Imprimir acórdão
Processo nº 369/2004
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 2287, foi proferida a seguinte decisão sumária :
«1. Por acórdão da 2ª Vara Mista da Comarca de Coimbra, A. foi condenado na pena de seis anos de prisão pela prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 21º do Decreto-Lei n.º
15/93, de 22 de Janeiro, e na pena de 7 meses de prisão pela prática de um crime previsto e punido pelo artigo 6º da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho (detenção de arma); em cúmulo jurídico, foi-lhe aplicada a pena única de 6 anos e 3 meses de prisão. Inconformado, o arguido recorreu, sem êxito, para o Tribunal da Relação de Coimbra e, posteriormente, para o Supremo Tribunal de Justiça, que concedeu provimento parcial ao recurso através do acórdão de 11 de Fevereiro de 2004, de fls. 2208:
«Finalmente, analisemos o recurso interposto pelo arguido A.. Entende este recorrente que o acórdão recorrido é nulo por não ter apreciado a matéria de facto como devia, com violação, pois, do disposto no art. 428º, nº 1, do C.P.P. – conclusões 1 a 4; que as escutas telefónicas utilizadas como meio de prova não o poderiam ter sido – conclusões 5 a 9; e que as penas aplicadas devem ser reduzidas, a do crime de tráfico, para 4 anos e 6 meses de prisão, e substituída por multa, a pena de prisão aplicada no crime de detenção de arma. No recurso que o ora recorrente interpôs para a Relação – fls. 1804 – insurgiu-se o mesmo quanto à matéria de facto dada como provada (conclusões 1 a
7); quanto ao uso das escutas telefónicas (conclusões 1 a 6) e quanto à medida de pena (conclusões 7 a 16). No acórdão recorrido, nomeadamente a partir de fls. 1979 vº, apreciou-se a matéria de facto dada como provada, tendo em conta a prova produzida e o conteúdo das conclusões apresentadas e com tal matéria relacionada. E parece-nos que foi feita uma análise atenta, concluindo-se por manter a matéria de facto dada como provada. Sem dúvida que a Relação conhece de facto – art. 428º, nº 1, do C.P.Penal. Mas também está limitada pelo conteúdo das conclusões. Se mais não analisou foi, naturalmente, por não estar dentro do âmbito das conclusões – veja-se a conclusão 7ª a fls. 1805 e a não referência a qualquer dos vícios previstos no nº 2 do art. 410º. A norma que foi posta em xeque será apenas a do art. 127º, do C.P.P.. Não tem assim qualquer fundamento esta primeira questão. Quanto às escutas telefónicas, quer o tribunal colectivo (fls. 1703 vº e seguintes), quer a Relação (fls. 1984 vº) já se pronunciaram e em termos que não nos parece merecer censura. Dado o disposto no art. 187º, nº 1 al. b), do C.P.P., não há dúvidas de que a escuta telefónica poderia ter lugar. Teve-o e foi devidamente autorizada por despacho judicial. E também nos parece terem sido respeitadas as formalidades exigidas no art. 188º. Segundo o art. 189º, todos os requisitos e condições referidos nos art.s 187º e
188º são estabelecidos sob pena de nulidade – que não nulidade insanável. Em face do disposto no art. 120, nº 3, do C.P.P., a nulidade que pudesse ocorrer, teria que ser invocada nos termos aí previstos, sob pena de sanação. E não o foi. Logo, a ter ocorrido alguma violação ao art. 188º, estaria a mesma sanada. Improcede também esta questão. Passemos à da medidas das penas. O crime de detenção de arma, p. e p. pelo art. 6º, nº 1, da Lei nº 22/97 é punido com pena de prisão até 2 anos, ou com pena de multa até 240 dias. Diz a al. e), do nº 1, do art. 400º, do C.P.P. que “não é admissível recurso: e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracção [...];”. A propósito desta alínea, escreve Germano Marques da Silva na sua obra “Curso de Processo Penal” Vol. III, 2ª ed. fls. 325: “ A expressão mesmo em caso de concurso de infracção suscita algumas dificuldades de interpretação. A pena aplicável no concurso tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas e como limite máximo a soma das penas aplicadas aos diversos crimes em concurso (art. 77º do Código Penal). Não parece que o legislador tenha aqui recorrido a um critério assente na pena efectivamente aplicada no concurso e em abstracto é impossível determinar qual a pena aplicável aos crimes em concurso antes da determinação da pena aplicada a qualquer deles. Parece-nos que a expressão “mesmo em caso de concurso de infracção” significa aqui que não importa a pena aplicada no concurso, tomando-se em conta a pena abstractamente aplicável a cada em crimes, salvo se o Ministério Público usar da faculdade prevista no art. 16º, nº 3”. Esta tem sido também a orientação de alguma jurisprudência deste S.T.J., conforme se pode ver dos acórdãos de 13.2.03, Proc. 384/03 – 5ª; de 13.02.03, Proc. 4667/02 – 5ª e de 18.6.03, Proc. nº 1218/03 – 3ª. No acórdão proferido em Proc. 4667/02 – 5ª afirma-se a certo passo: “Qualquer que seja a pena aplicada ou aplicável em cúmulo jurídico, são as penas – cada uma delas singularmente consideradas – aplicáveis aos singulares crimes em concurso que hão de dizer da irrecorribilidade ou recorribilidade da decisão”. Quer isto dizer, em suma, que não será de admitir o recurso na parte em que se põe em xeque o tipo e a medida de pena relativamente ao crime de detenção de arma. E que dizer da pena que foi aplicada ao crime de tráfico de estupefacientes ? Tendo em conta o limite mínimo da pena fixada na lei – quatro anos de prisão –, todos os factos dados como provados, donde resulta a existência de um facto com algum grau de ilicitude, acompanhado de dolo directo, normal em tal crime, sem ocorrerem circunstâncias atenuantes, mas tratando-se de pessoa que tem trabalho garantido, que é respeitado e respeitador na sua zona, julgamos mais próxima da sua culpa a pena de 5 anos de prisão. Operando novo cúmulo jurídico das penas –
5 anos e 7 meses de prisão – julgamos, tendo presentes os factos e a personalidade do agente (art. 77º, nº 1, do C.P.) ser de fixar a pena única em 5 anos e 4 meses de prisão. Nestes termos, acordam (...)» em conceder provimento, «parcialmente, ao recurso interposto pelo arguido A., pelo que se condena na pena de 5 anos de prisão pela prática de crime p. e p. pelo art. 21º nº 1, do Dec.-Lei nº 15/93, e na pena
única de 5 anos e 4 meses de prisão».
2. Veio então A. recorrer deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para o Tribunal Constitucional, na parte em que «a) decidiu ratificar a limitação da apreciação da matéria de facto pela Relação; b) decidiu ratificar a validade das escutas telefónicas dos autos; c) e ainda decidiu não conhecer do recurso quanto
à pena parcelar aplicada pelo crime de detenção de arma proibida», ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. O recorrente pretende a apreciação da «inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo 428°, n° 1 do CPP, interpretada nos termos em que o foi na decisão recorrida, isto é, restringindo os poderes cognitivos da Relação sobre matéria de facto, por limitar o direito de recurso», em violação do disposto no o artigo
32°, n° 1 da Constituição; «da norma ínsita no artigo 188°, n° 1 do CPP, interpretada no sentido em que o foi na decisão recorrida, isto é, aceitando que o desenrolar das escutas, com excepção do despacho que as autorizou, passe à revelia do juiz, já que este não só não acompanhou a evolução das escutas, como não escolheu o transcrito, tendo sido a entidade policial que se ocupou de tal», por violação do n.º 8 do artigo 32º da Constituição; e «da norma ínsita no artigo 400°, n° 1, al. e) do CPP, quando interpretada no sentido com que o foi na decisão recorrida, isto é, quando interpretada no sentido de que uma pena parcelar integrada num cúmulo jurídico para o qual o STJ tem competência, não pode ser conhecida por esse Venerando Tribunal como pena parcelar», por violação do n.º 1 do artigo 32º da Constituição. Quanto a esta última norma, o recorrente explica que não dispôs de oportunidade para suscitar a respectiva inconstitucionalidade em momento anterior «porquanto a interpretação dada à norma na decisão recorrida foi de todo imprevisível, não podendo razoavelmente o recorrente contar com a sua aplicação. Não lhe era exigível, pois, que antevisse a possibilidade da aplicação da norma ao caso concreto, de modo a impor-lhe o ónus de suscitar a questão antes da decisão».
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. O Tribunal Constitucional não pode conhecer do presente recurso no que toca à norma constante do n.º 1 do artigo 428º do Código de Processo Penal, porque a sua aplicação não constituiu a ratio decidendi do acórdão recorrido, na parte que agora interessa, o que obsta à sua apreciação (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 187/95, Diário da República, II Série, de 22 de Junho de 1995). Com efeito, e como se pode verificar pela leitura da parte do acórdão recorrido acima transcrita, o Supremo Tribunal de Justiça não retirou do n.º 1 do artigo
428º citado qualquer limitação para o Tribunal da Relação conhecer de matéria de facto; o que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu foi que o âmbito do poder de cognição do Tribunal da Relação estava delimitado pelo “conteúdo das conclusões” do recurso perante ele interposto; e que foi por esse motivo que não se pronunciou mais amplamente sobre a decisão da matéria de facto.
4. Também não pode conhecer da norma relativa ao artigo 188º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por inutilidade. Independentemente de saber se o acórdão recorrido aplicou tal preceito com o sentido que o recorrente acusa de ser inconstitucional, a verdade é que o mesmo acórdão entendeu que o eventual desrespeito dos requisitos legalmente exigidos para a admissibilidade de escutas telefónicas provocaria nulidade sanável, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 120º do Código de Processo Penal. Não tendo sido invocada, uma eventual nulidade estaria sanada. Ora, uma vez que o recorrente não suscitou qualquer inconstitucionalidade relativa à norma aplicada para julgar sanada tal nulidade, nenhuma utilidade teria um eventual julgamento de inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 188º do Código de Processo Penal, pois não acarretaria qualquer alteração na decisão recorrida. Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental, o que implica, como se sabe, que
é condição do conhecimento do respectivo objecto a possibilidade de repercussão do julgamento que nele viesse a ser efectuado na decisão recorrida (ver, por exemplo, o acórdão deste Tribunal com o nº 463/94, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Novembro de 1994).
5. Finalmente, e no que toca à norma da al. e) do n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal, cumpre começar por observar que, tal como o recorrente reconhece, a respectiva inconstitucionalidade não foi suscitada perante o tribunal recorrido. Ora é pressuposto de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, como é o caso, que a inconstitucionalidade haja sido “suscitada durante o processo” (citada al. b) do nº 1 do artigo 70º), ou seja, colocada “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (nº 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82). Conforme o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recorrente só pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade “durante o processo” nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal com os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994). O recorrente sustenta, precisamente, que se verifica um desses casos. A verdade, todavia, é que, independentemente de saber se poderia ou não atender-se tal alegação, sempre o recurso seria manifestamente infundado quanto a esta norma.
É exacto que no nº 1 do artigo 32º da Constituição se consagra o direito ao recurso em processo penal, como uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido. Mas é igualmente exacto que a Constituição já não impõe, directa ou indirectamente, o direito a um duplo recurso, ou a um triplo grau de jurisdição. O Tribunal Constitucional teve já a oportunidade para o afirmar, a propósito dos recursos penais em matéria de facto: “não decorre obviamente da Constituição um direito ao triplo grau de jurisdição, ou ao duplo recurso” (Acórdão nº 215/01, disponível em www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia) e, em geral, por exemplo, nos seus Acórdãos n.ºs 49/2003 (Diário da República, II série, de 16 de Abril de 2003) ou 490/2003 (disponível também em
www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia).
Estão, pois, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82. Nestes termos, decide-se: a) Não conhecer do recurso relativamente às normas do n.º 1 do artigo 428º e do n.º 1 do artigo 188º do Código de Processo Penal; b) Negar provimento ao recurso, relativamente à norma da alínea e) do n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs.»
2. A fls. 2307, A. veio reclamar para a conferência, nos termos previstos no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82.
Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de que “a presente reclamação – deduzida sem que o reclamante trate sequer de indicar minimamente as razões da dissidência quanto à decisão reclamada – é manifestamente improcedente”.
3. Na verdade, o ora reclamante não apresentou qualquer fundamento para a reclamação. Assim, resta à conferência confirmar a decisão reclamada, pelos motivos dela constantes.
Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de não conhecimento do recurso relativamente às normas do n.º 1 do artigo 428º e do n.º
1 do artigo 188º do Código de Processo Penal e de negar provimento ao recurso, relativamente à norma da alínea e) do n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 18 ucs.
Lisboa, 15 de Abril de 2004 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Luís Nunes de Almeida