacinto Bastos e o confronto entre as disposições consignadas nos artigos 563º e 564º, ambos do Cód. Proc. Civil anterior, permite-nos precisar que só existe registo de depoimento (escrito ou gravado) quando não seja prestado perante o Colectivo. Dito de outro modo, não há registo do depoimento (escrito ou gravado) prestado perante o Colectivo.'
2. É desta decisão que vem – por requerimento de fls. 324 e segs. dos autos, no qual se arguiu também a sua nulidade – interposto o presente recurso de constitucionalidade, com fundamento em que:
'3. A interpretação dada ao art.º 564º/1 do CPC fere o disposto no art.º 20º da CRP, pois assim o autêntico acesso à ‘justiça gravada’, em causas fraternas, fica vedado e a ‘parte não judicial’ fica desprotegida e á mercê de uma oralidade não controlada.
4. Nestes casos fraternos, sem gravação é impossível fazer prova, porque só os Juizes jogam em casa'. Terminando o recorrente sustentando que:
'por falta de julgamento de um recurso, por impossibilidade de fazer prova sem gravação neste caso fraterno e porque a interpretação dada aos artigos 650º e
654º/1 do CPC ofende os princípios da continuidade da audiência e da assistência dos Juizes e da Justiça em tempo razoável, bem como o princípio do acesso à justiça/ art.º 20º da CRP, deve ser anulado o Aresto recorrido e admitido o recurso para o TC.' Por acórdão de 18 de Maio de 1999, o Supremo Tribunal de Justiça acordou em indeferir a reclamação e em não conhecer do recurso para este Tribunal Constitucional, 'conforme flui das normas dos artigos 700º, 704º e 726º, todos do Cód. Proc. Civil revisto'.
3. Inconformado, o recorrente reclamou 'do Acórdão proferido em 18.5.99 que, além do mais, não admitiu o recurso interposto em 8.3.99, a fls. , para o Tribunal Constitucional', acrescentando, para o que o presente recurso releva, que
'2. O recurso é interposto com base nas alíneas a), b), c), f), g) e i) do art.º 70º da LTC.
3. Pretende-se que o TC aprecie a inconstitucionalidade/ilegalidade da recusa na aplicação das seguintes normas e da omissão de pronúncia das seguintes questões: a. A interpretação dada à norma do art.º 564º/1 do CPC; b. A violação do princípio da continuidade e da assistência/ art.ºs 650º e
654º/1 do CPC; c. A questão do não julgamento do recurso do despacho proferido em audiência que suspendeu o julgamento até que a testemunha Dr. António Quelhas obtivesse autorização para depor por parte da ordem dos Advogados; d. A questão de não poder ser vedado o acesso à ‘justiça gravada’ em causas em que intervêm os Mmos. Juizes, porque assim a ‘parte não judicial’ fica desprotegida e á mercê de uma oralidade não controlada; e. A questão de a prova não ter sido feita quando competia fazer-se, tendo assim o Tribunal impedido que algumas testemunhas fossem ouvidas. f. A questão da realização do julgamento em prazo desrazoável e sem processo equitativo, o que constitui incumprimento grave de um prazo público pelo próprio Tribunal e da equidade que é exigível de um Órgão de Soberania;
4. As referidas recusas de aplicação e as invocadas omissões violam as normas dos arts. 13/1, 18º, 20º, 32º/9, 203º, 204º e 205º da Lei Fundamental, porque infringem o princípio da igualdade dos cidadãos perante a Lei, e também porque nenhuma causa pode ser subtraída aos Juizes cuja competência esteja fixada na lei.
5. O reclamante tem direito a que as suas petições sejam decididas em prazo razoável e mediante processo equitativo (art.º 20º/4 da CRP)'.
4. O relator no tribunal a quo proferiu em 15 de Outubro do corrente ano o seguinte despacho:
'Admitiria reclamação para o Tribunal Constitucional se tivesse sido proferido despacho a não admitir, o que não se concede tendo em atenção o teor do acórdão de 18 de Maio de 1999 – fls. 335-337. Interpreto os sucessivos requerimentos no sentido de se pretender recurso do acórdão de 20. Jan. 99 – fls. 294-302 – para o Tribunal Constitucional, o que se admite.'
5. Notificados para produzirem alegações, vieram o recorrente e a primeira recorrida a apresentá-las, não o tendo feito a segunda recorrida. As alegações apresentadas pelo recorrente terminavam com as conclusões que seguidamente se transcrevem:
'9. Nos termos e pelos fundamentos expostos, deve: a) Julgar-se inconstitucional, por violação do artigo 20º, nº 1 da Lei Fundamental, a norma do artigo 564º, nº 1 do CPC/61, na interpretação que lhe foi dada pelo Acórdão recorrido, ou seja, de que não há possibilidade de registo de depoimento escrito ou gravado prestado perante o colectivo e, consequentemente, não é possível reapreciar recursivamente a matéria factual em
2ª Instância; b) Julgarem-se inconstitucionais, por violação das normas dos arts. 13º/1/, 18º,
20º, 32º/9, 203º, 204º e 205º da Lei Fundamental, as normas dos arts. 650º/1/,
654º/1/ e 656º do CPC/61, na interpretação que lhes foi dada pelo Acórdão recorrido, ou seja, que a audiência de julgamento não tem prazo para começar, nem para continuar nem para findar e, consequentemente, que o Tribunal Colectivo pode emparedar um processo indefinidamente à espera que as testemunhas idosas faleçam e que a composição do Colectivo se altere a favor de uma das partes; c) Julgar-se inconstitucional a realização do julgamento destes autos em prazo desrazoável e sem processo equitativo (art. 20º/4/ da Lei Fundamental).' A primeira recorrida pronunciou-se pela não inconstitucionalidade das normas impugnadas e considerou 'um falso problema' a alegada 'falta de decisão em prazo razoável' pois o que teria estado 'em apreciação era um embargo de obra nova que foi decidido em tempo útil', sendo este processo um 'apêndice resultante do descontentamento do recorrente' que se prolongou pela necessidade de 'recolher autorização de dispensa de segredo profissional.'
6. No Tribunal Constitucional foi proferido, em 5 de Julho de 2000, despacho de delimitação do objecto do recurso, notificando-se o recorrente para se pronunciar, querendo, sobre a circunscrição de tal objecto às questões de constitucionalidade normativas – e, portanto, excluindo a da citada alínea c) –, suscitadas durante o processo – e, portanto, excluindo a da citada alínea b) –, ou seja, à apreciação da questão suscitada na alínea a) das transcritas conclusões das alegações: a da conformidade constitucional do artigo 564, n.º 1, do Código de Processo Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 47 690, de 11 de Maio de 1967 (revogada pelo artigo 11º do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, em consequência do novo regime de gravação das audiências e da prova nelas produzida, previsto nos artigos 522º-A, 522º-B e 522º-C do Código de Processo Civil). Tal despacho de delimitação do objecto do recurso tinha o seguinte teor:
'1. Nas alegações que C... dirigiu, em 24 de Junho de 1998, ao Supremo Tribunal de Justiça considerou, na sua primeira conclusão, que o Acórdão impugnado (de 28 de Abril de 1998, do Tribunal da Relação de Lisboa) 'interpretou restritiva e inconstitucionalmente o disposto no artigo 564º do CPC - hoje revogado (…)'. Essa foi a única norma a que foi assacada inconstitucionalidade. Notificado do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Janeiro de 1999, manifestou intenção de recorrer para o Tribunal Constitucional, arguindo diversas nulidades e concluindo que 'a interpretação dada aos artigos 650º e
654º/1 do CPC ofende os princípios da continuidade da audiência e da assistência dos juízes e da justiça em tempo razoável, bem como o princípio do acesso à justiça (artigo 20ºda CRP) […].' Por decisão de 18 de Maio de 1999, o Supremo Tribunal de Justiça considerou não poder conhecer do recurso interposto para o Tribunal Constitucional no requerimento de reclamação do anterior Acórdão, que indeferiu. Pretendeu então o recorrente reclamar para o Tribunal Constitucional da decisão de não admissão do recurso, mas o relator, considerando não ter existido qualquer despacho nesse sentido, não admitiu a reclamação, antes interpretando
'os sucessivos requerimentos no sentido de se pretender recurso do acórdão de
20. Jan. 00 […] para o Tribunal Constitucional', que admitiu. Por último, nas conclusões das alegações produzidas no Tribunal Constitucional, veio o recorrente pedir que se julgue inconstitucional: a. a norma do artigo 564º, n.º 1 do Código de Processo Civil de 1961, na interpretação 'de que não há possibilidade de registo de depoimento escrito ou gravado prestado perante o Colectivo e, consequentemente, não é possível reapreciar a matéria factual em 2ª instância'; b. as normas dos artigos 650º, n.º 1, 654º, n.º 1 e 656º do Código de Processo Civil de 1961, na interpretação de que 'a audiência de julgamento não tem prazo para começar, nem para continuar nem para findar e, consequentemente, que o Tribunal Colectivo pode emparedar um processo indefinidamente à espera que as testemunhas idosas faleçam e que a composição do Colectivo se altere em favor de uma das partes'; c. a realização do julgamento 'em prazo desrazoável e sem processo equitativo (artigo 20º/4 da Lei Fundamental).' Há que dar oportunidade ao recorrente de se pronunciar sobre a delimitação do objecto do recurso, que, manifestamente, não pode ter a extensão resultante das conclusões das suas alegações.
2. Na verdade, antes de mais, não é possível julgar inconstitucional 'a realização do julgamento destes autos em prazo desrazoável e sem processo equitativo', como pretende o recorrente na alínea c) das conclusões das suas alegações, porque, como é consabido, 'no direito constitucional português vigente, objecto de fiscalização judicial são apenas as normas' (J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, Coimbra, 1998, p.
821). Ora, julgar inconstitucional a realização de um julgamento em certas condições é bem diferente de julgar inconstitucional uma qualquer norma, e é só isto que compete ao Tribunal Constitucional, em recurso (cfr. Acórdãos n.ºs
18/96, 282/95 e 238/94, publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 15 de Maio de 1996, de 24 de Maio de 1996 e 28 de Julho de 1994). Além disso, também as normas identificadas na alínea b) das conclusões das alegações não podem ser consideradas como objecto do recurso, por não terem sido impugnadas durante o processo: a primeira vez que se suscitou a inconstitucionalidade da norma do artigo 656º do Código de Processo Civil foi no requerimento de dedução da reclamação, a qual acabou por não ser recebida por, entretanto, ter sido admitido o recurso de constitucionalidade. Tal impugnação, posterior à intervenção do Supremo Tribunal de Justiça sobre a questão de fundo
(Acórdão de 20 de Janeiro de 1999) e, mesmo, à subsequente decisão (18 de Maio de 1998) sobre a arguição de nulidade do anterior aresto, ocorreu, pois, num momento processualmente já não idóneo para configurar o preenchimento do requisito específico do recurso interposto ao abrigo das alíneas b) e f) do n.º
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional: esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo, não pôde este formular um juízo sobre a constitucionalidade da norma em causa, e, sem um tal juízo, não pode a intervenção do Tribunal Constitucional ter lugar, como seria necessário, em via de recurso. Quanto às normas dos artigos 650º, n.º 1, e 654º, n.º 1, a solução não é diversa, muito embora a sua inconstitucionalidade tenha sido suscitada no requerimento de arguição de nulidade do primeiro Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (e de interposição de recurso de constitucionalidade, em simultâneo): é que esse também já não é, em princípio, momento idóneo para provocar um juízo de constitucionalidade por parte do tribunal a quo – cfr. Acórdãos n.ºs 1124/96,
169/93 e 61/92, publicados no Diário da República, II Série, de 6 de Fevereiro de 1997 (o primeiro) e de 18 de Agosto de 1992 (o último) e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 24 (1993), pp. 439-450 (o segundo).
É certo que o recurso foi simultaneamente interposto ao abrigo das alíneas a), b), c), f), g) e i) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, mas nem por isso em relação a tais normas se preenchem os requisitos de qualquer outro desses tipos de recurso: nas alíneas a), c), d) e i) trata-se de casos de recusa de aplicação de normas, mas há que excluir liminarmente a possibilidade de tomar conhecimento de qualquer recurso interposto ao abrigo da alínea d) – não está em causa qualquer diploma regional – ou das alíneas c) e i) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – não se invocou, nem se detecta na decisão recorrida, qualquer contrariedade a leis de valor reforçado ou a convenção internacional como fundamento de uma recusa de aplicação das normas dos artigos 650º, n.º 1 e 654º, n.º 1, do Código de Processo Civil. De resto, uma mera recusa de aplicação de normas seria insuficiente para justificar o recurso para o Tribunal Constitucional: este só pode ter lugar quando tal recusa tem por base um juízo – expresso ou implícito – de inconstitucionalidade (alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional), de ilegalidade (alíneas c) e f) do mesmo normativo), ou de contrariedade com uma convenção internacional (alínea i) da mesma disposição). Afastado liminarmente este caso, é igualmente de afastar os restantes por se não divisar – nem ter sido invocado – qualquer juízo de inconstitucionalidade ou de ilegalidade que, na decisão recorrida, tenha justificado a alegada recusa de aplicação das normas identificadas nas conclusões das alegações de recurso. Só poderá, pois, estar em causa a aplicação de normas e não a recusa da sua aplicação, pelo que, não verificado o requisito da suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo – necessário para se poder conhecer do recurso interposto ao abrigo das alíneas b) e, ou, f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro –, só restaria a possibilidade de admitir tal recurso ao abrigo do disposto na alínea g) desse normativo. Porém, nem foi cumprido o disposto no n.º 3 do artigo 75º-A, nem o convite do relator, previsto no seu n.º 5, seria, neste caso, de qualquer aval, dado que tais normas nunca foram anteriormente julgadas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional.
3. Conclui-se, portanto, que das questões de constitucionalidade suscitadas só se poderá conhecer daquelas que têm normas por objecto e, destas, só se poderá conhecer a da constitucionalidade do disposto no n.º 1 do artigo 564º do Código de Processo Civil de 1961 (actualmente revogado), por falta de verificação dos requisitos dos recursos pretendidos interpor em relação às restantes normas. Notifique-se o requerente para, querendo, se pronunciar, no prazo de 10 (dez) dias, sobre esta delimitação do objecto do recurso.'
7. Em resposta, veio o recorrente 'dizer e recorrer', em suma, que este Tribunal não devia proceder 'à delimitação do objecto do recurso', mas sim ao 'suprimento extensivo do objecto do recurso (arts. 20º e 204º da CRP)', já que 'a consciência judicial deve ser extensiva e não limitativa dos direitos fundamentais dos cidadãos', sendo que, de outra forma, o Tribunal Constitucional se 'demite do dever constitucional de responder aos argumentos do recorrente', sendo tal 'entendimento' deste Tribunal 'inconstitucional'. Cumpre apreciar e decidir: II. Fundamentos
8. A resposta do recorrente ao despacho supra transcrito não se sustenta, na sua própria formulação, nos planos constitucional ou legal, que balizam a intervenção deste Tribunal, apelando antes para fundamentos situados numa
'consciência judicial' e desconsiderando aqueles planos, pelo que não cumpre retomar aqui a questão da delimitação do objecto do recurso. Este resulta, pois, circunscrito à apreciação da constitucionalidade do n.º 1 do artigo 564º do Código de Processo Civil (na redacção do Decreto-Lei n.º 47 690, de 11 de Maio de 1967), hoje revogado, e segundo o qual:
'Gravação do depoimento
'1. Independentemente da redução a escrito, qualquer dos advogados pode requerer a gravação, em fita magnética ou por processo semelhante, do depoimento que não seja prestado perante o colectivo, desde que o requerente ou o tribunal disponham dos meios técnicos necessários para a gravação.' Nas suas alegações, considerou o recorrente que a
'interpretação constitucional da referida norma apenas pode ser aquela que deriva da eliminação pura e simples daquele inciso desnecessária e desrazoavelmente restritivo, pois qualquer dos advogados pode requerer a gravação de todo e qualquer depoimento, mesmo prestado perante o Colectivo, para efeitos de poder ter sentido útil recorrer da matéria de facto.' O que o recorrente entende conforme à Constituição é, pois, uma 'interpretação' contra legem – rectius, uma recusa de aplicação da norma, que o tribunal a quo, considerando verificada a sua hipótese, só poderia ter efectuado, aliás, com fundamento em inconstitucionalidade. No recurso da decisão do tribunal da relação de Lisboa para o Supremo Tribunal, o recorrente fundamentou a inconstitucionalidade do seguinte modo:
'A interpretação e aplicação que vêm sendo feitas pelas instâncias da norma do artigo 564º do CPC é inconstitucional, por violar o disposto no artigo 20º da CRP, por impedir o acesso à Justiça na sua vertente de reapreciação da prova pelo T.R. Lx..'
9. Ora, cabe, antes de mais, recordar que o Tribunal Constitucional já reconheceu, na 'esteira da jurisprudência da Comissão Constitucional' (Acórdão n.º 377/96, publicado no Diário da República [DR], II Série, de 12 de Julho de
1996, que cita os Acórdãos n.ºs 31/87 e 65/88, publicados no DR, IIª Série, de 1 de Abril 1987 e 20 de Agosto de 1988, e Parecer n.º 9/82, Pareceres da Comissão Constitucional, 19º vol. pp. 29 e segs.), que, da circunstância de o legislador ordinário não poder suprimir em bloco os tribunais de recurso e os recursos 'não se pode inferir todavia a existência de um ilimitado direito de recurso extensivo a todas as matérias', concluindo, citando o Acórdão n.º 275/94
(inédito), que a 'Constituição não garante, genericamente, o direito a um segundo grau de jurisdição.' O que é dizer que a reapreciação do caso pelo Tribunal da Relação de Lisboa podia, eventualmente, nem ser admitida, sem que daí resultasse necessariamente uma desconformidade com a Constituição. No caso, porém, não só houve recurso para a 2ª instância, como houve recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Pretende o recorrente que a falta de registo da matéria de facto 'impediu totalmente a reapreciação da matéria factual pela
2ª instância', mas tal não é exacto. Na verdade, pode o Tribunal da Relação: alterar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto; determinar a renovação dos meios de prova produzidos em 1ª instância (artigo 712º, n.º 2 do mesmo código); anular a decisão proferida na 1ª instância quando a repute deficiente, obscura ou contraditória em relação a pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta (nos termos do n.º
4 do mesmo artigo); e, ainda, determinar a fundamentação, em termos de prova, de algum facto essencial para o julgamento da causa, repetindo a produção da prova se esta não estiver gravada ou registada (nos termos do n.º 5 da mesma disposição legal). No caso especial do n.º 2 do artigo 722º do Código de Processo Civil, o próprio Supremo Tribunal de Justiça pode alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto pelo tribunal recorrido (n.º 2 do artigo 729º do Código de Processo Civil), podendo, ainda, determinar novo julgamento no tribunal a quo se entender que a matéria de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou se entender que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam esta
(n.º 3 do mesmo artigo). Em matéria mais sensível, como é a do processo penal (querela), e em que 'há, pois, reconhecer, como princípio, o direito a um duplo grau de jurisdição', tal dupla possibilidade de controlo (estribada, aliás, na anterior redacção, menos abrangente, do n.º 2 do artigo 712º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável, e nos artigos 646º, n.º 6, e 666º do Código de Processo Penal) foi, também, considerada 'um 'plus' de garantia, um remédio mais, contra uma decisão de um tribunal colectivo sobre a matéria de facto', mesmo onde não existia registo de prova, nem motivação das respostas aos quesitos sobre matéria de facto – veja-se o Acórdão n.º 124/90 (tirado com votos de vencido e publicado no DR, II Série, de 8 de Fevereiro de 1991), que invocou o Acórdão n.º 61/88 (publicado no DR, II Série, de 20 de Agosto de 1988) para concluir, por um lado, que 'tratando-se de matéria de facto, há razões de praticabilidade e outras (decorrentes da exigência de imediação da prova) que justificam não poder o recurso assumir o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito', e, por outro lado, que o controlo crítico da lógica da decisão 'é assegurado, desde logo e fundamentalmente, pelo facto de o julgamento ser feito por um tribunal colectivo (...) – tribunal a que, justamente, compete responder aos quesitos (...)', pelo que 'é claro que, não revertendo essas respostas à convicção subjectiva de um único julgador, apurada no silêncio duma impressão ou mesmo reflexão isolada, mas resultando de um debate e confronto mútuo dos respectivos pontos de vista (...) já aí vai uma importantíssima e decisiva garantia de passagem de tais respostas pelo crivo de um controlo crítico prévio'.
10. É certo que no Acórdão n.º 340/90 (decidido em Plenário, com votos de vencido, e publicado no DR, II Série, de 19 de Março de 1991) a maioria do Tribunal veio a afastar-se da solução antes firmada (Acórdãos n.ºs 55/85, 61/88,
207/88, 304/88 e 124/90) sublinhando na sua fundamentação que a Constituição consagrava o direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal e salientando a divergência com o regime processual civil, onde se impunha a especificação dos 'fundamentos que foram decisivos para convicção do julgador.'
– razões que não procedem neste caso. De todo o modo, nunca deixou de se invocar o Acórdão n.º 61/88 sobre as razões que justificam que o recurso em matéria de facto não assuma ' o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito' (v.gr.: Acórdão n.º 680/98, publicado no DR, II Série, de 5 de Março), nem, mesmo no domínio do direito processual penal, se chegou a considerar inconstitucionais as normas que limitam os poderes de cognição do tribunal de revista em matéria de facto, nos termos do artigo
410º, n.º 2 do Código de Processo Penal: cfr., por todos, embora com votos de vencido, o Acórdão n.º 573/98, publicado no DR, II Série, de 13 de Novembro de
1998.
11. De toda a forma, e independentemente da posição que se tenha quanto a eventuais questões de constitucionalidade semelhantes relativamente ao processo penal, tendo em conta que são 'as garantias de defesa do arguido que explicam em grande parte a especificidade do processo penal ante o processo civil' (como se escreveu no Acórdão n.º 422/99, publicado no DR, II Série, de 29 de Novembro de
1999), e que 'as prescrições tendentes à adjectivação não podem desligar-se da diversidade de institutos jurídicos de cariz, quantas vezes, acentuadamente diversificado, que pautam verbi gratia, o direito civil, o direito penal e o direito administrativo, pelo que as soluções decorrentes dessa adjectivação podem, e muitas vezes até devem, ser diferentemente perspectivadas, até tendo em conta preceitos, princípios e garantias que a própria Constituição impõe que sejam observados em determinados ramos de direito', não se divisam razões para se ser mais exigente, em termos de registo de prova e de âmbito de recurso em matéria de facto, em processo civil do que em sede de processo penal. Ora, como se escreveu no relatório preambular do Decreto-Lei n.º 44129, de 28 de Dezembro de 1961, 'o tribunal colectivo constitui ainda o meio mais idóneo de averiguação dos factos cuja realidade só pode ser alcançada através de provas sem valor legalmente tabelado'. E, tendo em conta que desde a entrada em vigor do Decreto-lei n.º 375-A/99, de 20 de Setembro, cabe às partes, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 508º-A do Código de Processo Civil optar por 'requerer a gravação da audiência final ou a intervenção do tribunal colectivo', é de supor que tal juízo mantém actualidade. O que é dizer que, como antes, no processo civil actual a intervenção do colectivo pode continuar a excluir a gravação da audiência, sem que daí decorra qualquer violação da Lei Constitucional.
É certo que o recorrente não pôde, no caso, fazer tal opção, que só veio a ser consagrada posteriormente, declarando nas suas alegações que 'prefere, de todo em todo, um juiz com gravador/filme a vinte juizes sem gravador/filme'. O que releva para o juízo de constitucionalidade normativa da norma em questão não é, porém, obviamente, a preferência subjectiva do recorrente mas sim a avaliação objectiva pelo legislador, no quadro da Constituição da República, no sentido de, antes e depois do Decreto-Lei n.º 375-A/99, considerar sensivelmente equivalente o grau de garantia proporcionado pela intervenção do colectivo e pelo registo da prova. Aliás, o registo da prova só permite – e com perda de imediação – a reapreciação da prova por um colectivo – no tribunal ad quem –, pelo é compreensível a opção do legislador, dentro da sua liberdade conformadora, de disponibilizar de imediato tal apreciação pelo colectivo no tribunal a quo, dispensando o registo. Que, na sua última intervenção sobre o assunto, o legislador tenha consagrado o direito de opção entre ambas as possibilidades, anteriormente estabelecidas em função de requisitos objectivos, não implica que a inexistência anterior de tal possibilidade de opção contenda com o invocado artigo 20º da Constituição.
III. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos decide-se negar provimento ao recurso, condenando-se o recorrente em custas e fixando a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 23 de Maio de 2001 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca (com a ressalva da posição tomada no acórdão nº 573/98) Maria Fernanda Palma (com a ressalva da posição tomada no Acórdão nº 573/98) José Manuel Cardoso da Costa