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Processo n.º 783/01
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto Acordam em conferência no Tribunal Constitucional: I. Relatório No presente recurso de constitucionalidade, interposto por A de decisão condenatória pelo Tribunal Judicial da Comarca do Funchal como co-autor material de dois crimes de ofensas à integridade física qualificadas e de um crime de violação de domicílio, e como autor material de um crime de dano, e visando 'ver declarada a inconstitucionalidade do n.º 1 artigo 50 do C. Penal, por violação do n.º 4 artigo 29 da C.R.P., quando aquele é interpretado no sentido de possibilitar que a pena de dezoito meses de prisão aplicada a um Réu, sem antecedentes criminais, não seja suspensa', foi proferida pelo relator, em 13 de Março de 2002, decisão nos termos do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, pela qual se decidiu não tomar conhecimento do recurso. Esta decisão baseou-se nos seguintes fundamentos:
'(...) o recurso vem ‘interposto, com base na alínea b)’ do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, sendo necessário, para se poder conhecer de tal recurso, a mais do esgotamento dos recursos ordinários e de que a norma impugnada tenha sido aplicada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido, que a inconstitucionalidade desta norma, ou dimensão normativa, tenha sido suscitada durante o processo. Como se sabe, no direito constitucional português vigente, apenas as normas são objecto de fiscalização de constitucionalidade concentrada em via de recurso
(cfr., por exemplo, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 155/95 e n.ºs
18/96, publicados no Diário da República [DR], II Série, de 20 de Junho de 1995 e 15 de Maio de 1996), com exclusão dos actos de outra natureza (políticos, administrativos, ou judiciais em si mesmos). Quanto à exigência de suscitação da inconstitucionalidade durante o processo, como este Tribunal tem repetidamente decidido, e se referiu, por exemplo, no Acórdão n.º 352/94 (publicado no DR, II série, de 6 de Setembro de 1994), deve entender-se, ‘não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)’, mas ‘num sentido funcional’, de tal modo ‘que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão’, ‘antes de esgotado o
'poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita.’
É, na verdade, este o único sentido do dito requisito que corresponde à natureza da intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso, para reapreciação, portanto, de uma questão que o tribunal a quo pudesse e devesse ter apreciado
(ver também o citado Acórdão n.º 155/95). E assim, como se disse no referido Acórdão n.º 352/94, ‘porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença, e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura e ambígua, há-de entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de constitucionalidade’ (vejam-se ainda, por exemplo, entre tantos outros, já os Acórdãos n.ºs 94/88 e 90/85, DR, II Série, de 22 de Agosto de 1988 e de 11 de Julho de 1985, respectivamente). Isto, sendo que esta orientação, como também se salientou no Acórdão n.º 352/94,
‘sofre restrições apenas em situações excepcionais, anómalas, nas quais o interessado não disponha de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão final.’
6. No caso dos autos, pode ler-se no requerimento de recurso que se pretende
‘ver declarada a inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 50 do C. Penal, por violação do n.º 4 artigo 29 da C.R.P., quando aquele é interpretado no sentido de possibilitar que a pena de dezoito meses de prisão aplicada a um Réu, sem antecedentes criminais, não seja suspensa.’ Ora, independentemente da questão de saber se o recorrente levanta uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa – isto é, reportada a uma norma ou a uma dimensão normativa – ou apenas uma questão relativa à ponderação e à aplicação da norma do artigo 50º, n.º 1 do Código Penal ao arguido, e mesmo, portanto, admitindo que estivesse em questão um problema de desconformidade constitucional de uma norma, o que é certo é que, tendo o ónus de o fazer, o recorrente não curou de, atempadamente, suscitar a sua inconstitucionalidade antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido. Na verdade, nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, apresentadas em 3 de Março de 2000 (nos autos, a fls. 352 e segs.), o recorrente, apesar de já defender a suspensão da pena e questionar a relevância dos antecedentes criminais, não suscita qualquer questão de desconformidade constitucional, limitando-se a dizer que a sentença recorrida ‘violou as normas jurídicas constantes dos artigos 143º n.º 1 e 50º do Código Penal.’ Não é, pois, de admirar que se não encontre no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Julho de 2001, qualquer referência a tal questão de constitucionalidade. Pelo que o Tribunal Constitucional, a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da norma indicada no requerimento de recurso, o estaria a fazer, devido à não suscitação da inconstitucionalidade pelo recorrente, pela primeira vez, e não reapreciando a decisão do tribunal a quo.
