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Processo n.º 879/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
(Conselheira Catarina Sarmento e Castro)
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Comarca de Leiria, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso obrigatório de constitucionalidade, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores, adiante designada LTC), da sentença daquele Tribunal, na parte em que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, da norma do artigo 56.º, n.º 2, do Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas (aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 452/99, de 5 de novembro, doravante ECTOC).
2. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou alegações, concluindo como se segue:
«1.º
Não dispõe sobre matéria de direitos, liberdades e garantias, nem consubstancia uma restrição a um direito fundamental, a norma contida no n.º 2 do artigo 56.º do Decreto-Lei n.º 452/99, de 5 de novembro, que prevê a responsabilidade civil subsidiária dos Técnicos Oficiais de Contas.
2.º
Pelo que o conteúdo de tal norma não se integra na área da competência reservada da Assembleia da República.
3.º
Assim sendo, a norma em causa não extravasa a Lei n.º 126/99, de 20 de agosto - lei habilitante do Decreto-Lei n.º 452/99, em que se insere -, que autorizou o Governo a aprovar o novo Estatuto dos Técnicos Oficiais de Contas, designadamente, introduzindo novos preceitos.
4.º
Não é, pois, a referida norma organicamente inconstitucional, razão, pela qual, merece provimento o recurso.»
3. O recorrido não contra-alegou.
4. Ocorrida mudança de relator, por o primitivo relator ter ficado vencido, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
5. A norma do artigo 56.º, n.º 2, do ECTOC, na redação do Decreto-Lei n.º 425/99, de 5 de novembro, reza assim:
«Artigo 56.º
Deveres recíprocos dos técnicos oficiais de contas
1 — (…).
2 — Os técnicos oficiais de contas quando assumam a responsabilidade por contabilidades anteriormente a cargo de outro técnico oficial de contas, devem certificar-se que os valores provenientes da sua execução estão inteiramente satisfeitos ao técnico oficial de contas cessante, sob pena de se assumirem perante este pelos montantes em falta.»
Esta norma foi substancialmente alterada pelo Decreto-Lei n.º 310/2009, de 26 de outubro (emitido ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 97/2009, de 3 de setembro), que alterou o Decreto-Lei n.º 425/99 e o Estatuto, por este aprovado, da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, que passou a denominar-se Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas.
Acontece que nos presentes autos e no âmbito do presente recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade apenas está em apreciação a constitucionalidade da referida norma na redação (hoje não vigente) que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 452/99.
De facto, foi essa a norma que a sentença recorrida recusou aplicar (onde, aliás, nem se faz menção a esta alteração), sendo certo que a ação decidida por esta sentença foi intentada em data anterior à mencionada alteração.
6. A sentença recorrida julgou improcedente a ação intentada por uma empresa de contabilidade contra o técnico oficial de contas, aqui recorrido. A autora invocava a circunstância de o réu a ter substituído nas funções de técnico oficial de contas junto de um conjunto de sociedades e pedia o pagamento de quantias em dívida, correspondentes aos serviços de contabilidade que prestara à dita sociedade e que esta não lhe pagara.
A decisão de improcedência foi fundamentada na recusa de aplicação da norma do n.º 2 do artigo 56.º do ECTOC, por se entender que a mesma é organicamente inconstitucional por ter ido além da lei de autorização legislativa respetiva (Lei n.º 126/99, de 20 de agosto).
Em sentido contrário se pronunciou o representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional, salientando que a norma em causa não dispõe sobre matéria de direitos, liberdades e garantias, nem consubstancia uma restrição a um direito fundamental, pelo que não se integra na área da competência reservada da Assembleia da República.
6. Como o Tribunal já expendeu no Acórdão n.º 29/2000, «nada obsta a que, no diploma autorizado, o Governo legisle sobre outras matérias relacionadas ou conexas com as que foram objeto de autorização legislativa, desde que aquelas se não insiram na esfera de competência da Assembleia da República».
Daí que o facto de, comprovadamente, a norma impugnada não estar coberta pela lei ao abrigo da qual foi emitido o Decreto-Lei n.º 425/99 (Lei n.º 126/99, de 20 de agosto), não atesta, desde logo, a sua inconstitucionalidade orgânica, pois há que avaliar se se trata de norma que versa sobre matéria da reserva relativa de competência da Assembleia da República. Só em caso de resposta afirmativa a essa questão pode ser confirmado o vício que a sentença recorrida imputou à norma do artigo 56.º, n.º2, do ECTOC.
Esta norma inclui-se no Capítulo VI do Estatuto, que disciplina os direitos e deveres dos técnicos oficiais de contas e, de acordo com a respetiva epígrafe, disciplina os “deveres recíprocos dos técnicos oficiais de contas”. De facto, o n.º 1 deste preceito estabelece deveres recíprocos entre estes profissionais, concretamente, deveres de colaboração, através da disponibilização de elementos e esclarecimentos, nos casos em que um técnico oficial de contas assume funções anteriormente cometidas a outro técnico oficial de contas.
Já o n.º 2 do artigo 56.º – aqui questionado do ponto de vista da sua constitucionalidade – prevê um dever do técnico oficial de contas que sucede a outro na prestação de serviços a uma determinada entidade, traduzido na obrigação de certificar-se se estão pagas as quantias devidas ao seu antecessor, «sob pena de se assumirem perante estes pelos montantes em causa».
Ou seja, no caso de um técnico oficial de contas tomar a cargo uma determinada contabilidade que anteriormente estava entregue a outro profissional, terá de se assegurar que os valores devidos, pela “sociedade-cliente”, ao técnico oficial de contas que o antecedeu nessas funções, foram integralmente pagos, sob pena de também ele poder ser responsável pelos valores em dívida.
7. A análise feita até aqui demonstra, sem margem para dúvida, que a norma questionada não versa sobre matéria relativa a associações públicas. De facto, a norma reputada inconstitucional, não obstante incluir-se no, então vigente, Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, não respeita à própria associação pública (Câmara), à sua organização, atribuições ou competências, e nem sequer diz respeito ao estatuto dos seus associados.
Não se trata, por isso, de matéria incluída na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, prevista na primeira parte da alínea s) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.
8. Importa agora verificar se a norma em questão consubstancia uma intervenção legislativa no domínio dos direitos, liberdades e garantias e, como tal, deve considerar-se incluída na reserva legislativa atribuída à Assembleia da República pela alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º
A reserva legislativa prevista nesta alínea b) abrange todos os direitos, liberdades e garantias do Título II da Parte I da Constituição, incluindo o direito de liberdade de escolha da profissão, consagrado no n.º 1 do artigo 47.º, aqui relevante na dimensão da liberdade de exercício de profissão.
Como salientam Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, 967, «não obstante o artigo 47.º, n.º 1, só se referir ao direito de escolha livre da profissão ou do género de trabalho, a escolha, que toca a questão do se uma profissão é assumida, continuada ou abandonada (realização de substância), pressupõe o exercício, que se refere á questão do como (realização da modalidade), da mesma maneira que a segunda de nada valeria sem a primeira».
Cumpre, ainda, lembrar que este Tribunal Constitucional tem entendido a reserva legislativa parlamentar em matéria de direitos, liberdades e garantias como abrangendo «tudo o que seja matéria legislativa e não apenas as restrições do direito em causa» (cfr., entre outros, os Acórdãos n.ºs 128/2000 e 255/2002, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt; e, no mesmo sentido, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, II, 4.ª ed. revista, Coimbra, 2010, 327). O que significa que a reserva de lei não incide apenas sobre verdadeiras e próprias restrições, mas também sobre limites imanentes da liberdade de profissão (cfr. Acórdão 255/2002).
9. Assim definido o âmbito da reserva legislativa parlamentar, importa agora avaliar se a norma aqui em questão consubstancia uma intervenção legislativa em matéria de direitos, liberdades e garantias, mais concretamente, em matéria de liberdade de exercício da profissão.
Embora a epígrafe do artigo 56.º do ECTOC anuncie que o preceito trata dos “deveres recíprocos” dos técnicos oficiais de contas, a verdade é que o seu n.º 2 coenvolve a disciplina de uma relação com terceiro: a sociedade dadora do serviço de contabilidade, anteriormente prestado por um técnico oficial de contas e que passa a ser executado por um outro. Visando a garantia do pagamento dos honorários devidos ao primeiro, determina-se que essa relação de prestação de serviços não pode ser assumida pelo segundo sem que este se certifique que estão integralmente satisfeitas as importâncias a que aquele, por força dessa relação, tinha direito, sob pena de ser responsabilizado pelo seu pagamento.
O que a norma pretende é regular a relação estabelecida entre os técnicos oficiais de contas e as empresas para que estes prestam serviços de contabilidade, criando uma garantia, no interesse de todos os profissionais e de um bom funcionamento da concorrência no mercado, de que, com o termo dessa relação, não fiquem por cumprir débitos que correspondem a custos de exercício empresarial. O interesse do técnico que assume funções em não ser responsabilizado é instrumentalizado para instigar a que a entidade dadora do serviço cumpra as suas obrigações perante o técnico cessante, pois o cumprimento, por todos os destinatários, do dever fixado na norma impugnada obstaculiza o acesso, pela entidade em falta, a um serviço que lhe é indispensável. Está fundamentalmente em causa uma situação específica atinente às relações entre os técnicos oficiais de contas e as entidades para que prestam serviço - a sucessão no exercício de funções numa mesma entidade -, intentando-se evitar que, através dessa mudança, a entidade empresarial logre manter tais serviços de contabilidade (que, muitas vezes, lhe são legalmente exigidos) sem satisfazer integralmente as suas obrigações perante o técnico oficial de contas cessante.
Sendo esta a dimensão relacional que aqui avulta, não pode entender-se que estamos perante uma regulação legal de “conteúdo profissional” ou que diretamente interfira com o exercício da profissão, pois a disciplina legal aqui prevista não respeita, direta e globalmente, ao exercício da profissão de técnico oficial de contas. Reguladas são apenas as condições em que um técnico assume uma contabilidade anteriormente a cargo de um outro. A responsabilidade em que pode incorrer o técnico que não cumpra o dever que, nesta circunstância, lhe é fixado, representa uma disciplina pontual de uma envolvente relacional “externa” ao exercício profissional, propriamente dito, não interferindo com os modos de o levar a cabo. Não se situa, nessa medida, no âmbito de proteção de nenhuma das dimensões garantísticas da liberdade de exercício da profissão ? cfr., quanto aos direitos em que se desdobra esta liberdade, Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., 967-968.
É certo que, em caso de persistente recusa do pagamento dos valores em dívida ao técnico que cessa funções, a única forma de o indigitado sucessor evitar que aquele lhe possa exigir esse pagamento é abster-se de lhe suceder na prestação dos serviços. Com isso, perde uma oportunidade de exercício profissional. Mas tal representa apenas um efeito reflexo de uma disciplina que não tem, em si mesma, eficácia conformadora ou incidência no conteúdo dos direitos que dão expressão à liberdade de exercício da profissão. Mais não é do que um dado circunstancial que cria um sério obstáculo ao estabelecimento de uma nova relação profissional, mas deixa intocada a liberdade de exercício, plenamente atuável em todas as direções relacionais em que não se verifique esse obstáculo.
Assim sendo, há que concluir que o n.º 2 do artigo 56.º do ETOC não dispõe sobre o direito de livre exercício da profissão, consagrado no artigo 47.º da Constituição e, consequentemente, não se inclui na reserva relativa prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, tendo-se por não verificada a invocada inconstitucionalidade orgânica.
III - Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 56.º, n.º 2, do Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas (aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 452/99, de 5 de novembro);
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, devendo a sentença recorrida ser reformulada em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 12 de julho de 2012 – Joaquim de Sousa Ribeiro – João Cura Mariano – José da Cunha Barbosa (vencido nos termos da declaração de voto da Exma. Conselheira Catarina Sarmento e Castro, que acompanho) – Catarina Sarmento e Castro (vencida, nos termos da declaração que junto) – Rui Manuel Moura Ramos
VOTO DE VENCIDO
1. Fiquei vencida quanto à decisão de não julgar inconstitucional a norma contida no segmento final do n.º 2 do artigo 56.º do Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 452/99, de 5 de novembro, na sua redação originária.
A meu ver, tal norma é organicamente inconstitucional, por extravasar a extensão da autorização conferida pela Lei n.º 126/99, de 20 de agosto, violando assim o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), com referência ao artigo 47.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.
2. Esta norma associa ao incumprimento do dever dos técnicos oficiais de contas, quando assumam a responsabilidade por contabilidades anteriormente a cargo de outro técnico oficial de contas, de se certificarem que os valores provenientes da sua execução estão inteiramente satisfeitos ao técnico oficial de contas cessante, a consequência de se assumirem perante este pelos montantes em falta.
Em minha opinião, constitui matéria incluída no âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República a definição dos deveres de conduta a que ficam adstritos os associados das associações profissionais, pelo menos na delimitação do seu conteúdo essencial, no caso dos deveres que, como o aqui em causa, marcam muito significativamente o exercício da profissão, impondo um condicionalismo com tão pesada consequência, sendo claramente marcante do exercício profissional.
3. A (então) Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas é uma associação pública profissional, com a competência de “representar, mediante inscrição obrigatória, os interesses profissionais dos técnicos oficiais de contas e superintender em todos os aspetos relacionados com o exercício das suas funções.” (artigo 1.º do aludido Estatuto).
A institucionalização de Ordens profissionais “corresponde ao aproveitamento pelo Estado da tendência inerente a toda a associação profissional de regular o acesso à profissão, de definir os padrões de exercício e conduta profissional e de punir as infrações à disciplina profissional (…). Na realidade, as associações profissionais são “organismos administrativos em potência” (Schuppert, apud Vital Moreira, “Autorregulação Profissional e Administração Pública”, Almedina, 1997, p. 261).
De facto, por estarem incumbidas de tarefas administrativas, dessa forma participando no poder público, inserem-se as associações públicas no âmbito da “administração autónoma”, conceito traduzível na “administração de interesses públicos, próprios de certas coletividades ou agrupamentos infraestaduais (de natureza territorial, profissional ou outra), por meio de corporações de direito público ou outras formas de organização representativa, dotadas de poderes administrativos, que exercem sob responsabilidade própria, sem sujeição a um poder de direção ou de superintendência do Estado nem a formas de tutela de mérito” (Vital Moreira, “Administração Autónoma e Associações Públicas”, Coimbra Editora, 1997, p. 79).
O reconhecimento das associações públicas como parte integrante da estrutura da Administração ocorreu, no texto da Lei Fundamental, com a revisão constitucional de 1982, passando o dispor o artigo 267.º, n.º 3 (hoje, n.º 4) da Constituição da República Portuguesa, o seguinte:
“ 3. As associações públicas só podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas, não podem exercer funções próprias das associações sindicais e têm organização interna baseada no respeito dos direitos dos seus membros e na formação democrática dos seus órgãos”
Ficaram assim estabelecidos alguns princípios materiais, a que devem estar subordinadas as associações públicas, nomeadamente de natureza profissional, e que podem ser sintetizados nos termos seguintes:
1) a vinculação da respetiva constituição ao interesse funcional de satisfação de necessidades específicas de conformação publicística da profissão, como corolário dum princípio de proporcionalidade (traduzido na correspondência entre a medida das limitações inerentes à liberdade de associação e os benefícios advenientes da organização pública);
2) proibição do exercício de funções sindicais;
3) respeito pelos direitos dos membros;
4) formação democrática dos órgãos respetivos (cfr. Jorge Miranda, “O regime das associações públicas”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXVII, 1986, p. 80, 81; Parecer da Comissão Constitucional n.º 2/78, Vol. 4, INCM, 1979, p. 151 e ss.).
4. A norma em causa cria um dever - e estipula a consequência para o seu não cumprimento - para satisfazer exigências conexionadas com o associativismo de tipo profissional: a norma em apreço impôs ao exercício da profissão de técnico oficial de contas um dever de conduta em face dos colegas. Tal dever é simultaneamente imposto em virtude do exercício da profissão em causa e da participação numa determinada organização profissional – i.e., a conformação do exercício da profissão é funcionalizada, entre outros, ao interesse da satisfação das necessidades coletivamente sentidas pela classe profissional. É um dever que se impõe a todos os profissionais que a exerçam, sempre que assumam a responsabilidade pela contabilidade de uma entidade, tendo o seu incumprimento uma pesada consequência que afetará todos quantos o incumpram. A meu ver, o “conteúdo profissional” da norma, bem como o seu caráter de norma reguladora da relação profissional, não se perde pelo facto de este dever recíproco ser instituído quando está em causa a sucessão num serviço prestado a um terceiro, a sociedade que procura os serviços de contabilidade.
Ora, não pode deixar de se considerar que representa um expressivo condicionalismo do exercício da profissão impor aos técnicos oficiais de contas, quando assumam a responsabilidade por contabilidades anteriormente a cargo de outro técnico oficial de contas, um dever de se certificarem que os valores provenientes da sua execução estão inteiramente satisfeitos ao técnico oficial de contas cessante, com a consequência, fortemente penalizadora, em caso de incumprimento, de se assumirem perante este pelos montantes não pagos. Ao procurar proteger os profissionais que cessam funções, do incumprimento do dever imposto, a norma associa, de modo automático, uma consequência penalizadora, com intuito inibidor.
Acresce que a inobservância deste dever de se certificarem de que se encontram pagos aos colegas cessantes todos os valores devidos, que tem a consequência de se assumirem perante o colega por montantes em falta, pode, ainda, acarretar a aplicação, pela própria associação profissional, da sanção disciplinar de suspensão.
Nestes moldes, a norma em causa define, inovatoriamente, um dever de conduta profissional dos técnicos oficiais de contas, relevante na sua relação com colegas, que não poderemos deixar de considerar muito significativo, quer, atendendo à consequência automaticamente derivada do seu não cumprimento, quer, tendo (também) em conta as potenciais consequências disciplinares do seu incumprimento (artigo 66.º).
Tal norma cria, por essa razão, uma limitação à liberdade de exercício de profissão constitucionalmente garantida no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição: ao exercício da profissão pelos técnicos oficiais de contas é imposto um condicionalismo, traduzido num dever de conduta previsto para salvaguarda de colegas, cuja inobservância tem consequências significativas, e que pode mesmo conduzir, em certas condições, à aplicação, pela própria associação, de sanção disciplinar de suspensão de exercício da profissão.
Assim, a definição, na sua essência, deste condicionalismo, contendendo com matéria de direitos, liberdades e garantias, enquadra-se no âmbito da competência legislativa reservada da Assembleia da República, pelo que carecia de credencial legislativa, nos termos definidos no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), com referência ao artigo 47.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa, e só com autorização parlamentar estaria o Governo legitimado a emiti-la.
Lisboa, 12 de julho de 2012