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Procº nº 925/2003.
3ª Secção. Relator: Bravo Serra.
1. O arguido A., detido preventivamente desde 6 de Abril de 2001 à ordem do Processo nº 16/98.5TAVTVR, pendente pelo Tribunal de comarca de Tavira, tendo sido condenado, na 1ª instância, na pena de seis anos de prisão pelo cometimento de factos que foram subsumidos à autoria de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artº 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº
15/3, de 22 de Janeiro, decisão da qual foi interposto recurso, veio peticionar ao Supremo a providência de habeas corpus, alegando que na data de entrada do requerimento de solicitação da providência, ou seja, em 9 de Outubro de 2003, já sofrera trinta meses e dois dias de prisão preventiva.
Em 10 de Outubro de 2003, o Juiz daquele Tribunal, a requerimento do Ministério Público, lavrou despacho no qual disse, no que ora releva:
“...............................................................................................................................................................................................................................................................
No entendimento do signatário, para que sejam aplicáveis os prazos referidos no artigo 215.º, n.º 3[,] do Código de Processo Penal aos presentes autos[,] não se torna necessária a declaração judicial de especial complexidade do processo[,] pois que se aplica, directamente, o artigo 54.º, n.º 3[,] da Lei
[deveria querer referir-se ao Decreto-Lei nº 15/93], de 22.01 (cfr. Ac. STJ de
11.07.2002, in [ ] CJSTJ, 2002, tomo III, pág. 178).
Nestes termos, o prazo máximo da prisão preventiva é de 4 anos.
No entanto, sempre se dirá que, mesmo que assim não se entendesse, sempre seria de declarar a especial complexidade do processo face ao carácter organizado da actividade desenvolvida pelo arguido, conforme é referido pelo Ministério Público.
Assim, e sem necessidade de outras considerações, consigno que[,] quer pela aplicação directa do artigo 54.º, n.º 3[,] da Lei n.º 15/93 [deveria igualmente querer referir-se ao Decreto-Lei nº 15/93], de 22.01[,] quer pela especial complexidade do processo, o prazo máximo de duração da prisão preventiva do arguido A. é o que resulta do artigo 215.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
...............................................................................................................................................................................................................................................................”
Na audiência que teve lugar no Supremo Tribunal de Justiça, a Representante do Ministério Público, no decurso das suas alegações orais, suscitou a seguinte questão, como se alcança da transcrição efectuada na respectiva acta:
“A interpretação conjugada das normas constantes do artº 54º, nº
3[,] do D.L. nº 15/93[,] de 22/01[,] e do artº 215º, nº 3[,] do Código de Processo Penal - ao permitir que se alargue[ ] de 30 meses para 4 anos o prazo de duração máxima da prisão preventiva - elevação exponencial superior a metade do prazo da duração máxima prevista no artº 215º, nº 2[,] do Código de Processo Penal - sem que intervenha uma apreciação judicial da excepcional complexidade do procedimento criminal do caso concreto, como o impõe a norma do artº 213º, nº
2[,] do Código de Processo Penal, diminui a extensão e o alcance do conteúdo essencial das normas do artº 28º, nº[s] 2 e 4, nega as garantias de defesa, com tutela no artº 32º, nº 1[,] e afronta o princípio da proporcionalidade afirmado no artº 18º, nºs 1 e 2, todos da Constituição da República Portuguesa.-------------------------------------------------
Interpretação que atribuísse ‘efeitos retroactivos’ à declaração de excepcional complexidade do procedimento criminal proferida posteriormente à extinção da prisão preventiva por se ter esgotado o prazo de duração máxima de
30 meses a que alude o artº 215º, nº 2[,] do Cód. de Processo Penal, permitindo a manutenção em prisão preventiva até à verificação do prazo máximo de 4 anos, sempre afrontaria as normas dos artºs. 215º, nº 2, 217º, nºs 1 e 2, ambos do Cód. de Processo Penal, afrontando também a norma dos artºs 28º, nº[s] 2 e 4[,] e 32º[,] nº 1, ambos da Constituição da República Portuguesa”.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 16 de Outubro de 2003, indeferiu a providência.
Pode ler-se nesse aresto:
“...............................................................................................................................................................................................................................................................
Acontece que, manifestamente, não nos deparamos aqui com qualquer situação de ilegalidade, muito menos qualificável de «grosseira».
Com efeito, tratando-se in casu de condenação - não transitada, é certo - por prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no artigo
21.º, n.º 1, do Dec. -Lei n.º 15/93, de 23/1, a pena aplicável move-se numa moldura abstracta de 4 a 12 anos de prisão.
Move-se, assim, o procedimento em campo delimitado por crime previsto no n.º 2 do artigo 215.º do Código de Processo Penal, «punível com pena de prisão de máximo superior a oito anos», e, assim, o prazo máximo «normal» de duração da prisão preventiva seria efectivamente elevado de dois anos para trinta meses, uma vez que, tendo o arguido sido julgado e condenado, mas sem trânsito em julgado da decisão condenatória, a situação cabe no patamar da alínea d) do n.º 1 daquele normativo, devidamente conjugado com o citado n.º 2.
Porém, como se colhe da informação prestada pelo juiz do processo, aquele foi, por despacho explícito, judicialmente declarado de «excepcional complexidade», o que, nos termos do mesmo artigo 215.º do Código de Processo Penal, e, de resto, está especificamente previsto, entre outros, para os crimes de tráfico, no artigo 54.º, n.º 3, do DL n.º 15/93, permite elevar o prazo até ao máximo de 4 anos.
E quer se perfilhe a tese de que para tal tipo de processo, atenta a natureza específica dos crimes em causa, a «excepcional complexidade» opera ope legis, quer se perfilhe a tese oposta, ou seja de que tal qualificação só pode ter lugar ope judicis, o certo é que não é possível, pelo menos por agora, ou seja, até, pelo menos, ao trânsito em julgado da decisão que atribuiu ao processo o falado qualificativo de complexidade, afirmar que a prisão em causa é ilegal.
Pois, como aqui tem sido sucessivamente posto em evidência, a providência em cujo âmbito nos movemos, não sendo um recurso, antes, um instrumento processual extraordinário capaz de, por via expedita, pôr termos a situações de grosseira ilegalidade, basta-se com a cobertura da legalidade da prisão existente à data da sua apreciação, independentemente de a medida coactiva extrema ter sido ou não, porventura, afectada por alguma anteposta situação de ilegalidade, É a afirmação do chamado princípio da actualidade que rege a providência.
No caso, tal como ficou exarado supra, é certo que o despacho que qualificou o processo nos sobreditos termos, ainda não transitou em julgado.
Mas, o eventual recurso de tal decisão não tem efeito suspensivo, e sim, meramente devolutivo - arts. 406.º, n.º 2, 407.º, n.º 1, c), e 408.º, n.º
2, b) a contrario.
Ora, ao contrário do que acontece quando o recurso tem efeito suspensivo, e, por isso, «consistente na paralisação da execução da decisão recorrida, o efeito meramente devolutivo permite que a decisão impugnada mantenha, por enquanto, a sua força, se mantenha mesmo em execução, «apenas se devolvendo ao tribunal superior a (re)solução do caso».
Se assim é, o despacho em causa, independentemente do trânsito, já está de pé, é exequível, pelo menos até que, em eventual recurso, porventura venha a ser revogado.
O que significa que, até lá, pelo menos, o processo é - tem de se haver como tal - de «excepcional complexidade».
E, nessa perspectiva, a manutenção da prisão preventiva logra, ao menos por ora, cobertura legal.
Isto mesmo se aduziu já nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 30/1/03 e de 29/5/03, proferidos, respectivamente, nos habeas corpus n.º
378/03-5 e n.º 2167/03-5, ambos com o mesmo relator, ali se tendo afirmado a propósito: «No caso, não obstante a impugnação pela via ordinária do despacho que qualificou o processo de «excepcional complexidade», o certo é que, face ao regime legal dos recursos, o mesmo se mantém válido no presente e, por isso, sempre daria cobertura legal «actualizada» à manutenção da prisão do requerente, ao menos, até que a Relação decidisse do caso que lhe foi sujeito. É o que resulta da atribuição do efeito não suspensivo a tal recurso - art.ºs 219.º,
406.º, n.º 2, 407.º, n.º 1,c), e 408.º, n.º 2, b), do Código de Processo Penal».
Por aqui se conclui que os fundamentos do ora decidido não são coincidentes com os emergentes do despacho em que se fundamenta o pedido de habeas corpus e o que se lhe seguiu, não se vislumbrando, por isso, qualquer ofensa à Lei Fundamental, nomeadamente violação dos princípios de direito à defesa, à liberdade e ou proporcionalidade.
Não há, pois, de momento, qualquer situação de prisão ilegal a que importasse pôr cobro.
...............................................................................................................................................................................................................................................................”
Do aresto de que a fundamentação acima se encontra extractada, veio a Representante do Ministério Público arguir a respectiva nulidade, brandindo com o argumento segundo o qual o acórdão não conheceu da questão essencial atinente a saber “da legalidade e constitucionalidade de interpretação que admitisse ser possível impor (ou manter) a prisão, quando esta, anteriormente, se mostrava já extinta, por decurso do prazo da sua duração máxima”.
Tendo o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 20 de Novembro de 2003, indeferido a arguição, veio a referida Representante, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, por seu intermédio pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade da interpretação das normas contidas nos artigos 215º, números 1, 2 e 3, e 217º, números 1 e 2, ambos do Código de Processo Penal, na interpretação de que “a prolação de despacho a declarar o procedimento de excepcional complexidade, apesar de posterior ao decurso do prazo de duração máxima da prisão preventiva, sana a ilegalidade da prisão preventiva que se mostrava já extinta por decurso desse prazo”.
2. Determinada a feitura de alegações, rematou a entidade recorrente a por si formulada com as seguintes «conclusões»:
“1º - Do princípio constitucional afirmado pelo nº 4 do artigo 28º da Constituição da República Portuguesa decorre que os prazos legais da prisão preventiva - para além de deverem revelar-se proporcionais e adequados à natureza excepcional de tal medida de coacção - não podem conter ‘hiatos’ de que decorra a potencial ampliação da duração máxima global da medida de coacção, privativa da liberdade, aplicada ao arguido.
2º - Tal princípio constitucional implica que, uma vez consumado o prazo máximo da prisão preventiva, estabelecido na lei para certa fase processual, a medida se extingue imediatamente, devendo o arguido ser logo posto em liberdade, apenas podendo ser submetido a alguma das medidas de coacção não detentivas (previstas nos artigos 197º a 200º do Código de Processo Penal), mas não a prisão preventiva ‘adicional’.
3º - É incompatível com o princípio constitucional da sujeição da prisão preventiva aos prazos previstos na lei a interpretação normativa dos artigos 215º e 217º, nºs 1 e 2, que admite a manutenção do arguido em situação de prisão preventiva, com base na prolação - em momento ulterior àquele em que ocorreu a medida de coacção - de um despacho a declarar o processo de especial complexidade, cuja eficácia - no que se refere à prorrogação dos prazos legais da prisão preventiva - não vale apenas para o futuro, aplicando-se também retroactivamente, em termos de convalidar a ilegalidade decorrente de a prisão preventiva se mostrar irremediavelmente extinta em momento anterior à prolação de tal despacho.
4º - Termos em que deverá proceder o presente recurso”.
Por seu turno, o arguido veio consignar a sua plena concordância com as alegações do Ministério Público, prescindindo expressamente do prazo que lhe foi concedido para alegar.
Cumpre decidir.
3. Atentos os contornos do caso concreto, aceita-se que o acórdão ora sub iudicio - mesmo admitindo que não fosse sufragável uma postura de harmonia com a qual, estando em causa um ilícito de tráfico de estupefacientes, do nº 3 do artº 54º do Decreto-Lei nº 15/93, decorre, sem necessidade de despacho judicial em tal sentido, que o cabido processo assumirá a configuração de excepcional complexidade (cfr., aliás, sobre a questão de inconstitucionalidade da interpretação que perfilhe esse entendimento, o Acórdão deste Tribunal nº 246/99, publicado na 2ª Série do Diário da República- de 28 de Julho de 1999), fez, de forma implícita (e diz-se de forma implícita, já que não se lobriga em tal aresto qualquer asserção de onde se retirasse, expressamente, a impostação do problema), a aplicação dos preceitos constantes do requerimento de interposição do presente recurso com o sentido interpretativo ora questionado.
Na verdade, como decorre daquele aresto, aí foi entendido que no despacho lavrado pelo Juiz da 1ª instância em 10 de Outubro de
2003 (acima transcrito) foi explicitamente declarada a excepcional complexidade do processo.
Não interessa agora saber se, efectivamente, daquele despacho resultava, de forma explícita, que, na 1ª instância, foi declarada a referida excepcional complexidade ou se, antes, a essa «característica» seria ainda de atender caso se não sufragasse a tese (não seguida pelo Juiz daquela instância) de que nos ilícitos a que se reporta o nº 3 do aludido artº 54º é necessária a prolação de despacho judicial expresso a declarar a especial complexidade do processo.
O que resulta do acórdão de 16 de Outubro de 2003 - e é tornado nítido no subsequente acórdão de 20 de Novembro do mesmo ano, que indeferiu a arguição de nulidade assacada ao primeiro - é que o Supremo Tribunal de Justiça ponderou a circunstância de ter sido proferido despacho a declarar a especial complexidade do processo e, muito embora o proferimento tivesse ocorrido quando já estava esgotado o prazo máximo de prisão preventiva estabelecido em abstracto no nº 2 do artº 215º do Código de Processo Penal para um ilícito tal como aquele pelo qual o arguido veio a ser condenado, entendeu que com tal proferimento, no momento da proferenda decisão sobre o habeas corpus, não seria possível dizer-se que a prisão padecia de ilegalidade.
Isso significa que, volens nolens, o Supremo Tribunal de Justiça, no feito ora em apreciação veio a conferir aos normativos ínsitos nos artigos 215º, números 1 a 3, e 217º, uma dimensão normativa de acordo com a qual a prolação de despacho judicial a declarar de excepcional complexidade do procedimento por um dos crimes referidos no nº 2 daquele artº 215º, prolação essa efectuada após ter decorrido o prazo máximo de duração da prisão preventiva previsto nos números 1 e 2 do mesmo artigo, não implica a extinção daquela medida de coacção.
E, por isso, se entrará no conhecimento do objecto desta impugnação.
4. De harmonia com o que se consagra no nº 1 do artigo
31º da Constituição, é imposta a providência de habeas corpus em face, inter alia, de prisão ilegal.
Como sublinham Gomes Canotilho e Vital Moreira
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 199), a “prisão ou detenção é ilegal quando ... tenham sido ultrapassados ... os prazos estabelecidos na lei para a duração da prisão preventiva”.
Por outro lado, o artigo 28º, nº 4, da mesma Lei Fundamental, prescreve que a prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei.
Para se saber quais sejam esses prazos, necessário é buscar no ordenamento jurídico infra-constitucional as regras que comandam a duração máxima da mais severa medida de coacção processual penal, sendo que tais regras, como sabido é, se encontram consagradas nos números 1 a 4 do artº 215º do diploma adjectivo criminal, aí se diferenciando variados prazos em função das fases processuais, de determinadas espécies de crimes e em razão da sua punibilidade abstracta e, por fim, da existência de recurso para o Tribunal Constitucional ou da suspensão do processo para julgamento, em outro tribunal, de uma questão prejudicial.
Por seu turno, o nº 1 do artº 217º do mesmo corpo de leis consagra a regra segundo a qual o arguido será posto em liberdade logo que a medida de prisão preventiva se extinguir.
A concatenação deste nº 1 do artº 217º com os números 1 a 4 do artº 215º inculca, numa leitura que atenda ao seu teor literal, que, esgotado que esteja o prazo fixado nestes últimos números, não se poderá manter a prisão preventiva imposta ao arguido no procedimento concreto a que ela respeitava, sendo de anotar que, no vertente caso, nos situamos perante uma hipótese em que cobrava aplicação a alínea d) do nº 1, em conjugação com o nº 2, ainda do mesmo artigo.
Ora, conquanto, in casu, o prazo máximo de duração da prisão preventiva correspondente à fase processual, ao crime e à sua punibilidade, tudo nos termos dos números 1 e 2 do citado artº 217º, se encontrasse já excedido, o acórdão em análise entendeu que a prolação de um despacho judicial, tirado posteriormente ao esgotamento daquele prazo, e por intermédio do qual foi declarada a excepcional complexidade do procedimento, tinha a virtualidade de fazer elevar tal prazo de acordo com o preceituado no seu nº 3.
É esta, pois, a questão de constitucionalidade que ora se aprecia.
5. Este Tribunal, a propósito da norma vertida no § 1º do artº 273º do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto nº 16 489, de 15 de Fevereiro de 1929 (redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 402/82, de 23 de Setembro), teve ocasião de referir no seu Acórdão nº 137/92 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º volume, 549 a 581, e rectificado pelo Acórdão nº 144/93) que se o limite da restrição à liberdade operada por uma determinada norma (no caso então a decidir a norma acima apontada) perde todo o efeito útil - deixando de acautelar os interesses da realização da justiça - então a mesma deixará de legitimar-se no nº 2 do artigo 18º da Constituição, não configurando a restrição uma qualquer exigência de concordância prática com outros valores constitucionalmente protegidos.
E, mais, adiante, asseverou que, se se criar
(nomeadamente por interpretação das regras legais) um hiato no sistema de contagem dos prazos de prisão preventiva, isso redunda numa subversão da limitação legal do tempo de prisão preventiva imposta pelo nº 4 do artigo 28º do Diploma Básico, por isso que, dessa sorte, se alcança um tempo de prisão preventiva sem tutela de lei.
Se, como este Tribunal entende, são de aceitar estas conclusões que se extraem do mencionado Acórdão nº 137/92, resulta manifesto que, em face do prescrito nos números 1 e 2 do artº 217º do vigente Código de Processo Penal, estava já extinto o prazo máximo de prisão preventiva imposta ao arguido A. (e isto, claro está, para quem perfilhe o entendimento de que o procedimento pelo crime pelo qual se encontrava condenado não é de considerar, tão só por força do estabelecido no nº 3 do artº 54º do Decreto-Lei nº 15/93, ou seja, sem necessidade de despacho judicial em tal sentido, como um procedimento ao qual se deve conferir a característica de excepcional complexidade).
Ora, a interpretação normativa levada a efeito pelo Supremo Tribunal de Justiça, volens nolens, repete-se, conferiu à prolação do despacho de 10 de Outubro de 2003 um «efeito retroactivo» assim, e para se utilizarem as palavras da entidade recorrente, “legitimando a manutenção da medida de coacção extrema quando a mesma já se havia extinguido”.
Seguramente que o legislador constituinte, ao afirmar no nº 4 do artigo 28º da Lei Fundamental que a prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei ordinária, não desejou que, esgotados que fossem eles em face dos preceitos nesta consagrados, pudesse manter-se a mais penalizante medida de coacção por efeito de uma (re)apreciação posterior que viesse a conferir ao procedimento uma característica que, aquando do esgotamento do prazo, ainda não estava declarada.
Uma linha de raciocínio interpretativo das normas ordinárias que a isso conduzisse retiraria eficácia prática àquele comando constitucional - que se ateve tão só aos prazos que a lei infra-constitucional dispusesse -, pois que dessa linha decorre inelutavelmente a potencialidade de ampliação daqueles prazos.
6. Em face do exposto, o Tribunal decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do nº 4 do artigo 28º da lei Fundamental, as normas constantes dos artigos 215º, números 1 a 3, e 217º, ambos do Código de Processo Penal, uma dimensão interpretativa de acordo com a qual a prolação de despacho judicial a declarar de excepcional complexidade do procedimento por um dos crimes referidos no nº 2 daquele artº
215º, prolação essa efectuada após ter decorrido o prazo máximo de duração da prisão preventiva previsto nos números 1 e 2 do mesmo artigo, não implica a extinção daquela medida de coacção;
b) Em consequência, conceder provimento ao recurso, determinando a reforma do acórdão impugnado em consonância com o juízo de inconstitucionalidade que se deixou formulado.
Lisboa, 8 de Janeiro de 2004
Bravo Serra Vítor Gomes Gil Galvão
Luís Nunes de Almeida