7. A inconstitucionalidade da aludida ‘interpretação’ do artigo 50º, n.º 1 do Código Penal apenas foi referida pelo recorrente na arguição de nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa referido. Porém, como se disse, e resulta de abundante jurisprudência deste Tribunal, ‘o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de constitucionalidade’, pois o poder jurisdicional do tribunal recorrido esgotou-se com a prolação do Acórdão de 12 de Julho, e a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não é causa de nulidade da decisão judicial. Torna-se, assim, desnecessário averiguar se os restantes requisitos para o presente recurso estão verificados, pois não se poderia dele conhecer, por falta de suscitação durante o processo da inconstitucionalidade alegada. Tal como se disse no Acórdão n.º 3/95 (DR, II Série, de 22 de Março de 1995),
‘(...) Seja como seja, é límpido que nunca no processo, e designadamente antes da prolação do acórdão desejado impugnar, o recorrente dirigiu a qualquer norma uma censura constitucional, propugnando pela sua não aplicação no caso. O que, só por aqui, conduz a que, pelo menos, se não mostre presente um dos requisitos exigidos pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, justamente o de ter havido suscitação da questão da desconformidade normativa com qualquer norma ou princípio constitucional, sendo de assinalar que, como se sabe, o sistema da fiscalização da constitucionalidade vigente no nosso país se reporta a actos normativos e não a quaisquer outros, designadamente a decisões judiciais. (...)’ .' Notificado desta decisão, o recorrente veio dela 'reclamar para o Exm.º Sr. Dr. Juiz Presidente deste Tribunal', nos seguintes termos:
«(...) O presente recurso foi indeferido porque se considerou que a questão da inconstitucionalidade da norma em causa, não tinha sido suscitada anteriormente. Sem pretender fazer qualquer crítica a terceiros, a verdade é que o ora reclamante nunca poderia ser prejudicado apenas porque o seu anterior mandatário não suscitou oportunamente a questão da inconstitucionalidade. Mais, o entendimento constante da aliás douta sentença, não pode, nem deve prevalecer. Com efeito, nada na nossa Constituição proíbe que se suscite a questão de inconstitucionalidade até à extinção da instância. Estabelecendo o n.º 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa que
'o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa', tal normativo deve ser interpretado no sentido de que a inconstitucionalidade de qualquer norma possa sempre ser discutida enquanto não houver trânsito definitivo da sentença condenatória. Por outras palavras, enquanto não houver extinção da instância, deve sempre ser possível invocar a inconstitucionalidade de qualquer norma. Assim sendo, o presente recurso não podia ser rejeitado, apenas e tão só, porque a questão da inconstitucionalidade não tinha sido suscitada durante o processo. De resto, não é sequer verdade que essa questão não tinha sido levantada perante as instâncias anteriores ao Tribunal Constitucional. Com efeito, a invocada nulidade do acórdão, deduzida no Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, decorreu perante a instância logo antes de este Tribunal Constitucional, e aí tal questão foi aflorada. Logo, o problema da inconstitucionalidade foi levantado durante o processo. Nestes termos, Por analogia com o disposto no n.º 1 do artigo 668º do C.P. Civil, roga o reclamante a Vª Exª se digne atender à presente reclamação e ordenar que o presente recurso seja admitido, tudo com as legais consequências.» O Ministério Público recorrido, notificado desta reclamação, veio dizer:
'1 – A presente reclamação – erroneamente endereçada ao Exm.º Conselheiro Presidente – é manifestamente infundada.
2 – Na verdade, a argumentação expendida pelo reclamante em nada abala os fundamentos da decisão proferida, no sentido da manifesta inverificação dos pressupostos do recurso de constitucionalidade interposto.' Cumpre decidir. II. Fundamentos Apesar de a presente reclamação vir erroneamente endereçada ao Exm.º Conselheiro Presidente, invocando 'analogia com o disposto no n.º 1 do artigo 668º do C.P. Civil', pode entender-se que ela é deduzida para a conferência, ao abrigo do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, para o efeito de dela se tomar conhecimento. O reclamante afirma que não deveria deixar de tomar-se conhecimento do presente recurso 'apenas e tão só, porque a questão da inconstitucionalidade não tinha sido suscitada durante o processo', pois entende que 'enquanto não houver extinção da instância, deve sempre ser possível invocar a inconstitucionalidade de qualquer norma', e que 'não é sequer verdade que essa questão não tinha sido levantada perante as instâncias anteriores ao Tribunal Constitucional', já que a
'a invocada nulidade do acórdão, deduzida no Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, decorreu perante a instância logo antes de este Tribunal Constitucional, e aí tal questão foi aflorada'. Ora, a exigência de suscitação 'durante o processo' da inconstitucionalidade da norma que se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie em recurso de inconstitucionalidade resulta logo do artigo 280º, n.º 1, alínea b) da Constituição, é repetida, nos mesmos termos, pelo artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, e é ainda, em conformidade com a sua razão de ser, precisada no artigo 72º, n.º 2 deste último diploma. Segundo este, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º só pode ser interposto
'pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade (...) de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer'. Como este Tribunal tem reafirmado numerosas vezes, a razão de ser desta exigência encontra-se na própria natureza da intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso, ou seja, para reexame ou reapreciação de uma decisão de outro tribunal sobre uma questão de constitucionalidade de norma(s), exigindo-se, assim, que tal questão tenha sido posta a este, em termos de este estar obrigado a dela conhecer. Em orientação jurisprudencial já antiga e uniforme, o Tribunal Constitucional tem precisado o sentido da exigência de suscitação durante o processo (cfr., entre tantos outros, os Acórdãos n.ºs
90/85, 94/88 e 352/94, publicados no Diário da República, II Série, de 17 de Julho de 1985, 22 de Agosto de 1988 e de 6 de Setembro de 1994, respectivamente), dizendo sempre que tal requisito deve ser tomado 'não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)' – como pretende o reclamante – mas, em conformidade com a sua ratio, num 'sentido funcional', tal que essa 'invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão', ou seja: 'antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que(a mesma questão de inconstitucionalidade)respeita'. E assim, como se disse neste Acórdão n.º 352/94, '(...), porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença, e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura e ambígua, há-de entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade'. No presente caso, o recorrente não curou de, atempadamente, suscitar a inconstitucionalidade antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, só a referindo no requerimento de arguição de nulidade. Não se encontra, aliás, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa qualquer referência
à questão de constitucionalidade, pelo que o Tribunal Constitucional estaria a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da norma indicada no requerimento de recurso pela primeira vez, e não reapreciando a decisão do tribunal a quo. Tanto basta para a reclamação não poder ser atendida, com este fundamento.
O próprio reclamante reconhece, aliás, que não foi suscitada tempestivamente a inconstitucionalidade que pretendia ver apreciada (e isto, mesmo deixando em aberto a questão de saber se estaria verdadeiramente em causa uma inconstitucionalidade de uma norma, numa sua interpretação, ou apenas da qualificação dos factos relevantes). Simplesmente, entende que 'nunca poderia ser prejudicado apenas porque o seu anterior mandatário não suscitou oportunamente a questão da inconstitucionalidade'. A circunstância de ter sido um anterior mandatário do ora reclamante a deixar de suscitar oportunamente a questão de constitucionalidade não pode, porém, deixar de lhe ser imputada, com o eventual prejuízo daí resultante (e isto, sem que caiba agora curar de eventuais efeitos dessa omissão nas relações entre o reclamante e esse anterior mandatário). É, ademais, evidente que a mera alteração de mandatário não poderia ter como consequência a dispensa da exigência de suscitação perante o tribunal a quo, até ao esgotamento do seu poder jurisdicional, da inconstitucionalidade das normas que se pretende que o Tribunal Constitucional venha a apreciar no recurso de constitucionalidade. A decisão sumária reclamada merece, pois, confirmação.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão reclamada de não conhecimento do recurso. Custas pelo reclamante, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 3 de Julho de 2002 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa