Imprimir acórdão
Processo n.º 883/03
2.ª Secção
Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Albufeira vem, ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), reclamar do despacho de não admissão de recurso para o Tribunal Constitucional, proferido, em 3 de Outubro de 2003, pelo Juiz daquele Tribunal.
1.1. No processo de que emerge a presente reclamação foi proferido, em 23 de Junho de 2003, despacho determinando o arquivamento do procedimento criminal movido a A., com a seguinte fundamentação:
“A fls. 27 e seguintes, o Ministério Público acusou A. pela prática de factos que, no seu entendimento, integram a prática, em 2 de Maio de 1991, de um crime de emissão de cheque sem provisão.
Esse crime é previsto e punido, sucessivamente, pelos artigos 23.° e 24.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.º 13 004, de 11 de Janeiro de 1927, na redacção introduzida pelo artigo 5.° do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, artigos 11.°, n.° l, alínea a), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, e 313.º do Código Penal (na redacção originária aprovada pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro) ou 217.° do Código Penal (na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março) e, actualmente, pelo artigo 11.°, n.° l, alínea a), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro.
Os factos constantes da acusação foram praticados antes da entrada em vigor do Código Penal, na redacção do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, que só ocorreu em 1 de Outubro de 1995.
O arguido foi ouvido, como tal, em sede de inquérito (fls. 24) e foi notificado pessoalmente da acusação (fls. 37 verso).
A notificação ao arguido do despacho que recebeu a acusação foi feita pessoalmente, no dia 21 de Junho de 1993 (fls. 45 verso).
Após faltas a julgamento, foi o mesmo notificado por editais nos termos do artigo 335.°, n.° l, do Código de Processo Penal.
Em consequência, veio a ser declarado contumaz em 1 de Fevereiro de 1995 (fls. 95 e seguintes).
As molduras penais do crime de emissão de cheque sem provisão, tendo em conta as várias normas incriminadoras que se foram sucedendo, são de prisão até 3 anos, ou multa, nos dois últimos regimes aplicáveis (artigos 23.° do Decreto-Lei n.º 13 004, de 11 de Janeiro de 1927, na redacção introduzida pelo artigo 5.° do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro; artigos 11.°, n.° l, alínea a), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, e 313.° do Código Penal, na redacção originária aprovada pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro; artigos 11.°, n.° 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, e 217.° do Código Penal, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março; artigo 11.°, n.° 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro).
Ora, uma vez que ao crime de emissão de cheque sem provisão corresponde pena de prisão superior a um ano, mas não superior a cinco anos, o respectivo procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime hajam decorrido cinco anos, tanto nos termos dos artigos 117.°, n.°s 1, alínea c), e 3, e 118.°, n.° 1, do Código Penal, na redacção do Decreto-Lei n.º 400/82, como na redacção actual dos artigos 118.°, n.°s 1, alínea c), e 3, e 119.°, n.° l, do Código Penal (na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95).
A prescrição criminal assenta na ideia de que, com o decurso de um certo lapso de tempo, a sociedade esqueceu o crime e o Estado renunciou ao seu poder punitivo por virtude da desnecessidade ou inutilidade da pena.
O arguido foi notificado do despacho de acusação. No entanto, tal acto não tem qualquer eficácia interruptiva ou suspensiva do prazo prescricional – ver, por exemplo, Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 3 de Fevereiro de 1999 e de 1 de Março de 2000 (publicados em www.dgsi.pt).
Por outro lado, entendendo-se que a notificação ao arguido do despacho que designou dia para audiência tem a virtualidade de interromper a prescrição (artigo 120.°, n.° l, alínea c), do Código Penal de 1982) e de suspender o decurso daquele prazo (artigo 119.°, n.° l, alínea b), do mesmo diploma legal), por ser uma manifestação do ius puniendi do Estado e por se considerar como despacho equivalente ao despacho de pronúncia (neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/97, de 13 de Março de 1997, Diário da República, I Série-A, de 7 de Abril de 1997, e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15 de Outubro de 1997, Colectânea de Jurisprudência, tomo IV, pág. 244), o certo é que desde essa data (21 de Junho de 1993) já decorreram mais de 6 anos.
Na verdade, a partir daquela notificação fica o prazo de prescrição suspenso, nos termos do artigo 119.°, n.° 2, do Código Penal de 1982, mas tal suspensão não pode ultrapassar 2 anos (não havendo recurso, como é o caso).
Assim, por força do n.° 2 do artigo 120.° do Código Penal de 1982, depois da interrupção (e findo o prazo máximo de 2 anos de suspensão, previsto naquele n.° 2, do artigo 119.°) começa a correr novo prazo de prescrição, que entretanto já decorreu, pelo que, não se divisando a ocorrência de qualquer outra causa de interrupção ou de suspensão da prescrição no decurso daquele prazo, terá o procedimento criminal de se considerar prescrito.
É certo que o arguido foi declarado contumaz. No entanto, em face da redacção dos artigos 119.° e 120.° do Código Penal de 1982, vigente à data da prática do crime, tal acto não tinha qualquer valor interruptivo ou suspensivo do prazo prescricional.
Como se depreende pelo exposto, não se perfilha o entendimento expresso no Acórdão do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, n.° 10/2000, que fixou jurisprudência no sentido de que «no domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão de prescrição do procedimento criminal» (Diário da República, I Série-A, de 10 de Novembro de 2000).
Nos termos do artigo 445.°, n.° 3, do Código de Processo Penal, dispõe-se que aquela douta decisão não constitui jurisprudência obrigatória para os Tribunais Judiciais, mas devem estes fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada.
Importa, assim, explanar as divergências.
Salvo o devido respeito e melhor opinião, não pode atribuir-se efeito interruptivo ou suspensivo do prazo de prescrição do procedimento criminal ao despacho de declaração do arguido como contumaz, que o Código Penal de 1982, de todo, não considerava.
Não se pode entender que o legislador do artigo 119.° do Código Penal de 1982 tenha pretendido considerar a declaração da contumácia como um dos outros casos especialmente previstos na lei, não só porque o instituto da contumácia lhe era desconhecido, mas também na medida em que não careceria, então, de consignar como tal a declaração de contumácia na reforma operada em 1995.
E nunca se pode postergar, a pretexto de uma «interpretação actualista», o princípio fundamental consignado no artigo 29.°, n.° 3, da Constituição da República Portuguesa.
Parecem inteiramente de acolher os considerandos explanados pela tese que ficou vencida e que ficaram inscritos em declaração de voto. Não devem proceder, sem mais, tentativas jurisprudenciais de minorar os efeitos do «erro legislativo de 1987».
Seguem-se também, de perto, os argumentos explanados nos acórdãos do Tribunal da Relação do Porto (de 10 de Outubro de 2001, processo n.° 0110636, e de 24 de Janeiro de 2001, processo n.° 0010845, ambos acessíveis na Internet em www.dgsi.pt), que introduzem a questão da (in)constitucionalidade orgânica.
Na verdade, no diploma (Lei n.° 43/86, de 26 de Setembro) que, nos termos do artigo 165.°, n.° l, alínea c), da Constituição da República Portuguesa, concedeu ao Governo autorização legislativa para a reforma do processo penal (que veio a ser implementada com o Decreto-Lei n.° 78/87, de 17 de Fevereiro, em que se inscreveu o regime do artigo 336.°, n.°s 1 e 3, do Código de Processo Penal), no artigo 2.° (sentido e extensão da autorização), não se encontra, com a especialidade e a clareza constitucionalmente exigíveis, qualquer autorização, designadamente, para comutar o regime penal das causas de suspensão ou interrupção do prazo de prescrição do procedimento criminal.
Segue-se a argumentação do citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24 de Janeiro de 2001:
«Acontece que, como tem sido jurisprudência reiteradamente afirmada no Tribunal Constitucional (v. g. o recente Acórdão n.º 122/2000, in Diário da República, II Série, de 6 de Junho de 2000, págs. 9712 e 9713), a normação da matéria que se prende com a prescrição do procedimento criminal e das penas, incluindo o estabelecimento de causas de suspensão e de interrupção, insere-se no objecto de reserva relativamente à definição de crimes e penas (artigo 165.°, n.° l, alínea c), da CRP, na versão de 1997, como ocorria no artigo 168.° da versão de 1989 e da versão de 1982), reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, pelo que pode haver lugar a autorização ao Governo para legislar sobre tais matérias, como, aliás, identicamente sucede no respeitante à regulação do processo criminal.
Precisamente, o artigo 336.°, de onde o Acórdão n.º 10/2000, do Supremo Tribunal de Justiça, extrai o estabelecimento de uma causa de suspensão do procedimento criminal, inscreve-se no Código de Processo Penal de 1987, aprovado por diploma governamental (o Decreto-Lei n.° 78/87, de 17 de Fevereiro), no uso da autorização conferida pela Lei n.° 43/86, de 26 de Setembro.
Esta Lei n.° 43/86 define no seu artigo 1.° qual o objecto da autorização: “aprovar um novo Código de Processo Penal e revogar a legislação vigente sobre essa matéria”.
(...) Nenhuma referência ou alusão, pois, a autorização para a instituição, no âmbito da contumácia e como decorrência da respectiva declaração, de uma causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal, a menos que se configurasse uma tal causa de suspensão como “medida preventiva”, o que se não compagina com a dimensão de direito material ou substantivo que assiste ao instituto da prescrição, nem com o patamar mínimo de exigência de definição, previsibilidade e transparência relativamente às leis de autorização legislativa (vide Gomes Canotilho, Direito Constitucional, edição de 1998, pág. 670, e 5.ª edição, pág. 861, e António Vitorino, As Autorizações Legislativas na Constituição Portuguesa, II volume, pág. 240).
(...) Não só se não detecta que haja na Lei de Autorização Legislativa n.º 43/86 um suporte mínimo para que seja lícito – constitucionalmente lícito – extrair do artigo 336.° do Código de Processo Penal de 1987 a instituição de uma causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal, como tal instituição não era reclamada à luz da perspectiva de suficiência e eficácia que inicialmente suportou a estruturação do sistema da contumácia.
Ora, não sofre dúvidas que os decretos-leis publicados no uso de autorizações legislativas se devam subordinar às correspondentes leis, consoante se encontra expressamente determinado no artigo 112.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa – como ocorria no artigo 115.°, n.° 2, da versão de 1982, vigente em 1987 –, sendo que a desconformidade com a lei de autorização implica directamente uma ofensa à competência da Assembleia da República e, logo, uma inconstitucionalidade orgânica, pois que, se não respeitarem a lei de autorização, eles deixam de ter habilitação constitucional (cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 213/92, Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1992, pág. 8791, e doutrina aí citada).
E o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça consagrou a referida decisão de fixação de jurisprudência por via de uma interpretação que imprime ao artigo 336.° do Código de Processo Penal de 1987 uma dimensão normativa substantiva que não se encontra compreendida na Lei de Autorização Legislativa n.° 43/86, de 26 de Setembro, lei que, aliás, não chegou a ser convocada naquele acórdão.»
Para além da inconstitucionalidade orgânica, podemos sustentar uma inconstitucionalidade material do norma do artigo 336.°, n.° l, do Código de Processo Penal (ou actual artigo 335.°, n.° 3, do mesmo diploma), quando interpretada no sentido de que tem a virtualidade de suspender o prazo de prescrição do procedimento criminal quando conjugada com o artigo 119.° do Código Penal na redacção de 1982.
Na verdade, não se trata, aqui, de convocar qualquer inconstitucionalidade do artigo 119.° do Código Penal de 1982, pois que nada obsta que uma norma remeta para outras a consagração, em concreto, de causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal (ver Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 449/2002, Diário da República, II Série, de 12 de Dezembro de 2002).
No entanto, a consideração de que a determinação da «suspensão dos termos ulteriores do processo» que é feita no artigo 336.° do Código de Processo Penal pode constituir «disposição bastante para se concluir pela presença de uma causa de suspensão do prazo prescricional» pode pôr em causa o princípio da tipicidade, na medida em que a expressão «termos ulteriores do processo» é ambígua e não obedece ao desígnio de precisão decorrente do princípio da legalidade.
O artigo 119.° do Código Penal, na redacção de 1982, falava em outros «casos especialmente previstos na lei», não podendo deixar de se considerar integrarem tal conceito os casos (contemporâneos dessa norma ou, eventualmente, futuros) em que se refira especialmente e expressamente a interrupção da prescrição ou, pelo menos, que trate da prescrição do procedimento criminal, o que não ocorre com o instituto da contumácia, que tinha apenas dimensão processual e, em momento algum, se referia à problemática da prescrição (nem o poderia fazer, dado o alcance da Lei de Autorização Legislativa).
Pode ainda fazer-se apelo ao constante do Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 483/2002 (Diário da República, II Série, de 10 de Janeiro de 2003), que defendeu:
«Que o instituto da prescrição se encontra sedimentado no ordenamento jurídico português há variadíssimas décadas, não podendo, por conseguinte, o legislador constituinte de 1976 ter sido alheio à respectiva previsão tal como, em linhas gerais, se desenhava naquele ordenamento, ou seja, não podendo o legislador do diploma básico ser indiferente à política criminal e à dogmática que lhe estava subjacente, no que toca à repercussão que o decurso do tempo tinha quanto à não efectivação do poder punitivo do Estado;
Que existem razões, constitucionalmente fundadas, decorrentes da ideia de certeza e de paz jurídica, do Estado de direito democrático e do progressivo esbatimento da necessidade de perseguição penal com o decurso do tempo, à luz dos fins que tal perseguição serve, bem como das próprias garantias de defesa dos arguidos, que levam à consagração de um instituto como aquele;
Que estes valores têm assento constitucional e reclamam, por si, que o citado instituto tenha de ser visto com um próprio valor constitucional para o comum dos ilícitos (...);
Que é razoável que a sociedade, objectivamente considerada, possa entender – ao menos enquanto se mantiverem em vigor na sua essencialidade os preceitos que instituem a prescrição e rejam os respectivos prazos, modos de ocorrência e contagem – que, uma vez decorrido o tempo previsto nesses preceitos, não reclamam perseguição criminal os agentes de factos delituosos cuja prática de há muito ocorreu, o que inculca que também é razoável que aquela sociedade conte com que aquela perseguição não opere mediante normas ou processos interpretativos de onde resulte, na realidade prática, a ineficácia da actuação do instituto da prescrição.» (sublinhado nosso).
Ou então, como se defende no voto de vencido proferido pela Ex.ma Senhora Conselheira Maria Fernanda Palma, pode entender-se que, não existindo um direito constitucional à prescrição (a não ser numa «dimensão limitada de um direito de renúncia à prescrição, como manifestação do direito de acesso à justiça ou de defesa da honra»), a verdade é que «a relevância constitucional da prescrição manifesta-se, sobretudo, no princípio da necessidade das penas e das medidas de segurança, no princípio do Estado de direito democrático, na dimensão de uma autolimitação do poder punitivo através de critérios objectivos e não arbitrários e, em suma, na protecção dos arguidos contra abusos processuais».
Ora, a consagração de uma interpretação do artigo 336.° do Código de Processo Penal (ou actual artigo 335.°, n.° 3, do mesmo diploma) que concede ao instituto da contumácia uma dimensão que ele não deve ter (podendo, no limite, tornar qualquer crime em «imprescritível») viola, necessariamente, tais princípios constitucionais (v. g. artigos 2.°, 20.°, n.° 4, parte final, 27.°, n.° 1, 29.°, n.° l, 30.°, n.° l, 32.°, n.°s l e 2, da Constituição da República Portuguesa).
Assim e devendo considerar-se o artigo 336.°, n.° 1, do Código de Processo Penal (ou artigo 335.°, n.° 3, na redacção dada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto) orgânica e materialmente inconstitucional, entende-se que, no caso dos autos, considerando o prazo prescricional de 5 anos, referido no artigo 117.°, n.° l, alínea c), do Código Penal de 1982, e ressalvando o tempo de suspensão, a prescrição do procedimento criminal já ocorreu.
Pelo exposto, julgando o artigo 336.°, n.° l, do Código de Processo Penal (ou artigo 335.°, n.° 3, na redacção dada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto) orgânica e materialmente inconstitucional no entendimento de que permite entender a declaração de contumácia como causa de suspensão do procedimento criminal à luz do artigo 119.°, n.° l, do Código Penal de 1982, declaro extinto o procedimento criminal, pelo decurso do prazo de prescrição, nos termos do disposto nos artigos 117.°, n.° 1, alínea c), e 118.°, n.° l, do Código Penal e, em conformidade, determino o arquivamento dos autos e a cessação da declaração de contumácia.”
1.2. Notificado deste despacho, o Ministério Público veio do mesmo interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 70.°, n.º 1, alínea a), e 72.°, n.º 1, alínea a), da LTC, porquanto nessa decisão fora “declarada a inconstitucionalidade material e orgânica do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (ou artigo 335.º, n.º 3, na redacção dada pela Lei n.° 59/98, de 25 de Agosto), no entendimento que permite entender a declaração de contumácia como causa de suspensão do procedimento criminal à luz do artigo 119.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1982, por violar o disposto nos artigos 2.º, 20.º, n.º 4, parte final, 27.º, n.º 1, 29.º, n.º 1, 30.º, n.º 1, e 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, não se aplicando o respectivo dispositivo, ao abrigo do disposto no artigo 204.º da Lei Fundamental”.
1.3. Tal recurso não foi admitido por despacho de 3 de Outubro de 2003, do seguinte teor:
“Dispõe o artigo 70.°, n.° 5, da Lei do Tribunal Constitucional que não é admissível «recurso para o Tribunal Constitucional de decisões sujeitas a recurso ordinário obrigatório, nos termos da respectiva lei processual».
Ora, no presente caso, a verdade é que, nos termos do artigo 446.° do Código de Processo Penal, caberá ao Ministério Público recorrer obrigatoriamente da decisão proferida nos autos, por ter sido proferida contra o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.° 10/2000.
Apesar de o artigo 446.° do Código de Processo Penal estar inserido no título II do livro IX do Código de Processo Penal (referente aos recursos extraordinários), a verdade é que, como tem vindo a ser entendido pela Jurisprudência Constitucional (v. g. Acórdão n.º 323/01, de 4 de Julho de 2001, da 1.ª Secção do Tribunal Constitucional; Acórdão n.º 93/02, de 26 de Fevereiro de 2002, da 2.ª Secção do Tribunal Constitucional; e Acórdãos n.ºs 281/01 e 282/01, de 26 de Junho de 2001, da 3.ª Secção do Tribunal Constitucional), haverá que, previamente, recorrer dentro da ordem dos tribunais judiciais, nos termos do citado artigo 446.°.
Assim, pelo exposto, não se admite o recurso interposto a fls. 149.”
1.4. É contra este despacho que vem deduzida a presente reclamação, limitando-se o magistrado reclamante a aduzir que a decisão recorrida havia recusado a aplicação das normas questionadas com fundamento em inconstitucionalidade.
1.5. Neste Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público emitiu o seguinte parecer:
“A decisão reclamada recusou, de forma cabal e explícita, a aplicação da jurisprudência uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça através do Acórdão n.º 10/2000, constituindo tal dissidência ratio decidendi de tal sentença. Como dá nota a decisão reclamada, a jurisprudência constitucional tem efectivamente entendido, de modo uniforme e reiterado, que, nestes casos, tem efectivamente precedência sobre o recurso de constitucionalidade o «recurso ordinário obrigatório», previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal, pelo que nenhuma censura poderá formular-se a tal entendimento do tribunal a quo.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. A questão do não conhecimento imediato do recurso de constitucionalidade interposto de decisão de recusa de aplicação de interpretação normativa consagrada em acórdão de uniformização de jurisprudência penal do Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento em inconstitucionalidade dessa interpretação, foi recentemente abordada por esta 2.ª Secção do Tribunal Constitucional em caso em que também estava em causa uma recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, das normas dos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugados com o artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982 (redacção originária), na interpretação, dada pelo Supremo Tribunal de Justiça no “Acórdão de Uniformização de Jurisprudência” n.º 10/2000, segundo a qual a declaração de contumácia constitui causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal, assumindo-se claramente tal decisão – como a dos presentes autos – como dissidente da jurisprudência uniformizada.
Referimo-nos ao Acórdão n.º 412/2003, que, a respeito desta questão, expendeu o seguinte:
“2.4.2. Relativamente à recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, das normas dos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugados com o artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982 (redacção originária), na interpretação, dada pelo Supremo Tribunal de Justiça no «Assento» n.º 10/2000, segundo a qual a declaração de contumácia constitui causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal, (...) entende-se, pelas razões expendidas pelo próprio recorrente, na sua alegação, que não pode o Tribunal Constitucional tomar conhecimento desta parte do objecto do recurso, por força do disposto no n.º 5 do artigo 70.º da LTC e atenta a natureza obrigatória do recurso previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal.
Trata-se de entendimento já seguido por este Tribunal nos Acórdãos n.ºs 281/01 e 282/01 (o primeiro publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50.º vol., pág. 587), também em casos de recursos interpostos pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, de decisões que haviam recusado, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação das normas constantes dos artigos 119.º do Código Penal de 1982 (redacção originária), e 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação, feita pelo «Assento» do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2000, de que, no domínio de vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão do procedimento criminal, sem que previamente tivesse sido interposto pelo mesmo Ministério Público o recurso obrigatório previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal «de quaisquer decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça».
Escreveu-se no Acórdão n.º 281/01 (cuja fundamentação foi reproduzida no Acórdão n.º 282/01):
«4. Na verdade, segundo o n.º 5 do artigo 70.º citado [da LTC], “não é admitido recurso para o Tribunal Constitucional de decisões sujeitas a recurso ordinário obrigatório, nos termos da respectiva lei processual”.
Ora, no presente recurso, a decisão recorrida, afastando a aplicação do Assento n.º 10/2000 por inconstitucionalidade, está, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 446.º do Código de Processo Penal, sujeita a recurso obrigatório por parte do Ministério Público.
Sucede, porém, que o Código de Processo Penal qualifica este recurso como um recurso extraordinário (...); assim, coloca-se a questão de saber se este caso está ou não abrangido pelo citado n.º 5 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82.
5. Para o efeito, cabe averiguar se a razão que justifica o regime previsto neste n.º 5 – apenas recorrer para o Tribunal Constitucional da decisão que proferir a última palavra na ordem dos tribunais que julgaram a causa – ocorre no caso presente, e, em caso afirmativo, se deve prevalecer, não obstante se tratar, por um lado, de um recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, e, por outro, de um recurso obrigatório extraordinário.
É sabido que a Lei n.º 28/82 apenas impõe a prévia exaustão das vias de recurso no âmbito dos recursos interpostos ao abrigo do disposto nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, ou seja, interpostos de decisões que aplicaram norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade foi suscitada durante o processo; e que, diferentemente, abre recurso directo para o Tribunal Constitucional de decisões não definitivas (ainda susceptíveis de recurso ordinário) de recusa de aplicação de normas, pelos mesmos motivos, como é o caso presente.
Ora, quer num caso, quer no outro, a não ser interposto previamente o recurso obrigatório dentro da ordem a que pertence o tribunal que julgou a causa, pode vir a subsistir uma decisão sujeita a recurso obrigatório que versa exactamente sobre a norma julgada pelo Tribunal Constitucional; e o problema põe-se da mesma forma quando é o recurso previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal que está em causa, apesar de ser qualificado por lei como recurso extraordinário.
Vejamos o caso, precisamente, do recurso imposto por este preceito.
A ser julgado primeiro o recurso interposto para o Tribunal Constitucional por recusa de aplicação de uma norma, se o Tribunal Constitucional confirmar o juízo de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, subsiste uma decisão contrária a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça – logo, ainda sujeita a recurso obrigatório, que não pode deixar de ser interposto.
Interposto esse recurso – e vamos admitir que chegamos ao Supremo Tribunal de Justiça –, este Tribunal, para respeitar o caso julgado formado no processo sobre a questão de constitucionalidade, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 80.º da Lei n.º 28/82, tem de alterar a orientação jurisprudencial que definiu, revendo o assento, sem ter tido a oportunidade de se pronunciar sobre a decisão que recusou a respectiva aplicação por inconstitucionalidade. Do ponto de vista das relações institucionais entre o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional, há-de concordar-se não ser esta a melhor solução.
Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, o intérprete há-de presumir, ao fixar o sentido da lei, que o legislador consagrou a solução mais acertada. E essa directriz leva-nos a não distinguir, para efeitos de aplicação do disposto no n.º 5 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, entre recursos ordinários e o recurso previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal.
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso, por não ter sido previamente interposto o recurso obrigatório previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal.»
É entendimento que ora se reitera, sendo certo que dele não resulta, contrariamente ao sustentado na decisão recorrida, qualquer «fraude ao sistema constitucional de garantia da Constituição». Na verdade, as decisões das instâncias penais contrárias a jurisprudência uniformizada são decisões necessariamente precárias porque sujeitas a obrigatória impugnação na ordem dos tribunais judiciais e, assim, fatalmente destinadas a serem substituídas por decisões das instâncias superiores, que as confirmarão ou revogarão. O eficaz funcionamento do sistema de fiscalização da constitucionalidade não reclama a imediata abertura de recurso para o Tribunal Constitucional dessas decisões «precárias», bastando-se com a normal admissibilidade de recurso das decisões «definitivas» das instâncias superiores, a interpor, nos termos gerais, designadamente nas hipóteses das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 70.º, pelas partes para tal legitimadas. O que desvirtuaria quer o sistema de fiscalização da constitucionalidade quer o sistema de revisão de jurisprudência uniformizada seria a artificial provocação, por iniciativa de juízes de instância discordantes da doutrina de determinado «assento», da intervenção, a destempo, do Tribunal Constitucional, perturbadora daquele sistema de revisão, que deve decorrer no âmbito da ordem jurisdicional comum, sem prejuízo – repete-se – de o resultado final ficar sempre sujeito ao controlo de constitucionalidade, nos termos gerais.”
É orientação – reiterada nos Acórdãos n.ºs 480/03, 503/03, 545/03 e 558/03, e ainda, em reclamações em tudo idênticas à presente, também oriundas do Tribunal Judicial da Comarca de Albufeira, nos Acórdãos n.ºs 470/03 e 559/03 – que se mantém.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Sem custas.
Lisboa, 7 de Janeiro de 2004.
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos