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Procº nº 663/2003.
3ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Em 13 de Outubro de 2003 o relator proferiu decisão com o seguinte teor:
“1. Tendo, pela 12ª Vara Cível de Lisboa, deduzido A., embargos de terceiro à execução para entrega de coisa certa que foi movida à embargante e outra por B., o Juiz daquela Vara, por despacho de 8 de Maio de 2002, indeferiu liminarmente a petição de embargos, por ter entendido, por um lado, que a embargante era «parte» na execução, já que figurava como executada e, por outro, que os embargos tinham sido extemporaneamente apresentados.
Do assim decidido agravou a embargante para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, por acórdão de 31 de Outubro de 2003, veio a negar provimento ao agravo, pois que, conquanto considerasse que os embargos não foram extemporaneamente apresentados, perfilhou a óptica segundo a qual, não tendo a embargante posição de terceiro, não lhe era lícito lançar mão do meio processual dos embargos de terceiro.
Novamente inconformada, agravou a embargante para o Supremo Tribunal de Justiça tendo, na alegação adrede produzida, formulado as seguintes
«conclusões»:
‘1ª Na execução para pagamento de quantia certa em que era executada a recorrente, vendido o bem penhorado, pertencente a outra executada, enxertou-se, a requerimento do adquirente, execução para entrega de coisa certa, com a tramitação expedita prevista pelo art. 901º do CPC;
2ª Na segunda execução, são partes, como exequente, o adquirente e, como executada, apenas a anterior proprietária do bem alienado, única a quem se dirigiram o requerimento do adquirente e a ordem jurídica de entrega;
3ª A agravante tem, necessariamente, a qualidade de terceiro, para o efeito do art.
351º, nº 1, do CPC, quer porque não é parte na causa -- na nova causa --, quer porque a realização da diligência é incompatível com direito de que é titular, como alega na petição de embargos;
4ª O douto acórdão recorrido, como o fizera o douto Despacho proferido em 1ª instância, violou, por erro de interpretação e de aplicação, os normativos indicados nas precedentes conclusões;’
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 11 de Fevereiro de 2003, negou provimento ao agravo.
Como razão de decidir, disse que o ‘acórdão recorrido não é passível de qualquer censura, na medida em que, com adequada fundamentação, recusando a qualidade de terceiro à embargante, contém a solução correcta da questão que foi chamado a decidir’, motivo pelo qual, ‘nos termos das disposições conjugadas dos arts. 713º nº 5, 749º e 762º do CPC’, se negava provimento ao recurso,
‘remetendo-se para os fundamentos do douto acórdão impugnado’.
Daquele acórdão de 11 de Fevereiro de 2003 requereu a embargante aclaração, pretensão que veio a ser indeferida por aresto de 8 de Abril seguinte.
Deste último foi arguida a nulidade pela embargante, sustentando que o mesmo não especificou os fundamentos de facto e de direito que basearam a decisão.
Na peça processual consubstanciadora da arguição, pode ler-se, no que ora releva:
‘............................................................................................................................................................................................................................................ Alegou a recorrente que o cerne da questão em juízo, era precisamente o erro de ajuizamento do acórdão da Relação de Lisboa, que emana da não apreciação da questão essencial: O Tribunal ‘a quem’ na 1ª instância intimou o ora recorrente embargante a entregar estabelecimento comercial que explora, com justo título emergente de contrato de promessa de arrendamento, com cláusula de execução específica do prometido.
.............................................................................................................................................................................................................................................. O acórdão ao limitar-se a aderir à fundamentação do acórdão recorrido da Relação de Lisboa, omite a necessária fundamentação, que justifique a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, colocada em crise pelo recurso, já que o acórdão recorrido estatuiu insanável contradição na decisão. Não é possível, ‘in casu’ um acórdão por adesão. Há que analisar a contradição alegada, e fundamentar a decisão.
.............................................................................................................................................................................................................................................. O acórdão omite integralmente a fundamentação da decisão que profere, limitando-se a referir uma fundamentação do tribunal ‘a quo’ quanto a uma questão que emerge da própria decisão do tribunal recorrido; Não sendo logicamente possível dizer-se que se fundamenta uma decisão, com o que foi fundamentado, contendo contradição na própria fundamentação que emergiu do Acórdão da Relação de Lisboa.
4. E se o acórdão cuja nulidade se argui, viola o disposto na alínea b) do n.º 1 do Art. 668º do código de Processo Civil, certo é também que viola o disposto no n.º 1 do Art. 208º da Constituição da República. Termos em que se conclui, ao abrigo do disposto no nº 3 e 4 do preceito do Art.
668.º do Código de Processo Civil e Art. 208º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, requerendo que seja suprida a nulidade arguida.
............................................................................................................................................................................................................................................’
Tendo o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 24 de Junho de
2003, desatendido a invocada nulidade, a embargante fez juntar aos autos requerimento por intermédio do qual manifestou a sua vontade de deste mesmo aresto recorrer para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, visando a apreciação da
‘inconstitucionalidade da norma do artigo 713º, n.º 5, do C.P.C. aplicada ex vi artigos 749º e 762º do C.P.C. na interpretação da decisão recorrida, segundo a qual é possível a fundamentação por remissão mesmo nos casos em que o acórdão para que se remete não contém fundamentação adequada para a questão de direito suscitada que consiste numa omissão de pronúncia’, acrescentando que ‘a questão de inconstitucionalidade foi suscitada no requerimento de arguição de nulidade junto aos autos’.
O recurso veio a ser admitido por despacho prolatado em 16 de Setembro de 2003 pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça.
2. Não obstante tal despacho, porque o mesmo não vincula este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa (cfr. nº 3 do artº 76º da Lei nº 28/82) e porque se entende que o recurso não deveria ter sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do artº 78º-A da mesma Lei, a presente decisão, por via da qual se não toma conhecimento do objecto da vertente impugnação.
Efectivamente, como à saciedade resulta do relato supra efectuado, antes da prolação do aresto intentado colocar sob a censura do Tribunal Constitucional, a ora recorrente não assacou a alguma norma constante do ordenamento jurídico infraconstitucional, designadamente aos normativos indicados no requerimento de interposição do recurso de que ora se cura, qualquer vício de desconformidade com a Lei Fundamental.
Limitou-se, no requerimento consubstanciador da arguição de nulidade, a brandir como argumento de harmonia com o qual o arguido aresto violava, a par da alínea b) do nº 1 do artº 668º do diploma adjectivo civil, o nº 1 do artigo 208º da Constituição.
Ora, como é sabido, objecto dos recursos visando a fiscalização concreta da constitucionalidade e legalidade são normas ínsitas no ordenamento jurídico infraconstitucional e não outros actos do poder público tais como, verbi gratia, as decisões judiciais qua tale consideradas.
Sendo assim, como é, falece, na situação sub specie, um dos requisitos pressupositores do recurso prescrito na alínea b) do nº 1 do citado artº 70º da Lei nº 28/82, justamente aquele que consiste no equacionamento do problema de desarmonia com o Diploma Básico por banda de uma norma ordinária.
Neste contexto, não se toma conhecimento do objecto do recurso, condenando-se a impugnante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em cinco unidades de conta”.
É da transcrita decisão que, A., vem deduzida reclamação, sustentando, em síntese:
- que, como resulta claramente do requerimento de interposição de recurso, a questão de inconstitucionalidade se reporta à interpretação da norma constante do nº 5 do artº 713º do Código de Processo Civil na dimensão referida na decisão reclamada, não estando, assim, em causa a apreciação de uma decisão judicial;
- que, muito embora a redacção do requerimento de arguição de nulidade porventura não tivesse “sido a mais escorreita”, isso não significa que ele seja inidóneo para os fins em apreço;
- que, conquanto naquele requerimento se não tivesse aludido à norma infraconstitucional tida por violada, como é assinalado na decisão ora em causa, o que é certo é que se peticionou pelo suprimento da nulidade arguida e não pela reforma do acórdão em sentido conforme à Constituição;
- que a arguição de nulidade só tinha sentido na medida em que o acórdão arguido comportasse uma violação da Lei Fundamental, pelo que não releva a não referência à norma infraconstitucional, estando “por determinar que a ausência de referência expressa à norma do Código de Processo Civil constituísse um obstáculo à apreciação da questão de constitucionalidade, por parte do STJ”;
- que só a interpretação, tida pela reclamante por inconstitucional, da norma do nº 5 do indicado artº 713º constituiu o fundamento da decisão tomada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Notificado o recorrido B. para se pronunciar sobre a reclamação ora em apreço, veio o mesmo propugnar pelo respectivo indeferimento.
Cumpre decidir.
2. A reclamação em apreço não infirma o que foi expresso na decisão reclamada.
Efectivamente, naquela reclamação não se põe em causa que, precedentemente à prolação do acórdão lavrado em 24 de Junho de 2003 pelo Supremo Tribunal de Justiça, a ora impugnante não tivesse assacado um vício de desconformidade com o Diploma Básico por parte de qualquer norma inserta no ordenamento jurídico infraconstitucional.
O argumento da reclamante é, antes, o de, ao arguir a nulidade do aresto de 11 de Fevereiro de 2003, imputando-lhe a violação do nº 1 do artigo 205º da Constituição (e aceita-se que, na arguição, por mero lapso se tivesse mencionado o nº 1 do artigo 208º), não se poder deixar de entender que estava, afinal, a brandir com uma questão de inconstitucionalidade reportada a uma interpretação da norma que constituiu o esteio do acórdão arguido e que, como veio a constar do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, era a vertida no nº 5 do artº 713º do diploma adjectivo civil.
Simplesmente, a verdade é que esse normativo (na já indicada dimensão interpretativa) nem sequer foi referido alguma vez no requerimento de arguição de nulidade e - sendo isto o que mais releva - nem sequer, directa ou indirectamente, expressa ou implicitamente, foi questionada uma desarmonia constitucional apontada àquela dimensão que, quanto ao mesmo normativo, teria sido levada a efeito pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 11 de Fevereiro de 2003.
Aquilo que, indubitavelmente, foi brandido no dito requerimento foi o argumento segundo o qual o aludido acórdão incorria numa contradição na fundamentação, já que remetia para a corte de razões carreada ao acórdão tirado na 2ª instância quando, afinal, era suscitada, no recurso para o nosso mais Alto Tribunal da ordem dos tribunais judiciais, uma questão de contradição deste último aresto, pelo que se teria de concluir que o acórdão prolatado pelo Supremo Tribunal de Justiça padecia de falta de fundamentação e, por isso, era contrário ao artigo 205º, nº 1 , da Lei Fundamental.
E teria sido precisamente em face desta postura, ou seja, por não ter sido colocada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, que o acórdão desejado submeter à censura do Tribunal Constitucional nem sequer a aflorou.
Perante o exposto, indefere-se a reclamação, condenando-se a impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 12 de Novembro de 2003
Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida