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Proc. n.º 594/03
2ª Secção Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 - A., identificado no processo, recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa do despacho interlocutório proferido pelo Senhor Juiz do 1º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, nos autos do processo de inquérito n.º 1718/02.9JDLSB, no decurso do auto do seu interrogatório como arguido detido, bem como do despacho que decidiu aplicar-lhe a medida de coacção de prisão preventiva, todos de 20 de Maio de 2003.
2 - O despacho interlocutório é do seguinte teor:
«Seguidamente por ele senhor Juiz foi proferido o seguinte despacho: No que respeita à nulidade da utilização como meio de prova do teor dos diários apreendidos no âmbito da busca realizada à residência do arguido cumpre em primeiro lugar, e com o devido respeito, relembrar que só podem existir nulidades em Processo Penal quando qualquer acto ou decisão tenha sido levada a cabo ou proferida. A defesa arguiu a nulidade da utilização para efeitos probatórios do teor dos diários. Ora, este Tribunal não proferiu qualquer decisão cujo fundamento tenha na sua génese o conteúdo dos diários, pelo que a alegada nulidade é inexistente. No entanto, sempre se dirá, em jeito de antecipação, que a defesa não põe em causa a legitimidade da busca e que o que contesta é que aquilo que foi encontrado na busca, a saber os diários, possam ser utilizados como meio de prova. No entanto, com respeito por opinião diversa assim não entendemos. Na verdade, a lei é clara, no artigo 125º do CPP, ao dizer que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei. Do elenco das que são proibidas consta a do artigo 126º, n.º 3, mas para tal acontecer necessário seria que a sua obtenção não estivesse legitimada por um despacho judicial, o que não acontece. O Tribunal não põe em causa que a utilização do material probatório contido nos diários represente uma intromissão na vida privada, só que o próprio legislador constitucional deu o seu aval a tal intromissão ao ressalvar que tal vida privada poderia ser violada por ordem judicial. Ao ser ordenada uma busca, todo o material apreendido pode ser legitimamente utilizado desde que a sua forma de obtenção não seja nenhuma das tipificadas nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 126º. Basta atender ao auto de busca para se poder constatar que nenhuma das situações prevista no dito n.º 2 ocorreu. Pelo exposto julga-se improcedente a invocada nulidade. No que respeita à irregularidade invocada este Tribunal, no âmbito deste mesmo processo, já teve ocasião de se debruçar sobre tal questão. Antes, contudo, saliente-se que a posição defendida pelo arguido, certamente sem qualquer outra intenção, omite o facto de que este Tribunal começou o presente interrogatório informando o arguido que estava detido ao abrigo de um mandado emitido pelo Ministério Público em que lhe eram imputados os crimes ali referidos, que a prática de tais crimes terá ocorrido entre 1998 e a data presente e que as vítimas dos mesmos seriam alunos ou ex-alunos da B. e eventualmente outras pessoas. Este Tribunal, como primeira pergunta, questionou o arguido sobre se mantivera relações sexuais com menores de idade e, designadamente, com indivíduos com menos de 18 anos ou menos de 16. O arguido, conforme resulta das suas próprias respostas, referiu desde logo que no período em questão não mantivera qualquer relação sexual com menores de 16 anos. Ora, são estas relações sexuais - com menores de 16 anos - que estão na base da emissão do mandado de detenção e seu cumprimento. Conforme este Tribunal referiu no despacho de fls. 1139 e seguintes
'a técnica utilizada no interrogatório foi a de começar a inquirir o arguido sobre factos gerais' - saber se manteve relações com menores de 16 anos no período em questão - 'só descendo à pormenorização caso tal se justificasse'. Assim, por exemplo, se o arguido tivesse referido que tinha mantido uma ou várias relações sexuais com menores de 16 anos e por qualquer razão não se recordasse da sua identificação, este Tribunal ter-lhe-ia perguntado se manteve alguma relação com o senhor 'A', 'B' ou 'C'. O arguido, ao negar os factos, acaba por tornar desnecessária a sua confrontação com as provas. E percebe-se que o Tribunal assim haja actuado: É que se por um lado é necessário assegurar os direitos da defesa do arguido, por outro é necessário assegurar o segredo de justiça e como bem refere a defesa o contraditório não vigora nesta fase ou surge algo mitigado e de nada valeria para a defesa do arguido confrontá-lo com a prova 'X', 'Y' ou 'Z', porque a resposta seria invariavelmente a mesma: Não manteve relações sexuais com menores de 16 anos. E este facto não pode ser desconhecido do arguido. O segredo de justiça a par do direito de defesa é um interesse que tem que ser salvaguardado e tal salvaguarda traduz-se na não divulgação das provas constantes do inquérito para além do estritamente necessário ao direito de defesa do próprio arguido (neste sentido Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal - Vol. III - 155 e 156). Pelo exposto não se atende à invocada irregularidade, julgando-se a mesma improcedente.».
3 - Por seu lado, o despacho em que se decidiu aplicar ao arguido a medida cautelar de prisão preventiva é do seguinte teor:
«Declara-se válida a detenção porque efectuada ao abrigo no disposto nos artigos n.os 257º, n.º 1, e 258º, n.os 1, e 3 do C. P. Penal, tendo sido observado o prazo previsto na lei - art. 141º, n.º 1 do mesmo diploma . Valida-se a revista efectuada ao arguido nos termos e para o efeitos no disposto nos artigos 251º, n.º 2, e 174º, n.º 5, do CPP. Congratula-se este Tribunal com o facto de há muito ter sido abolido o Santo Ofício da Inquisição já que para tal Tribunal as provas contidas nestes autos determinariam seguramente que pelo menos um poste estivesse a ser colocado no Terreiro do Paço e que fogueira se não estivesse acesa estaria certamente a ser preparada. É que, ao que julgamos saber aquele Tribunal funcionava muito à base do ouvir dizer, do disse que disse e de provas forjadas. Mas isso foi num outro tempo. Neste processo e neste tempo coligiu o Ministério Público um manancial probatório que lhe permitiu não só ordenar a detenção como promover uma prisão preventiva.
Na verdade, o que destes autos resulta é que o arguido no período compreendido entre 1998 e a data presente se relacionou sexualmente com menores do sexo masculino que tinham à data de tais relações menos de 16 anos, tendo com este praticado actos de sexo oral e anal e masturbação, designadamente. A imputação de tais factos a qualquer pessoa é em si grave e sendo certo que, em abstracto, se poderia estribar tão só em prova testemunhal houve o cuidado da parte do investigador de confrontar depoimentos, de proceder a buscas - não tanto a de hoje que é irrelevante para a detenção - de ver e analisar topografias de locais e edifícios, proceder a exames médicos e periciais, tudo com vista a poder afirmar a credibilidade dos depoimentos que estribam o essencial das imputações. Resulta assim, e face ao exposto, que o arguido, conforme o teor de fls. 131 a
134, 139, 295 a 300, 386 a 388, 508 a 512, 1224 a 1231, 1286 a 1288, 1410 a
1413, 1499 a 1501, 2056 e 2057, 2408 a 2410, 2585 a 2587, 2588 e 2589, 2591 a
2593, 2699 a 2702, 2878 a 2881, 2919 a 2922, 3634 a 3639, 3763 a 3766, 3786 a
3789, 3840 a 3844, 3862 a 3866, 4005 a 4013, 4304, 4243, 4286, 4234 a 4241, 4436 a 4438, e 4401 a 4406, que o arguido cometeu três crimes de abuso sexual de crianças previstos e punidos pelo artigo 172º, n.º 1, do Código Penal e pelo menos 8 crimes de abuso sexual de crianças previstos e punidos pelo artigo 172º, n.º 1, e 2, também do Código Penal. A versão do arguido - de que nada praticou - não colhe, considerando a fidedignidade da prova contra si avolumada. Os indícios são efectivamente fortes, pois que se repetidos em sede de julgamento, devidamente sujeitos ao contraditório, redundarão numa pena de prisão efectiva e tal resulta desde logo das regras de concurso constantes do artigo 77º do Código Penal, pois que dificilmente o arguido seria condenado numa pena de três anos suspensa na sua execução. É que não tendo o arguido ainda sido condenado certo é que apresenta um historial de relações sexuais com menores de idade inferior a 16 anos. Os factos estarão é certo prescritos não sendo passíveis de perseguição criminal per si, mas são obviamente relevantes para efeitos do disposto no art. 72.º do Código Penal. Tais factos - os ocorridos antes de 1998 - inculcam a ideia de que o arguido tem uma inclinação sexual para manter o tipo de relações sexuais que a lei pune, ou seja, as relações sexuais com menores de idade inferior a 16 anos. Não sendo o signatário médico não pode afirmar que estamos perante um comportamento compulsivo já que tal afirmação pode ser entendida como sendo um juízo pericial embora estejamos certos que não foi essa a intenção do Ministério Público. O que, como Juiz não escapa ao signatário, é a conduta reiterada, sistemática e persistente do arguido. Ora, se o arguido sempre actuou nas suas relações sexuais da forma descrita, mantendo-as em situação que a lei pune, as regras da experiência permitem a afirmação que as continuará a manter da mesma forma. E é este juízo de prognose que o Ministério Público fez, e bem. E fê-lo em concreto já que o arguido, não obstante referir que em 1982 se viu com ou sem razão envolvido em processo de jaez idêntica à do presente, não deixou de assumir exactamente o mesmo tipo de condutas que agora lhe é imputado. Em concreto e face à personalidade demonstrada pelo arguido existe um forte perigo de continuação da actividade criminosa. É esta continuação de actividade criminosa que em si é geradora de um alarme social e de uma intranquilidade pública. Para que estes perigos se verifiquem não é necessária uma revolta popular ou um motim. Basta tão só que se verifique num dado momento histórico, num determinado contexto e numa dada localização geográfica um sentimento de insegurança, de repulsa e de incompreensão para com uma determinada conduta concreta. Este processo com os contornos que assume é bem a demonstração de tal sentimento de insegurança e repulsa e se a comunicação social tem um efeito por vezes perverso não se poderá deixar de considerar que ela é o espelho de uma sociedade. Como bem referiu a defesa, os tempos que correm não são os tempos de antigamente. O que se escreve e o que se diz - por muito disparatado que seja - não está sujeito a um controlo estatal. Assim, é facto público e notório, que não carece de alegação ou demonstração, o sentimento generalizado de que condutas como aquelas que são imputadas ao arguido não são admissíveis para a generalidade das pessoas e não menos certo é que a generalidade das pessoas, neste momento histórico, julgará incompreensível a conduta indiciariamente levada a cabo pelo arguido.
No que respeita ao perigo de perturbação do inquérito teremos de convir que os autos não fornecem elementos para que nesta fase se possa afirmar o mesmo. O arguido é pessoa com imensos contactos, provavelmente terá algum poder económico mas tal só não basta para que se possa afirmar a existência do perigo. Face a todo o exposto é entendimento deste Tribunal que só a prisão preventiva do arguido é adequada, proporcional e suficiente para fazer face às necessidades cautelares do processo, pelo que a determinamos ao abrigo do disposto nos arts.
191º, 193º, 202º, n.º 1, al. a), e 204º, al. c), todos do CPP . Passe mandados de condução à cadeia e cumpra o disposto no artigo 194º, n.º 3, do CPP. Nos termos do artigo 178º do Código do Processo Penal, por ser susceptível de servir a prova, determino a apreensão de todos os telemóveis que se encontrarem na posse do arguido, passando revista se necessário. Da apreensão e revista lavrar-se-á auto.».
4 - Na motivação do recurso interposto para a Relação, o ora recorrente sintetizou as razões da sua discordância com o decidido antes expendidas no seu discurso alegatório nas seguintes conclusões:
«E1: A lei ordinária atribui aos juízos de instrução criminal a competência para a prática, no inquérito, dos actos processuais que a lei comete ao Juiz, além de outros, os referidos nos artigos 268º e 269º do CPP. Porém,
E2: constitui grave erro de perspectiva a não compreensão de que a actuação judicial no Inquérito - a cargo de um Juiz de tipologia diferente daquele a quem cabe presidir à fase da Instrução ou à do Julgamento e que, para clarificação das questões, mais adequadamente se deveria chamar de “Juiz das Garantias” - é heterónoma e incidental pois, nessa fase, desde logo o Juiz, salvo uma excepção, a qual, por garantística, só confirma a regra, não dispõe de faculdades actuativas oficiosas, como resulta do disposto, além de outros, nos artigos
194º, n.º 1, e 264º, a contrario, do CPP. Como tal
E3: e no que especificamente se reporta à aplicação das medidas de coacção, excepto o “TIR', a actuação do “Juiz das Garantias” é meramente controladora da iniciativa do ministério público, nos termos mais detalhadamente constantes supra, pág. 17, item B1.6. Por conseguinte,
E4: o impropriamente chamado, também no Inquérito, “Juiz de Instrução' nada tem a ver, na teleologia da sua actuação, com aquele a que se refere o n.º 4 do art.
32º da Constituição da República ou com o velho “juge d’instruction”, como ainda hoje existe no direito francês e, entre nós, na versão primitiva do CPP 29, até ao Decreto-Lei n.º 35 007,
E5: tudo isto à semelhança do que sucede no direito comparado que mais influenciou o actual CPP, em especial o italiano e também o alemão. Com efeito,
E6: quer nos termos do n.º 4 do art. 141º, quer nos do n.º 3 do art. 194º, ambos do CPP ou, sobretudo nos do art. 28º, n.º 1, da Constituição da República, no caso de se tratar de primeiro interrogat6rio judicial de arguido detido, com vista a aplicar-lhe, a requerimento do ministério público, uma medida de coacção, cumpre ao “Juiz das Garantias”, além do mais, conhecer das causas que determinaram a detenção, comunicá-las ao arguido, interrogá-lo e dar-lhe a oportunidade de defesa
E7: comando este que só é integralmente obedecido, não só na sua letra mas no que se refere à respectiva clara intencionalidade, se se proporcionar ao arguido um direito irrestrito de “ser ouvido”, nos termos que genericamente lhe são conferidos pela alínea b) do n.º 1 do art. 61º do CPP, norma esta que constitui uma afloração, ao nível do direito legislado, da plenitude das garantias de defesa, assegurada pela primeira parte do n.º 1 do art. 32º
E8: e conexamente para cabal uso do direito ao recurso, nos termos da segunda parte do comando referido e, por conseguinte, nos da alínea b) do n.º 1 do art.
407º do CPP, o qual tem de ser lido e compreendido integradamente com o disposto no artigo 141º, n.º 4, 194º, n.º 3, estes do CPP e 28º, n.º 1, da Constituição, nos termos acima escalpelizados. Ora,
E9: no que toca o despacho que decretou a prisão preventiva, verifica-se, desde logo, que nada disto foi tomado em consideração, dele não constando a explicitação das razões de facto ou meios de prova que caracterizarão os alegados “fortes indícios”
E10: sendo ainda certo que as razões a que o M.mo Juiz fez apelo para afirmar quer o perigo de “continuação da actividade criminosa” quer o de criação de
“alarme social” ou o de perturbação da tranquilidade pública, para além de
írritas, são juridicamente inócuas, pelo que se verificou, também, a violação da alínea c) do art. 204º do CPP. Aliás,
E11: a mera leitura de tal (douto) despacho mostra que o Senhor Juiz não aderiu
à fundamentação na qual o ministério público ancora o seu requerimento de aplicação da prisão preventiva, o que, também, conduz, adiantando razões, à violação do n.º 1 do art. 194º do CPP. E ainda,
E12: o despacho recorrido, para além de violar o disposto no n.º 4 do art. 141º, os n.os 1 e 3 do art. 193º, estes do CPP, fê-lo relativamente ao n.º 1 do art.
28º da norma normarum, comando este que, por força do disposto no art. 18º, n.º
1, da Constituição da República seria sempre directamente aplicável. Com efeito,
E13: os referidos erros de direito ficaram a dever-se a um dupla tipologia de razões: erro na interpretação de tais comandos, motivado por uma concepção à outrance e sem apoio legal do segredo de justiça - ao arrepio, mesmo, do disposto no n.º 5 do art. 86º do CPP. E mais:
E14: como referido nos lugares próprios, em termos que aqui se dão por reproduzidos, a interpretação que se exproba ao M.mo Juiz conduz à violação do disposto no n.º 5 do art. 32º do diploma fundamental - estrutura acusatória do processo penal
E15: tendo ainda conduzido ao lastimável resultado de transformar o acto processual recorrido numa actuação desleal e, como tal, desta perspectiva, também violadora do princípio constitucional da “lide leal”, com assento constitucional no n.º 1 do art. 32º
E16: ordem de considerações a que o espírito do M.mo Juiz, salvo o devido respeito, se mostra, em absoluto, impenetrável e, por conseguinte, alienígeno. Por outro lado,
E17: o despacho recorrido, porque em absoluto destituído de qualquer arremedo de motivação no tocante à matéria de facto, violou, por força dos errados pré-juízos já denunciados, o n.º 4 do art. 97º do CPP e o art. 205º da Constituição da República Ora,.
E18: no que toca o despacho proferido em resposta ao requerimento do recorrente no sentido de que a diligência estava a decorrer ao arrepio do disposto no n.º 4 do art. 141º do CPP, diga-se, mutatis mutandis, por identidade de razões, o que se escreveu acima nas “CONCLUSÕES” E6 a E8 e E12 a E15. Aliás,
E19: e recentralizando a récita no âmbito específico do primeiro dos recursos, o Senhor Juiz não considerou que a medida de coacção em apreço só é aplicável na verificação cumulativa de dois requisitos: um de fundo - a existência de “fortes indícios” - outro de forma, qual seja o da recorrência de algum dos perigos elencados nas três alíneas do art. 204º. Ora,
E20: afigurando-se indiscutível que, salvo o devido respeito, no que toca os
“fortes indícios” o despacho é omisso e no atinente aos invocados perigos da alínea c) do art. 204º o M.mo Juiz incorreu em duplo erro de direito – aqueles postos a nu nas “CONCLUSÕES” supra - a conclusão é precípua: revogação do despacho recorrido
E21: o mesmo devendo dizer-se, por paridade de razões, desde logo no que toca ao despacho interlocutório cuja irritude interpretativa potenciou a do despacho que ordenou a sujeição do arguido a prisão preventiva. Finalmente,
E22: O despacho proferido tendo como referente a valoração do diário apreendido ao arguido como meio de prova culminou, também, no deletério desenlace perante a qual se pretende manifestar veemente decisão.
E23: Sendo certo que, identicamente neste concreto segmento, se afigura que o Mmo. JIC propende para uma errónea subsunção da normatividade aplicável.
E24: Na verdade, na decisão recorrida elege-se como deus-ex-machina a que tudo se sacrifica uma peculiar hermenêutica do artigo 126º, n.º 3, do CP Penal, numa leitura normativa indesmentivelmente tributária de um peculiar modo-de-ser do direito do sistema da common law.
E25: Deixando obnubilado que a estrutura do processo penal português, em termos estruturalmente enformadores, se situa nos antípodas dessa específica mundividência.
E26: Efectivamente o direito pátrio não se contenta com uma tal ou qual legalidade da apreensão, curando, ainda, da substantividade do material probatório em causa.
E27: Exprobrando todas as interferências na esfera de intimidade dos cidadãos enquanto valor protegido constitucionalmente- artigo 1º da CRP, fazendo-o decorrer da dignidade da pessoa humana - e legalmente - enquanto valor penalmente tutelado pelo artigo 192º do Código Penal.
E28: Normas assim inexoravelmente violadas com a actuação interpretativa sufragada pelo Mmo. JIC no despacho que ora se põe em crise que valorou um diário íntimo como meio de prova.».
5 - O Ministério Público contra-alegou sustentando o decidido, tendo coroado o seu discurso com a formulação das seguintes conclusões:
«1. O despacho recorrido não violou qualquer preceito legal, quer constitucional, quer processual penal, designadamente os arts. 97º, 126º, 141º,
194º, 264º e 269º do CPP, dos quais fez justa, adequada e criteriosa interpretação e aplicação;
2. Durante o inquérito, a aplicação das medidas de coacção, à excepção do TIR, é realizada a requerimento do Ministério Público, entidade competente para dirigir o inquérito, sendo sempre aplicadas pelo Juiz de Instrução, no uso de uma competência exclusiva consagrada no art. 268º, n.º 1, b), do CPP, o qual é a explicitação, através da transposição para a lei ordinária, do princípio constitucional vertido no art. 28º da CRP;
3. Nestes termos, é manifestamente inconstitucional a interpretação de acordo com a qual, na aplicação dessas medidas de coacção, o Juiz de Instrução fica vinculado à proposta do Ministério Público e aos seus fundamentos, sem poder decidir sobre eles autonomamente.
4. De outro modo, a intervenção do Juiz de Instrução no inquérito, não seria, como o recorrente reclama que seja, a de um “Juiz das Garantias”.
5. No caso dos autos, como determina a lei processual penal, o Juiz de Instrução, ao ser-lhe apresentado o recorrente para o primeiro interrogatório judicial tomou conhecimento das causas da detenção, deu-as a conhecer àquele, comunicando-lhas, interrogou-o sobre os factos contra si constantes dos autos e deu-lhe oportunidade de defesa.
6. Assim, no decurso do seu interrogatório foram dados a conhecer ao recorrente, os motivos da detenção, os factos que lhe são imputados, os crimes que tais factos consubstanciam, a data e o modo como foram praticados e quem foram as suas vítimas, tendo, assim, tomado perfeito conhecimento das razões do juízo de forte indiciação que sobre si recaía.
7. A oportunidade de defesa do recorrente foi “irrestrita”, tendo sido ouvido por um Juiz de Instrução (Juiz das Garantias), sobre os factos que sobre si recaiam, tendo o recorrente respondido livremente como e quando quis, relativamente a tais factos.
8. Dos autos resultam fortes indícios de que o arguido foi autor material e em concurso real, de factos susceptíveis de integrar a prática de oito crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172º, n.os 1, e 2, do CP e três crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172º, n.º 1, do CP.
9. A prova vertida nos autos, nomeadamente a prova testemunhal, foi analisada segundo os critérios constantes do art. 127º do CPP, tendo o Mmº Juiz concluído pela absoluta credibilidade dos testemunhos recolhidos, atento, além do mais, o elevado número de outros elementos de prova que os comprovam.
10. O inquérito é uma 'fase processual orientada predominantemente pelo inquisitório, em que a ausência de reciprocidade dialéctica enfraquece o contraditório, mas onde, não obstante, sem prejuízo daquele condicionamento, a intervenção do Juiz na definição das posições jurídicas dos arguidos acautela de modo bastante os seus direitos fundamentais'.
11. Assim, o inquérito é uma fase processual não contraditória, justificada à luz dos interesses da eficácia da investigação e recolha de provas.
12. O princípio da igualdade de armas não pode deixar de sofrer algum enfraquecimento na fase de inquérito, justificado à luz dos interesses em jogo: a preservação dos indícios recolhidos pela investigação, a conservação dos elementos de prova que sustentam a incriminação e a necessidade de assegurar aos Tribunais condições para a efectiva descoberta da verdade material e da realização da Justiça;
13. As exigências de protecção, conservação e veracidade da prova, tratando-se de crimes sexuais, justificam até um regime processual penal especial, no que respeita à protecção do depoimento dos ofendidos e ao secretismo da audiência de discussão e julgamento.
14. Assim, no caso em apreço, o único facto que não foi revelado ao recorrente foi a identidade das testemunhas e/ou ofendidos, o que face à negação de se ter relacionado sexualmente com qualquer aluno ou ex-aluno da B., é perfeitamente irrelevante.
15. Do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 121/97, de 19.02.97, não decorre a obrigatoriedade de facultar a consulta das peças processuais que se estimam necessárias à preparação de recurso da decisão de aplicação da prisão preventiva mas, tão só, que se restrinja, em todos os casos, o acesso a outras peças processuais que não as referidas nos arts. 86º e 89º do CPP .
16. Esse Acórdão deixa em aberto a possibilidade de, caso a caso, se balizar o acesso aos autos, sendo certo que a recusa de acesso - em despacho fundamentado
- não configura uma restrição excessiva, dados os diferentes interesses e valores em jogo, como é o caso da decisão recorrida.
17. O conhecimento, pelo arguido, dos elementos de prova já recolhidos, envolvendo dezenas de intervenientes e uma multiplicidade de actuações interligadas, era susceptível de perturbar o inquérito na vertente da aquisição, conservação ou veracidade da prova, atentas as estreitas relações entre o arguido, algumas das vítimas e as suas famílias e o ascendente que tinha sobre estes.
18. 'A inviabilidade de um acesso incondicionado aos autos, nesta fase, deve compreender-se à luz da ponderação dos interesses nela prosseguidos: o secretismo interno - que é relativo - não descura preocupações garantísticas, antes procura a sua conciliação com a necessidade de proteger o programa da investigação e a recolha de provas, por essa ser também uma exigência decorrente da defesa do Estado de direito democrático'.
19. Resulta fortemente indiciada nos autos que, pelo menos nos últimos vinte anos, o recorrente tem reiterada, sistemática e persistentemente abusado sexualmente de crianças, sendo patente a compulsividade do seu comportamento pedófilo, o que indicia fortemente a existência de um perigo sério de continuação da actividade criminosa.
20. Os relatos contidos em tais diários e o acervo de fotografias de crianças e jovens em poses sexuais encontrados na posse do recorrente, comprovam a sua inclinação sexual por crianças e atestam a compulsividade de tal comportamento.
21. Nada obsta a que factos consubstanciadores de ilícitos criminais já prescritos, ou sem condições de procedibilidade, possam e devam ser levados em consideração na apreciação da existência, em concreto, do perigo de continuação da actividade criminosa.
22. Face à repulsa que a sociedade manifesta relativamente a este tipo de criminalidade, seria incompreensível para a generalidade dos cidadãos que o recorrente se mantivesse em liberdade e, tal facto, abalaria a confiança dos mesmos nos Tribunais enquanto garantes da segurança, da paz e da Justiça, em especial, no caso em apreço, em que é manifesta a desproporção entre os meios de defesa do recorrente e das vítimas.
23. Está fortemente indiciado nos autos que o arguido dispunha de um ascendente económico sobre algumas das vítimas e suas famílias, conseguindo assim, ao longo de mais de vinte anos, obter o silêncio de algumas delas, o que, segundo as regras da experiência, continuaria a fazer, se devolvido à liberdade, perturbando dessa forma o inquérito, na vertente da aquisição e conservação da veracidade da prova.
24. Pelo que também se verifica, relativamente ao recorrente, o perigo de perturbação do inquérito a que alude a al. b) do art. 204º do CPP .
25. Os diários encontrados na residência do recorrente e referidos no despacho recorrido, chegaram até ao Tribunal através da busca domiciliária determinada por um Juiz de Instrução e realizada de acordo com todas as formalidades legais, pelo que a prova deles resultante é legal, não enferma de qualquer vício e deve, por isso, ser valorada.
26. Não põe em causa a dignidade da pessoa humana, nem consiste numa intromissão abusiva da vida privada, a apreensão de diários quando, para além das circunstâncias referidas no número anterior, desses diários resulta prova necessária e cabal da prática, pelo recorrente, de crimes contra crianças gravemente violadores da dignidade da pessoa humana.
27. A medida de coacção de prisão preventiva é a única medida de coacção que, tendo em consideração as circunstâncias e os perigos em concreto verificados, se mostra adequada às exigências de afastamento de tais perigos, sendo proporcional
à gravidade dos crimes imputados ao recorrente e à forte indiciação dos mesmos.
28. Ao aplicar a medida de coacção de prisão preventiva ao recorrente, o Mm.º Juiz de Instrução não violou qualquer normativo legal, devendo ser mantida tal medida de coacção. Assim, Vossas Excelências farão a esperada Justiça».
6 - Pelo acórdão de 14 de Julho de 2003, a Relação negou provimento ao recurso, mantendo na totalidade os despachos judiciais impugnados. Na parte
útil ao conhecimento ou à compreensão das questões que se colocam neste recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, discreteou-se em tal acórdão nos seguintes termos:
«São suscitadas pois várias questões, quer tocantemente à decisão final do Tribunal “a quo” quer quanto a questões interlocutórias suscitadas no decorrer do interrogatório do arguido. Assim, e desde logo, entende o recorrente que teria sido violado o disposto no n.º 1 do art. 194º C.P.P. na medida em que o Tribunal não teria aderido à fundamentação na qual o M.º P.º ancora o seu requerimento de aplicação da prisão preventiva. No seu entendimento o Juiz só poderia deferir ou indeferir ao requerimento do M.º P.º para a aplicação da medida de coacção, traduzindo-se numa usurpação de poderes actuação contrária a este entendimento.
É sabido que aquando da revisão do código levada a cabo pela Lei n.º 59/98 de
25/8, da proposta de lei governamental constava um n.º 5 no referido artigo 194º do seguinte teor: durante o inquérito, não pode ser aplicada medida de coacção de natureza diferente ou em medida mais grave que a indicada no requerimento a que se refere o n.º 1. Mas este dispositivo foi eliminado, pelo que ainda que deva o Juiz, no inquérito, controlar os pressupostos legais da medida de coacção requerida, no exercício do seu direito soberano de julgar livremente e nos termos da lei, tem de decidir autonomamente, sem qualquer vínculo prévio à proposta do Ministério Público. Entendimento contrário não tem, pois, qualquer apoio legal o que até resulta do resultado do processo legislativo referido. No decurso do interrogatório do arguido foi suscitada a questão da nulidade de prova obtida mediante a intromissão da vida privada atenta a circunstância da apreensão de diários ao arguido. Dispõe o art. 32º, n.º 8, da CRP - no contexto das garantias em processo penal - que são nulas todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão da vida privada e também o art. 126º, n.º 3, do C.P.P., sobre métodos proibidos de prova, estipula que ressalvados os casos previstos na lei, são nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência
... sem o consentimento do respectivo titular . O que o recorrente questionou, e questiona, é que possam tais diários ser utilizados como meio de prova pois estar-se-ia perante uma intromissão da vida privada já que os diários, como é sabido, expõem, muitas vezes, factos, acontecimentos, pensamentos, impressões do seu autor não partilháveis e tantas vezes inconfessáveis. Mas os diários vieram ao processo apreendidos na sequência de busca realizada à residência do arguido, busca essa cuja legalidade não é posta em causa; por outro lado, o art. 125º C.P.P. dispõe que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei pelo que haverá de concluir-se que não havendo proibição alguma sobre a admissibilidade de diários do arguido como meio de prova, não estamos perante qualquer nulidade; os interesses da investigação criminal, salvaguardadas as exigências legais, terão de se sobrepor a uma eventual violação da privacidade que, no interesse da descoberta da verdade e realização da justiça penal terá de ceder. Aliás, a mesma questão se poderia colocar em relação a quaisquer escutas telefónicas, por exemplo. Não se está portanto perante qualquer inconstitucionalidade uma vez que não está em causa qualquer prova obtida abusivamente mediante intromissão da vida privada. Questão que a defesa colocou no decurso do interrogatório é a de alegada irregularidade que teria sido cometida aquando do cumprimento do n.º 4 do art.
141º C.P.P. Dispõe-se aqui que, aquando do 1.º interrogatório de arguido detido, o juiz o informa dos motivos da detenção, comunicando-lhos e expõe-lhe os factos que lhe são imputados. Trata-se de assegurar garantias de defesa ao arguido, cumprindo-se o comando constitucional do n.º 1 do art. 32º que estipula que o processo penal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. Mas quando a lei dispõe que o Juiz comunica ao arguido os factos que lhe são imputados está a permitir um acesso irrestrito ao processo, nomeadamente a todos os elementos de prova aí existentes? Evidentemente que não. O arguido apenas tem de ser informado dos factos que lhe são imputados pois se está numa fase onde prevalece o segredo de justiça que, em parte, visa proteger a aquisição da prova. E isto, foi, efectivamente feito, como resulta do auto de interrogatório, e mais esclarecidamente, já na sequência da invocada irregularidade: foi-lhe dito genericamente do que era acusado (da prática de relações sexuais), do momento temporal dos factos que lhe eram imputados, a identidade das vítimas como alunos, à data, da B. e outros, mas todos menores de 16 anos. E o despacho judicial esclarece mesmo que maior cópia de pormenores poderia, eventualmente, ser apresentada ao arguido, designadamente a identidade das vítimas, se no decurso do interrogatório e pela orientação seguida, viesse a tornar-se necessário; dado porém, que o arguido tomou a posição de negar a prática de quaisquer actos de sexo com alunos da B. ou outros no período entre
1998 e a actualidade, parece evidente que não faria qualquer sentido ir mais além dos pormenores a confrontar o arguido. A rejeição liminar dos factos imputados, assim genericamente indicados ao arguido, inviabilizou o acesso, por inútil, a outros, num aprofundamento esclarecedor . Outra questão é a de saber se o arguido tem de ter um acesso a peças do processo com vista a preparar a sua defesa no âmbito da impugnação da decisão que decrete a sua prisão preventiva. Nesta questão permitimo-nos acolher a posição de três dos Ex.mos Conselheiros do Tribunal Constitucional que não obteve vencimento no acórdão citado nas alegações do arguido - Ac. n.º 121/97, de 19 de Fevereiro, de 1997, BMJ, 464º - e onde se discutia a constitucionalidade das normas constantes do n.º 2 do art.
89º conjugada com o n.º 1 do art. 86º do C.P.P. , quando interpretada em termos de impedir o acesso do arguido aos autos, na fase de inquérito. Assim, transcrevemos uma parte significativa do voto de vencido do Ex.mo Conselheiro Vítor Nunes de Almeida, que nos merece concordância:
'No caso de o Ministério Público não ter deduzido acusação, então o arguido, o assistente e as partes civis só podem ter acesso à parte das declarações que prestaram e a requerimentos ou memoriais apresentados, bem como às diligências de prova a que pudessem assistir ou a questões incidentais em que devessem intervir, ficando todas estas partes do processo avulsamente fotocopiadas na secretaria, durante três dias, prosseguindo o processo e mantendo-se para todos o dever de guardar segredo de justiça. A aplicação desta norma e dos princípios a ela subjacentes violará as garantias de defesa e o direito de acesso aos autos do arguido no caso em apreço, como se decidiu? Assim e em concreto, a questão que se suscita é a de saber se o arguido, na situação de prisão preventiva, pode ter acesso a todos os elementos que constam dos autos de inquérito, antes mesmo de ser deduzida acusação pelo Ministério Publico, para o efeito de impugnar a legalidade de tal prisão. O inquérito, na nossa lei processual penal, abrange as diligências destinadas a investigar a existência de um crime, com vista a determinar o seu agente ou agentes, a respectiva responsabilidade, descobrindo e recolhendo as provas que permitam decidir sobre a acusação. Destina-se, pois, o inquérito à descoberta, recolha e, sempre que tal for possível, a verificação e comprovação dos factos que condicionam a aplicação posterior do direito, verificação que, para efeitos de prosseguimento do processo criminal, há-de consistir na sua demonstração feita por meio de provas. A procura e recolha das provas e, essencialmente, a conservação de todos os elementos probatórios que forem apurados constitui a finalidade primordial do inquérito, com vista à dedução da acusação e posteriormente à prova directa, em julgamento, dos factos que integram esta acusação, por forma a desembocar na decisão condenatória. Quando para prova do facto criminoso em investigação existam poucas provas directas que relacionem o suspeito com aquele crime, a recolha dos factos indiciários torna-se indispensável para neles se poder vir a fundamentar a acusação e a pronúncia; mas para se alcançar a condenação exige-se a prova dos factos, isto é, a certeza da sua ocorrência. Na fase do inquérito, a aquisição da prova incumbe fundamentalmente ao Ministério Público, embora em certas situações a aquisição e ou produção da prova tenha de ser autorizada pelo juiz. Nesta fase, o arguido pode oferecer provas e requerer as diligências que entenda necessárias, mas que poderão ou não ser aceites pelo Ministério Público, havendo de reconhecer-se que, na fase de investigação dos factos, o direito do arguido à produção de provas é limitado
(cfr. Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 98). A necessidade de a investigação se processar durante um período de tempo mais ou menos longo torna indispensável que a autoridade a quem cabe a investigação utilize meios de limitação da liberdade pessoal ou patrimonial do arguido que sejam os mais adequados para garantir a plena eficácia de todo o procedimento. No caso de se verificarem fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos, o juiz do processo pode determinar a prisão preventiva do arguido pelo prazo fixado na lei - artigo 27º, n.º 3, alínea a), da Constituição. A prisão preventiva tem de ser validada por despacho do juiz, depois de comunicar as causas da detenção ao arguido, de o interrogar e de lhe dar oportunidade de defesa quanto a tais causas (artigo 28º, n.º 1, da Constituição), aqui se centrando a essencialidade das garantias de defesa do arguido nesta fase do inquérito. A lei condiciona a aplicação de medidas de coacção, aí se incluindo a prisão preventiva, à verificação de um só ou de todos os seguintes pressupostos (artigo
204.º do Código de Processo Penal): fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, e, por fim, perigo, em razão da natureza ou das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa. Com efeito, o arguido em liberdade pode perturbar o inquérito e a instrução, quer criando factos novos ou falsos álibis, atemorizando ou subornando as testemunhas, ou fazendo desaparecer documentos probatórios, produzindo documentos falsos, etc. (cfr. Marques da Silva, ibidem, pág. 214), reconhecendo este mesmo autor que o perigo de perturbação da instrução do processo é maior na fase do inquérito e ainda quando não estão recolhidos nos autos meios de prova que indiciem a responsabilidade do arguido.
É certo que os perigos de inquinamento das provas têm de ser não só concretos como também actuais, embora esta exigência não imponha um juízo de certeza quanto à realização do presumível ataque às provas, bastando-se com um juízo de razoável probabilidade do que venha a ocorrer, assente na existência de um fundado interesse do arguido em eliminar a prova ou o elemento indiciário.
[...] Sem dúvida que é legítimo ao arguido pretender questionar a legalidade da prisão preventiva, mas para isso não necessita de ter acesso irrestrito aos autos:
[...] Porém, a abertura do acesso irrestrito aos autos na fase de inquérito poderá vir a ser fatal para a própria investigação, face a todos os malefícios susceptíveis de virem a acontecer aos indícios probatórios ainda não completamente adquiridos e garantidos nos autos. Acresce que, sendo as decisões sobre prisão preventiva sempre susceptíveis de revisão - devendo mesmo ser oficiosamente reexaminada a execução e os pressupostos de tal tipo de prisão de três em três meses -, o que acontece é que, face à total abertura da decisão que contestamos, é bem possível prever o termo do segredo de justiça durante o inquérito. De facto, não sendo provável que tal acesso lhe possa vir a ser restringido, pode o arguido requerer, sempre que deseje saber o estado da investigação, tal acesso e, assim, acompanhar a par e passo toda a investigação e, sendo ele a única pessoa que conhece a realidade a ser investigada, pode antecipadamente realizar todas as manobras de diversão que considere úteis ou necessárias para obviar à integral descoberta da verdade que o pode prejudicar. Parece-me indubitável que o princípio da igualdade de armas e o princípio das garantias de defesa não podem nem devem desaparecer na fase de inquérito: porém, as garantias de defesa são mantidas ao dar-se conhecimento ao arguido dos fundamentos da decisão que determinou a prisão preventiva e ao permitir que tal decisão possa ser impugnada jurisdicionalmente; todavia, o princípio da igualdade de armas, a manter-se na fase de inquérito, não pode deixar de sofrer algum enfraquecimento. Na verdade, no inquérito, por se tratar de uma fase não contraditória do processo, o princípio da igualdade de armas é colocado como instrumento das garantias de defesa, surgindo apenas nos casos em que se torna necessário tornar efectiva a posição jurídica dos intervenientes processuais (v. g., no momento da constituição de arguido, quando se definem os direitos e deveres do arguido, e, em casos como o dos autos, principalmente quando a lei exige a fundamentação do despacho que determina as medidas de coacção, etc.). Ora, enquanto se investigam os factos que desencadearam o inquérito, a autoridade investigadora não dispõe senão dos elementos que o criminoso deixou, o investigador tem de refazer todo o puzzle da situação, enquanto o criminoso está na posse de todos os elementos que faltam para estabelecer a sua responsabilidade, isto é, o arguido dispõe de todos os «trunfos» de que não é obrigado a abrir mão e o investigador tem de reconstituir todo o puzzle da situação criminosa a partir de meros indícios que tem de ir juntando. Assim, o acesso irrestrito do arguido aos autos é susceptível, como se referiu, de tornar todos os esforços da investigação perfeitamente inúteis. Esta «desigualdade» só pode ser compensada com a denegação do acesso irrestrito do arguido ao processo, salvo quanto aos elementos já referidos no n.º 2 do artigo 89º do Código de Processo Penal, ou na hipótese, sempre possível, do n.º 4 do artigo 86º do Código de Processo Penal '. Nesta conformidade, defendemos que o não acesso aos meios de prova não viola o disposto no art. 32º, n.º 5, CRP nem se entende que não tenham sido asseguradas ao arguido todas as garantias de defesa, com violação do art. 32.º, n.º 1, da Constituição, com uma lide desleal. Igualmente não se acolhe o entendimento do arguido de que o despacho recorrido teria violado o disposto no art. 97º, n.º 4, e art. 205º da Constituição da República e isto porque o despacho recorrido mostra-se fundamentado quanto à matéria de facto. Resta avaliar a questão fundamental da existência ou não de fortes indícios de prova dos crimes imputados e, na hipótese afirmativa, que medida cautelar deverá ser aplicada ao arguido. As medidas de coacção são meios processuais de limitação da liberdade pessoal dos arguidos e têm por fim acautelar a eficácia do procedimento quer quanto ao seu desenvolvimento quer quanto à execução das decisões condenatórias (do Curso P. Penal do Prof. Germano Marques da Silva II vol., págs. 201, 1993) Sendo inadequadas ou insuficientes, no caso, as demais medidas de coacção, o Juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando houver fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos [al. a) n.º 1 art. 202º CPP] e a prisão preventiva poderá ser aplicada se se verificar, em concreto, fuga ou receio de fuga; perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para aquisição, conservação ou veracidade da prova ou perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa art.
204º CPP. No entanto, tal medida terá de ser adequada às exigências cautelares que o caso requer e proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas - art. 193º CPP.
É pois necessário que se verifique, no caso concreto, se a medida se mostra objectiva e subjectivamente necessária, adequada e proporcional à finalidade para que a lei a permite. Da análise dos depoimentos dos ofendidos e testemunhas conjugados com a prova documental apreendida (que o arguido reconhece como de sua pertença bem como reconhece a autoria dos escritos que constituem os seus diários) teremos de concluir pela existência de fortes indícios da prática, pelo arguido, dos crimes que lhe estão imputados no despacho sub judice; em crimes desta natureza é sabido que a prova testemunhal é preponderante e aqui, até pelas circunstâncias que deram origem ao processo, isto é, na medida em que o processo não resulta de queixa de iniciativa dos ofendidos, não vislumbramos que, a nível indiciário, ela não deva merecer credibilidade. E o mesmo se poderá dizer quanto às testemunhas que depuseram nos autos. O arguido admite a prática de relações de índole sexual, designadamente homossexual com indivíduos menores de 18 anos mas sempre maiores de 16, no período entre 1998 e a data presente ou seja relações não criminalmente puníveis; nega, porém, a prática de tais relações com menores de 16 anos, no mesmo período, contrariando alguns dos depoimentos colhidos quer no respeitante
à idade dos menores no período em que ocorreram tais relações quer mesmo quanto ao local onde ocorreram algumas delas. Mas até mesmo algumas fotos apreendidas bem como algumas passagens dos seus diários revelam interesse sexual por menores de 16 anos o que reforça a credibilidade dos depoimentos dos autos. Há pois indícios da prática de crimes puníveis com pena de prisão superior a três anos. O despacho recorrido entendeu que se justificava a medida cautelar da prisão preventiva por existir 'um forte perigo de continuação de actividade criminosa que em si é geradora de um alarme social e de uma intranquilidade pública”. – Art. 204º, al. c), C.P.P. Não podemos deixar de concordar com a posição do Tribunal 'a quo' da existência de concreto perigo de continuação da actividade criminosa sendo esse perigo gerador, também, de alarme social e intranquilidade pública se atentarmos a quão sensível se mostra hoje em dia a opinião pública a crimes desta natureza; de toda a prova analisada decorre que ao longo de mais de 20 anos, pelo menos, o arguido tem tido uma conduta reiterada e persistente de relacionamento sexual com jovens; não necessariamente e só menores de 16 anos é certo mas também não se descortina que tivesse o escrúpulo de seleccionar esses jovens parceiros sexuais pela idade de modo a não invadir o campo criminal; aliás, como atrás se disse há fortes indícios do contrário; o perigo de continuação da actividade criminosa decorre assim dessa prática reiterada e persistente ao longo dos anos de manter relações sexuais de relevo e/ou de coito anal com menores, o que não exclui menores de 16 anos de idade, estes particularmente vulneráveis na determinação da sua vontade e tantas vezes sofrendo de fortes carências económicas de que o arguido, - como mostram abundantemente os autos - sempre se aproveitou para, amenizando-as, obter favores sexuais. O despacho recorrido salienta claramente esta questão pelo que não pode dizer-se que é omisso no atinente aos perigos da alínea c) do art. 204º. A medida de prisão preventiva é a única que põe termo a esse perigo que em concreto se verifica, o que é legítimo concluir pela formulação de um juízo de probabilidade, suficiente para justificar a medida. Daí que seja adequada e proporcional à gravidade das infracções indiciadas. Nestes termos, os despachos do Tribunal 'a quo' não merecem censura. Por todo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo na totalidade os despachos recorridos. Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 5 Ucs.».
7 - Notificado do acórdão, e perante o tribunal a quo, o recorrente arguiu a sua nulidade, pretextando que o mesmo padecia de omissão de pronúncia relativamente às questões dos poderes e natureza do Juiz de Instrução e da valoração dos “Diários” do recorrente como meio de prova, independentemente do modo legal como haviam sido obtidos. Por outro lado, pediu, ainda, a sua aclaração relativamente à decisão tomada quanto à fundamentação na parte em que nele se afirma «[...] e isto porque o despacho recorrido mostra-se fundamentado quanto à matéria de facto», porquanto
“lido e relido o despacho [...] não logra o exponente vislumbrar a predita enunciação fáctica que sirva de fundamentação”.
De anotar que concernentemente à questão relativa aos “Diários”, o recorrente discorreu pelo seguinte modo:
«[...] b) Seguidamente, o douto Acórdão debate-se com a questão conexa à problemática suscitada com os diários íntimos. Nega, também aqui, qualquer razão à motivação aduzida pelo arguido, mas, salvaguardando o devido respeito, não discute o nó górdio, verdadeiramente essencial, da questão. Com efeito, o recorrente não pôs em causa a legalidade da obtenção do meio de prova em questão, centrando, ao invés, a polémica na figura diferente da valoração desse meio de prova. Dito de forma mais singela não esteve nunca em causa a utilização de um meio proibido de prova, mas a proibição de valoração de uma prova legalmente obtida. Aderindo à denominada teoria dos três graus ou três esferas, desenvolveu-se a ideia de que a esfera da intimidade correspondente 'ao último reduto do right to be alone, ou na formulação do Tribunal Constitucional, «a última e inviolável
área nuclear da liberdade pessoal»' - MANUEL DA COSTA ANDRADE, Comentário Conimbricense ao CP, Tomo I, página 729 - constitui um reduto intangível. Ora nenhuma discussão merece, no Acórdão em referência, a apologia veemente efectuada pelo recorrente; daí que ganhe acuidade a ideia de outra omissão de pronúncia fautor de emergência de nulidade».
E termina pedindo que o acórdão seja declarado nulo “por evidente omissão de pronúncia, dada a carência de discussão sobre a argumentação expendida pelo recorrente, conforme melhor se explicita nas alíneas [...] b) do presente requerimento”.
Os pedidos foram todos indeferidos, sem embargo, todavia, de o tribunal ter, ao cabo e ao resto, procedido à aclaração, ao dizer que
“Assim, a mencionada asserção reporta-se à decisão sobre um dos fundamentos do recurso, o atinente ao conhecimento pelo arguido do teor dos factos que lhe são imputados aquando do seu primeiro interrogatório judicial. Examinando e decidindo esta questão considerou o acórdão em apreço que o despacho recorrido se não mostrava falho da necessária fundamentação fáctica».
No que importa à omissão de pronúncia sobre a questão da valoração dos
“Diários”, o acórdão respondeu-lhe nos seguintes termos:
« [...] Considera o recorrido que o Acórdão proferido nestes Autos de Recurso enferma de nulidade por, em seu entender, existir uma omissão de pronúncia quanto a duas das questões suscitadas pelo recorrente, a saber, uma não referência à tese por si expendida relativa aos poderes e natureza do Juiz de Instrução e uma não menção ao critério de valoração de um meio de prova. Cumpre apreciar cada uma destas questões de “per si”.
[...] O arguente invoca também uma outra nulidade, enquadrável na figura de omissão de pronúncia, consistente na falta de decisão sobre uma outra das questões por si suscitadas no Recurso. Sendo esta respeitante à valoração dos diários do recorrente, enquanto meio de prova. Porém, também falece razão ao recorrente na medida em que o Acórdão se debruça sobre esta matéria – cfr. fls. 128 – decidindo, é certo, em desfavor da tese defendida pelo recorrente.
[...]».
8 - Afirmando-se inconformado com o decidido nos dois acórdãos
(aclarado e aclarando), recorreu então o arguido para este Tribunal Constitucional, nos termos constantes do extenso e difuso requerimento que aqui se transcreve:
«A., já identificado nos autos e neles arguido/recorrente, à ordem dos quais se encontra na situação de prisão preventiva, não podendo conformar-se com as
'soluções' adoptadas por este Tribunal da Relação, nos acórdãos por ela proferidos, a propósito de certas actuações da primeira instância
(interpretações e aplicações de comandos do direito legislado) violadoras de injunções constitucionais, vem de tais arestos interpor recurso para o Tribunal Constitucional. Ao presente recurso, visando a fiscalização concreta da conformidade constitucional de certos normativos do direito legislado, tal como interpretados e aplicados pelas instâncias, são aplicáveis os arts. 69º e ss. da Lei do Tribunal Constitucional e, em especial, a alínea b) do n.º 1 do art. 70º do referido diploma. Com efeito, do despacho que aplicou ao recorrente a medida dita de coacção
'prisão preventiva' e que considerou validamente assumível como meio de prova certos 'diários' apreendidos ao arguido/recorrente foi interposto recurso penal para a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, culminando com a formulação de vinte e oito conclusões, de resto escrupulosamente transcritas no acórdão recorrido (o primeiro deles, datado de 14 de Julho de 2003, sendo certo que o segundo faz parte integrante daquele - art. 670º, n.º 2 do C. P. Civil). Na verdade, consta da extensa motivação, em especial e no que pode interessar a este Tribunal, em apertada síntese conclusiva, o seguinte:
Consta das 'Conclusões' E6, E7, e E8:
“E6: quer nos termos do n.º 4 do art. 141°, quer nos do n.º 3 do art. 194.º, ambos do CPP ou, sobretudo nos do art. 28º, n.º 1, da Constituição da República, no caso de se tratar de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, com vista a aplicar-lhe, a requerimento do ministério público, uma medida de coacção, cumpre ao “Juiz das Garantias”- conf., a este propósito, desenvolvidamente, A1, A1.1 e A1.5, sendo certo que o acórdão que dirimiu a invocação da nulidade do precedente considerou esta “figura”, stupete gentes, mera “tese académica” ..., interpolação -, além do mais, conhecer das causas que determinaram a detenção, comunicá-las ao arguido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa
E7: comando este que só é integralmente obedecido, não só na sua letra mas no que se refere à respectiva clara intencionalidade, se se proporcionar ao arguido um direito irrestrito de “ser ouvido' nos termos que genericamente lhe são conferidos pela alínea b) do n.º 1 do art. 61° do CPP, norma esta que constitui afloração, ao nível do direito legislado, da plenitude das garantias de defesa, assegurada pela primeira parte do n.º 1 do art. 32º
E8: e conexamente para cabal uso do direito ao recurso, nos termos da segunda parte do comando referido e, por conseguinte, nos da alínea b) do n.º 1 do art.
407° do CPP, o qual tem de ser lido e compreendido integradamente com o disposto no artigo 141º, n.º 4, 194º, n.º 3, estes do CPP e 28º, n.º 1 da Constituição, nos termos acima escalpelizados '.
Pois muito bem: a referida 'escalpelização' consta, além do mais, do 'Excurso' de pág. 8 ss. da motivação. Ora, o acórdão recorrido sedia a questão de forma totalmente diferente daquela que foi submetida ao seu conhecimento, como consta da respectiva pág. 11, ao falar em 'acesso irrestrito' ao processo e ao referir que foi dito (ao arguido)
'genericamente do que era acusado (da prática de relações sexuais) do momento temporal dos factos que lhe eram imputados, a identidade das vítimas como alunos, à data, da B. e outros (!!!, interpolação), mas todos menores de 16 anos” – os caracteres realçados não constam, como tal, do original. Por conseguinte, o acórdão, ao considerar bastar uma indicação 'genérica', e, para mais, nos termos aí referidos, dos assinalados elementos, violou não só o disposto no art. 28º, n.º 1, da Constituição, como o art. 32º, n.º 1, do mesmo diploma. Por conseguinte, a este primeiro enfoque, o recorrente pretende que V.as Ex.as declarem que à luz interpretativa assumida pelo Tribunal da Relação de Lisboa - que, de resto, nem sequer faz a menor referência ao disposto no art. 28º, n.º 1, da norma normarum -, redundou inconstitucionalizado o teor dos artigos 141º, n.º
4, e 194º, n.º 3, ambos do CPP.
A questão subsequente e que se prende com esta - se, na verdade, não se trata, como o recorrente entende, apenas de novo argumentário com vista à dilucidação da mesma precedente problemática - é a do acesso do arguido 'a peças do processo com vista a preparar a sua defesa no âmbito da impugnação da decisão que decrete a prisão preventiva'. Ora, salvo o devido respeito, por mais que leia e releia a fundamentação do recurso, não consegue o recorrente topar nela com uma tal afirmação - 'acesso a peças do processo, etc.'. Com efeito, o que foi afirmado na motivação a tal propósito, nada tem a ver, de perto ou de longe, com a referida pretensão. Veja-se, em abono do que vem de dizer-se, o que ficou escrito sob C1 da motivação e aí fls. 18, nos seguintes termos:
'Quando o art. 141º, n.º 4, refere (que o Juiz) conhece dos motivos da detenção, comunica-lhos e expõe-lhe os factos que lhe são imputados” está, a bem dizer, a importar os dizeres da própria norma constitucional (art. 28.º), como resulta da análise comparativa feita acima. Norma esta que nos termos do n.º 1 do art.º 18º do diploma fundamental, é directamente aplicável. Por conseguinte, qualquer interpretação deste normativo do direito legislado (do n.º 4 do art. 141º do CPP, pois interpolação) que afecte o núcleo essencial do assinalado direito, viola a parte final do disposto no n.º 3 do art. 18º, assim se tornando materialmente inconstitucional”. Ora, ademais do que acaba de referir-se - e é o que o recorrente pretende que V.as Ex.as apreciem e declarem - a larga citação a que procedeu o Tribunal a quo
é, salvo o devido respeito, pelo menos, absolutamente despropositada. Com efeito, no acórdão do Tribunal Constitucional do qual se respigam as largas faladas passagens, como o próprio Tribunal recorrido reconhece (acórdão, pág.
11, in fine) discutia-se 'a constitucionalidade das normas constantes do n.º 2 do art. 89º conjugada com o n.º 1 do art. 86º do C.P.P., quando interpretada em termos de impedir o acesso aos autos, na fase de inquérito'. Porém, não é demais repisá-lo, uma tal questão é, em absoluto estranha ao objecto cognitivo que o recorrente submeteu ao Tribunal da Relação de Lisboa. Logo, é de todo em todo descabido chamar à colação para 'resolver' a concreta questão sub iuditio, o apelo, para mais a votos de vencido, constantes do acórdão em questão do Tribunal Constitucional.
E ainda: a afirmação, segundo a qual, à revelia do que foi pertinazmente escrito na motivação, acusando o despacho recorrido de falta de fundamentação bastante ou, mesmo, em certos casos, de mero arremedo de fundamentação, não ficou resolvido com outra afirmação que releva do mesmíssimo vício e que se encontra precipitada a fs. 15 do acórdão. No entendimento dos M.mos Juízes Desembargadores os quais, repete-se, também não logram fundamentar a respectiva asserção não colheria o argumento em questão 'e isto porque se o despacho recorrido mostra-se fundamentado quanto à matéria de facto' - sic! Porém, desde logo, um tal vício, não o assaca o recorrente apenas no tocante a tal matéria, mas também no atinente àquela de direito (conf. fs. 12, in fine e
13, linhas 2 e 8). Este vício letal do despacho recorrido, que se contagiou ao douto acórdão em apreço, foi objecto de consideração autónoma, não só, além do mais, nos pontos referidos, como na 'Conclusão' E17. E é também isso que o recorrente pretende que V.as Ex.as apreciem, declarando a inconstitucionalização, face ao disposto no art. 205º da Constituição, de que ficou eivada a interpretação e aplicação feitas do disposto no n.º 4 do art. 17º do CPP. Refere ainda o recorrente no Item A1.2. que a participação constitutiva dos vários sujeitos e participantes processuais constitui porventura a mais importante nota caracterizadora de um processo penal de 'estrutura acusatória', tal como o português é caracterizado na primeira parte do n.º 5 do art. 32º do diploma fundamental. Ora, a forma como o M.mo Juiz interpretou e aplicou quer o disposto no n.º 4 do art. 141º, quer o n.º 3 do art. 194º do CPP violou
(in)justamente o referido ditame constitucional, pelo que se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie da amizade constitucional dos referidos comandos do direito legislado - repete-se: tal como interpretados e aplicados no caso concreto - face ao disposto no primeiro sector da assinalada norma constitucional (art. 32º, n.º 5, primeira parte) nos termos suscitados no ponto em questão da motivação. E mais:
Foi suscitada no item A1.3. da motivação uma outra questão que se prende com aquela acabada de referir e que constitui um ponto de referência do moderno e progressivo pensamento jurídico-processual-penal (lá fora, porque entre nós, como é hábito, também a este crucial aspecto a 'desertificação' constitui regra que conheça uma parca, se bem que brilhante, excepção): o princípio do fair trial ou da lide leal, como decorre do n.º 1 do art. 32º da Constituição. O que, de resto, como aí referido, se aparenta com a questão do direito a um processo equitativo, nos termos do n.º 4 do art. 20º do diploma fundamental e da n.º 1 do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Ora, todos estes comandos fundantes foram desconsiderados ou violados na interpretação e aplicação que do n.º 4 do art. 141º e dos n.os 1, e 3 do art. 193º, ambos do CPP, foi feita pela primeira instância, em resposta ao requerimento apresentado pelo ora recorrente no auto de 'perguntas' e posteriormente ressuscitados na motivação. A despeito da linearidade da problemática, ao nível dos direitos fundamentais e das suas consequências para a posição jurídica do arguido na lide, a posição do Senhor Juiz foi coonestada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, traduzindo-se na inconstitucionalização das mencionadas normas do direito legislado, o que se pretende que V.as Ex.as declarem.
Finalmente, a posição assumida pelas instâncias acerca da alegada licitude como meio de prova dos 'diários' apreendidos ao recorrente. Ao fazê-lo, o M.mo Juiz não só não teve em conta o disposto no art. 1º da Constituição da República, como acentuado na Conclusão E27, como os artigos 32º, n.º 8, e 26º, ambos da Constituição da República, normas estas chamadas pelo arguido em conforto da sua posição no requerimento que ditou para a acta de diligência de primeiro interrogatório judicial de arguido detido. Por conseguinte, a valoração permitida pelo despacho judicial e depois confirmada pela Relação, viola, no mínimo, os referidos incisos constitucionais, o que outrossim se impetra V.as Ex.as declarem.
Termos em que, recebido o presente recurso, devem os autos ser remetidos ao Tribunal Constitucional - julga-se que acompanhados do sobrescrito lacrado entregue ao M.mo Juiz Desembargador Relator ... - e aí, após distribuição, proferido despacho pelo Senhor Juiz Conselheiro Relator fixando ao signatário prazo para apresentação de alegações.».
9 - Dada a acentuada imprecisão de sentido do requerimento de interposição do recurso, o relator convidou o recorrente a “definir [...] as normas cuja inconstitucionalidade pretende que o Tribunal Constitucional aprecie”. E precisou ainda que “Com efeito, é ao recorrente que incumbe a definição do objecto do recurso. Não é suficiente, quando se questiona uma determinada interpretação normativa, a afirmação de que ela é aquela que a decisão recorrida adoptou, assim transferindo para o Tribunal ad quem – no caso o Tribunal Constitucional - o ónus de delimitar o objecto do recurso”.
Ao convite efectuado, respondeu o recorrente nos termos que se seguem:
«A., já identificado nos autos e neles recorrente, notificado do douto despacho do M.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator, datado de 5 de Setembro, respondendo, começará por referir o seguinte:
1. Do seu modo de ver, que julga ser também o corrente no Tribunal Constitucional, cabe a este também a apreciação da inconstitucionalidade de normas do direito legislado, cuja inimizade constitucional resulte da interpretação e aplicação que, em casos concretos, tenha sido feita pelas instâncias ou pelo Supremo Tribunal de Justiça. E foi norteado por esta forma de ver as coisas que procedeu à sempre tormentosa tarefa de elaboração do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, cujo foi atempadamente apresentado no Tribunal da Relação de Lisboa, dando-se por aqui integralmente reproduzido o respectivo integral teor.
2. Com efeito, a partir da leitura do referido sofrido e torturado requerimento
- da perspectiva psicológica do signatário, está visto - esclarece o recorrente que, como consta da pág. 2 de tal requerimento, pretende a declaração de inconstitucionalidade do disposto no n.º 4 do art. 141º e do n.º 3 do art. 194º, ambos do CPP, quer lidas estas disposições de per se quer fazendo-o conjugada ou integradamente. É isto, de resto, o que consta, a negro, da locução realçada a negro, precipitada nas duas primeiras linhas de fs. 4 do assinalado requerimento: ... - e é o que o recorrente pretende que V.as Ex.as apreciem e declarem - ...'.
Isto sem embargo de o signatário reconhecer que poderia ter sido bem mais claro, se tem optado por um estilo mais enxuto. Porém, “sofrido e torturado” que se encontrava, sob o peso da enorme responsabilidade que coenvolve o presente recurso - até por isso que, a obter o mesmo provimento, como se espera, constituirá ele um relevante serviço à cultura jurídica nacional, à aplicação da Justiça entre nós e, conexamente, à Pátria - pretendeu ser minucioso à exaustão, tendo-se excedido e ultrapassado os justos limites suficientes para a compreensão do que pretendia transmitir.
3. Por outro lado, na segunda parte do arrazoado a fs. 4, faz-se alusão à falta de fundamentação nos julgados de ambas as instâncias. Para terminar com alusão ao art. 205º da Const. e, estropiadamente, ao n.º 4 do art. 17º (décimo sétimo) do CPP. Trata-se aqui de claro erro de escrita, cuja rectificação, nos termos do art. 249º do Código Civil se requer, porque revelado do próprio contexto do escrito em apreço. Com efeito e na sequência do predito, o que se pretende é que o Tribunal Constitucional declare a inconstitucionalidade da interpretação feita pelas instâncias, nos termos mais amplamente escalpelizados na segunda parte de fls. 4 do requerimento, do n.º 4 do art. 97º (nonagésimo sétimo) do CPP .
4. O segundo parágrafo de fs. 5 também não tem qualquer relevância autónoma neste momento processual. uma vez que mais não constitui que um 'adiantamento' argumentativo da alegada inconstitucionalidade dos acima referidos arts. 141º, n.º 4, e 194º, n.º 3, ambos do CPP. Poderá, quando muito, relevar para a dilucidação dos comandos supra-legais que a interpretação normativa exprobrada e fulminada de inconstitucional, no entendimento do recorrente, violou.
5. E o mesmo se diga da completa inutilidade, aliás susceptível de gerar confusão, como V.a Ex.a, Senhor Juiz Conselheiro Relator logo bem se deu conta, do que ficou escrito na segunda parte de fls 5. Idem, no que respeita à parte final do constante no antecedente ponto 4. deste esclarecimento.
6. Finalmente e no respeitante aos 'diários' e à sua pretensa validade como meios de prova, como resulta de tudo o que ficou escrito nas alegações produzidas nas instâncias - desde logo, no auto de perguntas ['normas estas chamadas pelo arguido em conforto da sua posição no requerimento que ditou para a acta de primeiro interrogatório judicial de arguido detido'] e depois na motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa – pretende o recorrente que V.as Ex.as apreciem da (in)constitucionalidade do disposto no art. 126º do CPP.
Julga o recorrente ter correspondido ao que V.a Ex.a, Senhor Juiz Conselheiro Relator, lhe impetrou (utile per inutile non vitiatur).».
10 - Determinada a apresentação de alegações sobre o objecto do recurso, veio o recorrente a condensar os fundamentos nelas expendidos nas seguintes conclusões:
«B1: A interpretação sufragada pelo Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão recorrido segundo a qual seriam validamente admissíveis como meios de prova certos 'Diários' apreendidos ao recorrente, no decurso de uma busca domiciliária judicialmente autorizada e que, por conseguinte, não se verificaria qualquer violação do disposto no artigo 126º do Código de Processo Penal, torna este comando inconstitucional. Com efeito,
B2: o n.º 8 do artigo 32º da Constituição da República fulmina de “nulidade” - a qual só pode radicar num tertium genus da tipologia das invalidades do processo penal - as provas obtidas em violação da “integridade moral” dos cidadãos, como
é o caso. Por conseguinte,
B3: o acórdão recorrido ao não se ter, sequer, apercebido desta dimensão da questão e ao ter julgado da forma que o fez tornou a norma do artigo 126º, maxime seu n.º 1, do Código de Processo Penal e mais especificamente do sector dela que atine às provas obtidas com violação da “integridade moral” dos cidadãos, materialmente inconstitucional, por violação, não só do disposto no n.º 8 do artigo 32º do diploma fundamental, como ainda dos artigos 1º, 13º, n.º
1, e 25º dele (conf. supra, pág.10)
B4: o que deve ser declarado por V.a Ex.a e, por seguinte também que os referidos “Diários” não podem, em circunstância alguma, ser validamente utilizados como meios de prova, ou de obtenção de prova, no âmbito dos presentes autos. Mas, desgraçadamente, o acórdão recorrido padece de outros vícios bem graves em sede de (des)conformidade constitucional das soluções que fizeram vencimento. Com efeito,
B5: outrossim mal-ferida redundou, da perspectiva da 'amizade' constitucional dela, na interpretação que da mesma foi feita pelas instâncias, a norma do n.º 4 do artigo 141º do Código de Processo Penal
B6: quer interpretada isoladamente, quer considerada em conjugação com o disposto no n.º 3 do artigo 194º do mesmo compêndio normativo. É que,
B7: o M. mo Juiz ao denegar ao arguido recorrente toda e qualquer informação sobre os concretos meios de prova com base nos quais faria presa para aquilatar os 'fortes indícios' da prática pelo recorrente dos crimes que lhe são indiciariamente repontados, por a tanto, no seu modo de ver as coisas, não estar adstrito nos termos do citado artigo 141º, n.º 4, violou desde logo o disposto no n.º 1 do artigo 28º da Constituição da República, norma esta não só directamente aplicável, por força do disposto no n.º 1 do artigo 18º, como comando que não admite qualquer restrição ao seu âmbito, por banda do direito legislado, como decorre do n.º 2 do mesmo artigo 18º da norma normarum
B8: ainda a primeira parte do n.º 1 do artigo 32º da mesma, inciso do direito supra legal do qual se diz, mutatis mutandis, o que ficou dito no que respeita a aplicabilidade do artigo 18º, n.os 1, e 2 da Constituição da República Portuguesa
B9: e, finalmente - no que concerne este ângulo da problemática - a alínea b) do número 3 do artigo 27º deste mesmo diploma, a que também é aplicável, por igualdade de razões, o disposto nos números 1 e 2 do já assinalado artigo 18º. Como assim,
B10: deve o Tribunal Constitucional declarar que a interpretação sufragada pelo M.mo Juiz do 1.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, no concernente ao referido artigo 141º, n.º 4, quer considerando-o isoladamente, quer compaginado com o n.º 3 do artigo 191º, ambos do Código de Processo Penal e, posteriormente, coonestado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, torna o referido preceito materialmente inconstitucional
B11: por concomitante violação do disposto nos artigos 28º, n.º 1, 32º, n.º 1, e da alínea b) do n° 3 do artigo 27º, todos da Constituição da República, normas, de resto, também elas directa e irrestritamente aplicáveis, como decorre do disposto no números 1 e 2 do artigo 18º do diploma fundamental
B12: como de resto, em caso totalmente sobreponível ao dos presentes autos, neste específico aspecto, V.as Ex.as ainda recentemente julgaram com raro brilho, assim prestando relevantíssimo serviço à causa dos direitos, liberdades e garantias e à cultura jurídica da Pátria - que disso tão carecida se vinha mostrando! - no Acórdão n.º 416/2003, de 24 de Setembro de 2003. Mas não foi tudo, infelizmente:
B13: as instâncias, porventura sem se darem conta da função endoprocessual de qualquer decisão judicial, ainda não cumpriram iuxta modum aos deveres decorrentes do disposto de normas como a do n.º 4 do artigo 97º; quanto ao despacho do 1.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal, por não ter racionalizado, motivado ou fundamentado a alegada existência de 'fortes indícios',
B14: erro no qual, outrossim, incorreu o Tribunal recorrido ao limitar-se a referir de forma inacreditável e inenarravelmente enxuta a negação desta evidência - ausência de motivação, quanto a este específico aspecto - o que acarretou conexamente a inconstitucionalização das normas dos artigos 374º, n.º
2, 379º, n.º 1 e 425º, n.º4, todas por violação do ónus decorrente do artigo
205º da Constituição da República, o qual, por rectas contas, constitui direito fundamental, ou de natureza análoga, dos que têm fome e sede de Justiça. Pelo que,
B15: deverão ainda V.as Ex.as declarar que as decisões recorridas, decorrentemente, não apreciaram o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 202º do Código de Processo Penal, com a consequente violação, além daquela acabada de referir, da alínea b) do n.º 2 do artigo 27.º da Constituição
B16: e que, por conseguinte, a decretação da prisão preventiva, no caso concreto
é, em si mesma inconstitucional, por resultante da aplicação do artigo 202º do Código de Processo Penal em termos que não encontram respaldo, antes as contrariam, nas normas constitucionais convocáveis, aquelas a que acaba de fazer-se referência.».
11 - Por seu lado o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto contra-alegou, concluindo pelo seguinte modo:
«1º- O recorrente não cumpriu, em termos procedimentalmente adequados, o convite ao suprimento das deficiências que inquinavam o requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, continuando, na peça processual que apresentou, a não especificar, em termos claros e precisos, quais as interpretações ou dimensões normativas dos preceitos legais por ele invocados que haviam sido feitas pelo acórdão recorrido e que integravam o objecto do recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
2º - Na verdade, o cumprimento adequado de tal convite ao aperfeiçoamento supõe que o requerimento complementar, facultado ao recorrente, trate de enunciar claramente o objecto “normativo” do recurso, não sendo admissível que o recorrente - em vez de nele delimitar com clareza o elenco das interpretações ou dimensões normativas que pretende questionar - se limite a remeter para outras peças processuais, obrigando a que tal delimitação do objecto do recurso decorra de uma problemática conjugação de vários requerimentos ou peças do processo.
3º - Não se mostra suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa quanto à alegada “falta de fundamentação” do acórdão recorrido, não se enunciando, em termos inteligíveis, qualquer critério normativo, sindicável pelo Tribunal Constitucional, limitando-se o recorrente a imputar às concretas decisões das instâncias o vício de “falta de fundamentação”.
4º - Não é inconstitucional a norma constante do artigo 126º, n.º 3, do Código do Processo Penal, entendida em termos de possibilitar a apreensão, em busca judicialmente ordenada - e a posterior valoração como prova - do teor de quaisquer escritos de carácter confidencial ou referentes à intimidade da vida privada - decorrendo, neste caso, a compressão do direito à reserva da vida privada das necessidades de investigação e apuramento da verdade material em processo penal, tuteladas directamente pela Constituição.
5º - Não é inconstitucional a interpretação normativa do artigo 141º, n.º 4, do Código do Processo Penal, traduzida no entendimento de que o juiz, no primeiro interrogatório do arguido detido - concretizando as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos que integram a prática dos crimes que motivaram a detenção,- omite a identidade dos menores de 16 anos, vítimas dos abusos sexuais imputados ao arguido.
6º - Não tendo o recorrente suscitado a específica questão da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 141º, n.º 4, do Código do Processo Penal, na dimensão segundo a qual seria legítimo ao tribunal vedar ao arguido, no primeiro interrogatório, um acesso a elementos probatórios incriminadores, revelados pelo inquérito, sem ponderação, concreta e casuística, da existência de inconveniente grave naquela cominação, não deve considerar-se tal questão como integrando o objecto do recurso, dela não cumprindo, consequentemente conhecer.».
12 - Vindo suscitadas questões prévias nas contra-alegações do Ministério Público, foi o recorrente ouvido sobre elas. Em resposta o recorrente defendeu o seu indeferimento com base no que sobre essas matérias havia afirmado em diversas conclusões das alegações apresentadas para a Relação e ainda na consideração de que se o Relator fixou prazo para alegações «[...] foi por ter entendido, nos termos da lei, que o que carecia de aperfeiçoamento era, tão só, a falada “definição”, e não também, como parece entender o Ministério Público, a
“especificação” das interpretações normativas que pretendia [...]».
B – Fundamentação.
I - Da delimitação do objecto do recurso
13. Como decorre do relatado está instalada uma controvérsia sobre o
âmbito do objecto do recurso. A sua dilucidação é, assim, absolutamente prioritária, dado balizar a actividade cognitivo-decisória que o Tribunal deve desenvolver.
Estamos no domínio de um recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade interposto ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art. 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (doravante designada apenas por LTC). Tal equivale por dizer que o seu objecto apenas pode ser constituído por normas jurídicas cuja inconstitucionalidade haja sido adequadamente, sob o ponto de vista processual, suscitada nos autos. Mas norma jurídica tanto é a prescrição a se tal como ela emerge do preceito legal, como uma determinada interpretação que do mesmo seja feita. Na verdade, esse conteúdo normativo determinado por via interpretativa não deixa de ser aplicado pelos diferentes sujeitos, a administração e os tribunais nos mesmos termos da norma a se.
‘Definição do objecto do recurso’ corresponde, assim, a definição da norma ou a dimensão interpretativa da mesma, quando efectuada. Deste modo, está o recorrente obrigado a especificar a interpretação normativa que entende que o tribunal haja aplicado. O convite feito pelo Relator ao recorrente, nos termos do n.º 5 do art. 75º-A da LTC, é, de resto, bem claro quanto a esse sentido da obrigatoriedade da especificação da interpretação normativa cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie, ao afirmar que é “ao recorrente que incumbe a definição do objecto do recurso” e que “[N]não é suficiente, quando se questiona uma determinada interpretação normativa, a afirmação de que ela é aquela que a decisão recorrida adoptou, assim transferindo para o Tribunal ad quem – no caso o Tribunal Constitucional - o ónus de delimitar o objecto do recurso”. E não se diga que o despacho do Relator contém qualquer decisão, mesmo que implícita, sobre o cumprimento desse
ónus processual, quando ordenou a notificação das partes para alegar. A prolação deste despacho não incorpora, em si, qualquer decisão sobre se o recorrente satisfez de modo adequado o ónus de definição do objecto do recurso, na medida em que a questão não está expressamente apreciada e nem corresponde a uma solução que tenha de ver-se como necessariamente pressuposta pela decisão de se avançar para o passo processual seguinte. Quando muito, o que se poderá ver, num tal estádio dos autos, é que o Relator considerou como não sendo totalmente impossível a definição (ainda que futura) do objecto do recurso, deixando para mais tarde, depois de cumprido o contraditório das contra--alegações, uma posição expressa sobre a matéria. Nesta perspectiva nada impede que venha a concluir-se, após um estudo mais prolongado, em que se entre em linha de conta com o contraditório possibilitado entre as ‘partes’, que aquilo que, numa primeira apreciação, não surgia como óbvio impedimento à admissão do recurso, constitua, afinal, fundamento conducente ao seu não conhecimento (cfr. Acórdãos n.os 253/97 e 404/99, não publicados). E, nesta mesma senda, há-de concluir-se que a sanção da deserção do recurso prevista no n.º 7 do referido art. 75.º-A da LTC apenas se imporá quando o requerente não haja respondido ao convite. Por outro lado, convém deixar, ainda, anotado antes de se avançar, e relativamente à mesma temática, que, ao contrário do que pressupõe o recorrente no requerimento de resposta ao referido convite, o Tribunal Constitucional, do mesmo modo que acontece em outras jurisdições, também está vinculado, nos termos do art. 79º-C da LTC, ao princípio do pedido e nesta medida que só pode conhecer da (in)constitucionalidade das normas cujo pedido lhe seja feito, valendo o princípio do jus novit curia, neste domínio, apenas quanto aos fundamentos, podendo o Tribunal conhecer dessas questões de (in)constitucionalidade ou de
(i)legalidade das normas objecto do pedido “com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi invocada”. Finalmente, importa anotar que a delimitação do objecto do recurso é feita, de acordo com o disposto no n.º 1 do art. 75º-A da LTC - coerentemente, aliás, com a natureza e tipo de recurso, de reexame e de fiscalização concreta de
(in)constitucionalidade de normas -, à face do requerimento de interposição do recurso, considerando-se nele integrado o requerimento de resposta ao convite efectuado a coberto do n.º 5 do art. 75º-A da LTC e que isso demanda uma actividade interpretativa de tais articulados enquanto actos jurídicos praticados pelas partes na qual não pode deixar de atender-se a certos princípios interpretativos comuns (cfr. acórdãos do STJ, de 28/06/1994 e de
28/01/1997, Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - 1994, vol. II, págs. 15 e 1997, vol. I, págs. 83, respectivamente), pelo que será possível atender, aí, numa certa medida, aos elementos fácticos anteriores e posteriores (requerimentos e outros articulados) que o revelem.
14 - Tecidas estas considerações, vejamos, então, se procede a questão prévia do não conhecimento do recurso tecido em volta da “falta de fundamentação nos julgados de ambas as instâncias”. Pretexta o Ministério Público que “o que o recorrente questiona é que as concretas decisões, proferidas nos autos acerca da medida de coacção que lhe foi aplicada se configuram como violadoras do princípio constitucional da fundamentação das decisões dos tribunais, sem conseguir, todavia, enunciar, em termos claros e intelegíveis, qual o critério normativo que, nesta sede, foi acolhido pela Relação no acórdão recorrido”. A estas objecções o recorrente respondeu, em síntese, que “este vício letal do despacho recorrido [o despacho que determinou a aplicação da prisão preventiva] que se contagiou ao douto acórdão recorrido [...]” fora objecto de tratamento na Conclusão E17 da motivação do seu recurso para a Relação, na qual se escreveu o seguinte:
«o despacho recorrido, porque em absoluto destituído de qualquer arremedo de motivação no tocante à matéria de facto, violou, por força dos errados pré-juízos já denunciados, o n.º 4 do art. 97º do CPP e o art. 205º da CRP”
e que, tendo esta tratado a matéria no acórdão que proferiu em tais termos que levaram o recorrente a pedir a aclaração do «“critério normativo... acolhido pela Relação no acórdão recorrido”, a tal propósito foi [...] pura e simplesmente, “resolvido com outra afirmação que releva do mesmíssimo vício e que se encontra precipitada a fls. 15 do acórdão. No entendimento dos M.mos Juízes Desembargadores os quais, repete-se, também não logram fundamentar a respectiva asserção [...]”». E acaba por rematar o seu raciocínio nestes termos:
«Como assim, salvo o devido respeito, é mais do que cristalino - quase se diria:
é “evidentíssimo” para qualquer intérprete/declaratário razoável não norteado por animus ilaqueador de carácter abusivamente formal - que o recorrente pretende que “o dever de fundamentação”, tal como se lhe deu, soi disant,
“cumprimento” quer na primeira instância, quer na Relação, pura e simplesmente, não se compagina com o princípio constitucional do “dever de fundamentação das decisões dos Tribunais”, como resultante do n.º 1 do artigo 205º [por lapso evidente escreveu-se 250º] da norma normarum».
Ora, relativamente à temática aqui em causa, constata-se que o recorrente, segundo uma interpretação orientada pelos critérios interpretativos dos articulados acima apontados, centrou as razões da sua discordância, nas suas alegações para a Relação e nas respectivas conclusões, sempre, no modo como o despacho que lhe aplicou a medida cautelar da prisão preventiva estava, em concreto, fundamentado ou motivado, apodando-o de não ter precisado o concreto
«conteúdo de provas ou de meios de prova dos quais pudesse desprender-se a
“fortaleza” dos indícios» que fossem reconduzíveis aos requisitos estabelecidos no n.º 1 do art. 202º do CPP, «como condição sine qua non de aplicação da prisão preventiva», bem como o «recorte histórico concreto [dos factos fortemente indiciados] que seja fortemente convincente de que a pessoa em causa terá incorrido na respectiva prática» dos ilícitos imputados. Tal resulta, desde logo, no afirmado na Conclusão E9, onde se escreveu:
«Ora, no que toca o despacho que decretou a prisão preventiva verifica-se, desde logo, que nada disto foi tomado em consideração, dele não constando a explicitação das razões de facto ou meios de prova que caracterizarão os alegados “fortes indícios” [...]».
E mais impressivamente ainda do alegado na Conclusão E17, onde se disse:
«o despacho recorrido, porque em absoluto destituído de qualquer arremedo de motivação no tocante à matéria de facto, violou, por força dos errados pré-juízos já denunciados, o n.º 4 do art. 97º do CPP e o art. 205º da Constituição da República Portuguesa».
Resulta assim evidente que o recorrente imputa a ilegalidade do despacho que decretou a sua prisão preventiva a uma directa errada aplicação do disposto nos arts. 97º, n.º 4 do CPP e 205º da CRP e não que aquela ilegalidade resulte da aplicação, em concreto, de uma determinada dimensão normativa que haja sido inferida, por via interpretativa, do referido preceito da lei ordinária, e que seja contrária ao art. 205º da CRP. Muito embora o recorrente se refira a “errados pré-juízos já denunciados”, o que
é certo é que o recorrente coenvolve nessa expressão tanto a imputação ao juiz de uma certa “mundividência jurídica” sobre o seu estatuto de juiz de instrução
(não se vendo como Juiz das Garantias, na fase de inquérito), como de um pré--conceito sobre o mérito das provas em que o Ministério Público fundou a detenção do arguido. De qualquer modo, nunca o recorrente concretizou qual teria sido o critério normativo alcançado por via interpretativa que ofenderia o citado preceito constitucional. Acentue-se, ainda, que o recorrente, mesmo no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, como no próprio articulado de resposta à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, continua a posicionar-se no plano de uma errada aplicação/subsunção às particularidades fácticas do caso dos parâmetros legais que tem por pertinentes para a decisão da causa - os arts.
97º, n.º 4, do CPP e 205º da CRP, jamais tendo avançado com a definição de qualquer critério normativo que tenha sido determinado por via interpretativa pelo acórdão recorrido e que ofenda tal preceito constitucional. Ou seja, o recorrente imputa à própria decisão judicial directamente a violação do preceito constitucional. Na verdade, afirma-se ali:
«E ainda: a afirmação, segundo a qual, à revelia do que foi pertinazmente escrito na motivação, acusando o despacho recorrido de falta de fundamentação bastante ou, mesmo, em certos casos, de mero arremedo de fundamentação, não ficou resolvida com outra afirmação que releva do mesmíssimo vício e que se encontra precipitada a fls. 15 do acórdão (itálico acrescentado)».
E aqui, como já se referiu, afirma, se bem que com um propósito de efeito jurídico oposto decorrente do quadro legal aplicável:
«Como assim, salvo o devido respeito, é mais do que cristalino - quase se diria:
é “evidentíssimo” para qualquer intérprete/declaratário razoável não norteado por animus ilaqueador de carácter abusivamente formal - que o recorrente pretende que “o dever de fundamentação”, tal como se lhe deu, soi disant,
“cumprimento” quer na primeira instância, quer na Relação, pura e simplesmente, não se compagina com o princípio constitucional do “dever de fundamentação das decisões dos Tribunais”, como resultante do n.º 1 do artigo 205º [por lapso evidente escreveu-se 250º] da norma normarum».
Mesmo nas alegações de recurso apresentadas neste Tribunal, continua a ser esse o prisma por onde o recorrente vê a questão, como se retira do concluído sob as alíneas B13 e B14, onde, além do mais, se diz:
«as instâncias, porventura sem se darem conta da função endoprocessual de qualquer decisão judicial, ainda não cumpriram iusta modum aos deveres decorrentes do disposto nas normas como a do n.º 4 do art. 97º; quanto ao despacho do 1ª Juízo do Tribunal de Instrução Criminal, por não ter racionalizado, motivado ou fundamentado a alegada existência de “fortes indícios”,
erro no qual, outrossim, incorreu o Tribunal recorrido ao limitar-se a referir de forma inacreditável e inenarravelmente enxuta a negação desta evidência - ausência de motivação, quanto a este específico aspecto - o que acarretou conexamente a inconstitucionalização dos artigos 374º, n.º 2, 379º, n.º 1, e
425º, n.º 4, todas por violação do ónus decorrente do art. 205º da Constituição da República [...]».
Ora, como é consabido e já se referiu, não cabe na competência do Tribunal Constitucional conhecer das inconstitucionalidades imputadas directamente às decisões judiciais, por o sistema de recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade não obedecer ao figurino do recurso de “amparo”, antes tendo por objecto apenas normas que hajam sido aplicadas como ratio decidendi da causa, segundo emerge do art. 280º, n.os 1 e 2, da CRP e 70º, n.º 1, da LTC. Sendo assim, e pelas razões expendidas, havemos de concluir pelo não conhecimento da questão precipitada em torno da falta de fundamentação.
Mas mesmo que um tal resultado não se apresentasse como uma conclusão irrefutavelmente decorrente dos dados expostos, sempre seria de não conhecer do recurso, por o recorrente não ter conseguido problematizar a questão de constitucionalidade relativamente a uma determinada interpretação do art. 97º, n.º 4, do CPP. Na verdade, cabe ao requerente o ónus de precisar qual o exacto critério normativo ou a exacta dimensão ou segmento normativos que foram efectivamente aplicados pela decisão recorrida e cuja inconstitucionalidade haja suscitado na mesma dimensão.
Vem-se entendendo que a questão de constitucionalidade tem de ser colocada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, os Acórdãos n.º 269/94, in DR II Série, de 18 de Junho de 1994, e n.º 178/95, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º volume, págs. 1118). Com efeito há que anotar que essa indicação precisa da norma, segmento ou dimensão da norma efectivamente aplicada que se pretende ver apreciada sob o prisma da inconstitucionalidade, se torna absolutamente necessária para que o Tribunal Constitucional, no caso de proceder o recurso, possa no julgamento de inconstitucionalidade indicar qual é a norma, segmento ou dimensão da norma que
é desconforme com a Lei Fundamental. Também por esta via se aporta ao mesmo ponto do não conhecimento do recurso relativamente à referida questão.
15 - Vejamos agora a questão prévia suscitada pelo Ministério Público relativa à norma extraída, por interpretação, dos arts. 141º, n.º 4, e 194º, n.º 3, do CPP, na dimensão segundo a qual, no âmbito do primeiro interrogatório de arguido detido, a exposição, pelo juiz, dos factos que lhe são imputados e dos motivos da detenção se basta com uma indicação genérica, cuja inconstitucionalidade o recorrente pretende que este Tribunal aprecie. Sustenta esta entidade não ser exacto que «haja ocorrido interpretação normativa segundo a qual apenas hajam sido formuladas ao arguido “perguntas gerais e abstractas”, sem concretização das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram as condutas delituosas que lhe são imputadas», mas que «bem pelo contrário, procederam as instâncias a uma concretização bastante de tais elementos, apenas deixando - no momento limiar do primeiro interrogatório - de revelar ao arguido a identidade dos ofendidos, vítimas de abuso sexual», pelo que a acepção normativa extraída de tais preceitos se consubstanciou antes num entendimento de que o juiz, no primeiro interrogatório do arguido detido - concretizando as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos que integram a prática dos crimes que motivaram a detenção - omite a identidade dos menores de 16 anos, vítimas dos abusos sexuais imputados ao arguido. E intentando demonstrar não haver sido extraída dos preceitos identificados, por via interpretativa, uma dimensão normativa desenhada naqueles termos, o Ministério Público dá conta não estar ela concretizada na aplicação feita nos autos porquanto deles se verifica:
« - em primeiro lugar (cfr. fls. 48 e segs.) os factos subsumíveis aos tipos legais de crime especificados no mandado de detenção - e do pleno conhecimento do arguido teriam ocorrido no período compreendido entre 1998 e 2003, tendo os encontros sexuais tido lugar em ------- - e sendo vítimas, desde logo, alunos ou ex-alunos da B., do sexo masculino e de idade inferior a 16 anos;
- em segundo lugar, foi revelado expressamente ao arguido que seriam múltiplos os ofendidos pela sua actividade delituosa - apenas se entendendo que
- no momento desse primeiro interrogatório e face à estratégia seguida pela defesa (consistente em negar categoricamente a prática de actos sexuais com menores de 16 anos) - se não justificava a plena revelação da identidade dos ofendidos;
- foram facultados ao arguido determinados elementos documentais constantes do processo, nomeadamente várias fotografias apreendidas em sua casa, representando nus, sendo identicamente confrontado com o teor dos 'diários' apreendidos em busca realizada em sua casa (cfr. fls. 49)»,
aduzindo ainda estar-se perante uma situação diferente da verificada no processo em que foi proferido o Acórdão n.º 416/03, deste Tribunal, porquanto, aí, a determinação e aplicação de uma tal norma foi inferida a partir da consideração de que:
« - apenas terá sido comunicado ao arguido o número e tipos legais de crimes que lhe eram imputados, para além de ser possível deduzir , atento o contexto sobejamente conhecido do processo em causa, que as eventuais vítimas teriam sido alunos ou ex-alunos da B.;
- não teria sido revelado - nem perceptível - para o arguido que, afinal, os múltiplos crimes respeitariam 'à reiterada prática de actos sexuais sempre com o mesmo menor, nem do período temporal em que os mesmos ocorreram, precludindo-lhe a oportunidade de defesa, por conhecimento das circunstâncias que, para ela, seriam essenciais ';
- não teria sido comunicado ou facultado ao arguido o acesso a quaisquer elementos probatórios constantes dos autos, com base na ideia segundo o qual tal acesso seria 'sempre e em quaisquer circunstâncias' interdito, por estar em causa determinada categoria de crimes (sem valoração concreta dos interesses conflituantes da defesa do arguido e das necessidades da investigação).».
Ainda com referência aos mesmos preceitos dos arts. 141º, n.º 4, e 194º, n.º 3, do CPP, o Ministério Público coloca a questão de saber se este Tribunal Constitucional não deverá conhecer de uma outra dimensão normativa que “terá sido feita pelas instâncias, segundo a qual o segredo de justiça deve prevalecer, sempre e necessariamente, sobre o direito de defesa - em termos de legitimar que ao arguido se não possam revelar quaisquer elementos probatórios que constem dos autos de inquérito”, desde logo fazendo notar que “parece efectivamente ser esta a perspectiva seguida pela Relação no acórdão recorrido ao fazer extenso apelo a um voto de vencido, apendiculado ao Acórdão n.º
121/97”. Mas sobre essa dúvida a mesma entidade defende uma resposta negativa por não “vislumbra[r] que o recorrente haja suscitado a questão de constitucionalidade dessa específica interpretação ou dimensão normativa”, quer pela positiva «já que toda a tónica colocada acerca da questão de constitucionalidade radica no carácter “genérico” das imputações fácticas que foram feitas», quer pela negativa, porquanto o recorrente «afirma categoricamente que o objecto do recurso nada tem que ver com a problemática do acesso do arguido a peças do processo com vista a preparar a sua defesa, impugnando a medida de coacção aplicada - e afirmando que tal questão seria “em absoluto estranha ao objecto cognitivo” dos presentes autos».
16 - Na resposta às questões suscitadas, o recorrente limita-se a convocar o alegado no seu requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, acima transcrito, no excerto que abarca as Conclusões E6, E7 e E8 e ainda que
“contrariamente ao referido pelo Ministério Público, a restrição feita pelo Tribunal Constitucional a esta pretensão de considerar irrestritamente inconstitucional a norma do art. 141º, n.º 4, do CPP, tal como foi interpretada e aplicada pelas instâncias, consistente na locução “e na ausência da apreciação em concreto da existência de inconveniente grave naquela concretização e na comunicação dos específicos elementos probatórios em causa” é algo que constitui apenas uma directiva conferida ao Juiz. Este só poderá, na verdade, de acordo com o entendimento perfilhado por V.as Ex.as, considerar que a formulação das perguntas gerais e abstractas, como sucedeu na espécie dos autos, “sem concretização das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos que integram a prática desses crimes, nem comunicação ao arguido dos elementos de prova que sustentam aquelas imputações”, se e apenas quando em concreto tenha referido expressamente a existência do “tal” inconveniente grave. Ora, sub specie, não foi isso que aconteceu. O Senhor Juiz não considerou assim as coisas, não fez a menor alusão a tal “inconveniente”. E não a fez, nem isso foi ressalvado pelo Tribunal da Relação, pura e simplesmente, por um e outra terem procedido à interpretação e aplicação do disposto no art. 141º, n.º 4 do CPP que torna inconstitucional esta norma, por violação das disposições dos arts. 28º, n.º 2, e 32º, n.º 1, ambos da Constituição da República e directamente aplicáveis sem restrições que os mesmos não permitem, como decorre do art. 18º, n.os 1 e 2, deste compêndio».
17 - Ora, pode dizer-se que o recorrente vem desde a primeira hora a questionar a constitucionalidade da acepção normativa extraível da conjugação dos arts. 141º, n.º 4, e 194º, n.º 3, do CPP segundo a qual, no primeiro interrogatório de arguido detido, a exposição dos factos que lhe são imputados e dos motivos da detenção se basta com a realização de perguntas gerais relativas aos factos que lhe são imputados [em contrário do princípio que designa como do fair trial ou da lide leal] e “sem indicação, ainda que sumária, dos meios de prova dos quais se desprende o juízo da existência dos indícios em que o Ministério Público funda a detenção”, de forma a garantir ao arguido um “direito irrestrito a ser ouvido”.
É a visão desta dimensão interpretativa como sendo aquela que estava a ser aplicada, embora acentuando o aspecto da dação do conhecimento sumário dos meios de prova, que levou o recorrente, no auto de interrogatório do arguido, a afirmar que o “Ex.mo Presidente [...] deu um cumprimento insuficiente ao disposto na parte final do n.º 4 do art. 141º do Código de Processo Penal” e que
“é preciso que o juiz actue perante o arguido com absoluta lealdade, dando a conhecer ainda que sumariamente os meios de prova dos quais indiciariamente se desprende o juízo suspeito do Ministério Público”. E no recurso para a Relação, o recorrente recolocou a questão nas conclusões da sua motivação, maxime, nas conclusões E6, E7 e E8. Por seu lado, do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal acima transcrito, resulta claro que é aquela a dimensão normativa dos arts. 141º, n.º 4, e 194º, n.º 3, do CPP que o recorrente pretende que seja apreciada sub specie constitutionis, precisando não estar nela incluída qualquer dimensão normativa nos termos da qual o arguido deva ter um acesso
“irrestrito” aos autos.
Mas se a aplicação feita da lei revela qual o critério normativo que foi pré--determinado pelo tribunal, por via interpretativa, da conjugação dos arts. 141º, n.º 4, e 194º, n.º 3, do CPP, então é seguro que esse critério não coincide inteiramente, nem com o conteúdo delineado pelo recorrente, nem com o recortado pelo Ministério Público.
Na verdade, é claro do confronto entre as objecções feitas pelo Senhor advogado do recorrente em sede do seu interrogatório como arguido detido, a resposta do Ministério Público a essa matéria e o despacho do Senhor Juiz de Instrução - tudo na mesma sede - que ao arguido, no decurso do seu interrogatório como arguido detido, foi dado conhecimento dos tipos legais de crimes que lhe eram imputados, constantes do mandado de detenção, como sendo de
“relações sexuais com alunos e ex-alunos da B., e eventualmente outras pessoas”, do sexo masculino, de idade inferior a 16 anos, e que os encontros durante os quais ocorreram essas relações sexuais haviam acontecido entre 1998 a 2003. Por outro lado, resulta ainda do mesmo auto que foram mostradas ao arguido várias fotografias constantes do processo, apreendidas em sua casa, algumas delas contendo nús, e que o mesmo foi confrontado com o teor [não concretamente precisado] dos “diários” que lhe haviam sido apreendidos. Finalmente, é, ainda, seguro que o tribunal de 1ª instância não desceu a “pormenorização” maior da acabada de apontar por entender que se encontrava dispensado de o fazer em virtude de, tendo utilizado “a técnica de inquirir os arguidos sobre factos gerais”, o arguido ter negado os factos e tal “acabar por tornar desnecessária a sua confrontação com as provas”.
Afrontando a questão colocada pelo recorrente, centrando-a na dimensão da comunicação ao arguido dos factos que lhe eram imputados e dos motivos da sua detenção, a Relação considerou que, à face do art. 141º, n.º 4 do CPP e do art. 32º, n.º 1, da CRP, se tinha como suficiente a comunicação ao arguido “genericamente do que era acusado (da prática de relações sexuais), do momento temporal dos factos que lhe eram imputados, a identidade das vítimas como alunos, à data, da B. e outros, mas todos menores de 16 anos” e que “maior cópia de pormenores poderia, eventualmente, ser apresentada ao arguido, designadamente a identidade das vítimas, se no decurso do interrogatório e pela orientação seguida, viesse a tornar-se necessário”, mas “dado, porém, que o arguido tomou a posição de negar a prática de quaisquer actos de sexo com alunos da B. ou outros no período entre 1998 e a actualidade, parece evidente que não faria sentido ir além dos pormenores a confrontar com o arguido”, pois “a rejeição liminar dos factos imputados, assim genericamente indicados ao arguido, inviabilizou o acesso, por inútil, a outros, num aprofundamento esclarecedor”
(itálico acrescentado).
No juízo que efectuou sobre o âmbito da comunicação dos factos imputados ao arguido e dos motivos da sua detenção, a Relação não entrou em linha de conta com qualquer dimensão normativa relativa à comunicação, “ainda que sumária”, durante o interrogatório de arguido detido, dos elementos de prova que suportam o juízo da existência dos fortes indícios dos factos imputados.
No que se refere aos elementos de prova existentes no processo, a Relação não se manteve na mesma perspectiva e passou a conhecer de uma outra questão como se essa fosse a questão normativa que lhe houvesse sido colocada pelo recorrente [e cuja inclusão no pedido de apreciação da constitucionalidade está abertamente afastada no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, acima transcrito] - a questão da dimensão normativa do acesso do arguido aos elementos de prova constantes do inquérito, defendendo, aí, por adesão aos fundamentos dos votos de vencido constantes do acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 121/97, de um dos quais reproduziu longos excertos, uma interpretação normativa segundo a qual o segredo de justiça deve prevalecer, na fase do inquérito, sempre e necessariamente, sobre o direito de defesa, em termos de legitimar a negação ao arguido do acesso a todos e quaisquer elementos probatórios constantes dos autos, salva a hipótese constante do n.º 2 do art.
89º do CPP.
De tudo resulta que não procede a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, mas também que a norma extraída por interpretação dos arts.141.º, n.º 4, e 194º, n.º 3, do CPP, que foi aplicada pela Relação, não tem o conteúdo que o recorrente lhe assinala, antes um outro mais restrito.
18 - Face a tudo o exposto importa concluir que a dimensão normativa que, por via interpretativa, foi colhida pelo acórdão recorrido a partir da conjugação dos arts. 141º, n.º 3, e 194º, n.º 3, do CPP, e que foi efectivamente por ele aplicada, e cuja conformidade com os arts. 28º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da CRP se questiona, é a norma segundo a qual, no decurso de interrogatório de arguido detido, a “exposição dos factos que lhe são imputados” e dos “motivos da detenção” se basta com a indicação genérica ao arguido do que é acusado (da prática de relações sexuais), do momento temporal dos factos (de 1998 a 2003), da identidade das vítimas como alunos, à data, da B. e outros, mas todos menores de 16 anos, estando o tribunal dispensado, por inutilidade, de proceder a maior pormenorização além da que resulta da indicação feita em tais termos quando o arguido confrontado com ela tome a posição de negar os factos.
Dela se conhecerá, pois.
19 - Finalmente, o recurso tem ainda como objecto - como emerge do requerimento de interposição do recurso e do requerimento que o complementa, interpretados de acordo com os referidos critérios aplicáveis aos articulados, e, dentro deles, tomando como elementos a considerar para a determinação do seu sentido, a arguição de nulidade feita pelo recorrente no auto de interrogatório, a conclusão E22 da motivação do recurso para a Relação, o despacho da 1ª instância que aplicou a medida de coacção de prisão preventiva, as contra-alegações do Ministério Público para o Tribunal da Relação e os acórdãos proferidos por este Tribunal que conheceram do objecto do recurso e da arguição de nulidades - a norma constante do art. 126º, n.os 1 e 3 do CPP, na medida em que viola o disposto nos arts. 1º, 13º, n.º 1, 25º e 32º, n.º 8, da CRP, quando interpretada no sentido de não consagrar a ilicitude de valoração, como meio de prova da existência de indícios dos factos integrantes dos crimes de abuso sexual de crianças imputados ao arguido (p.p. pelo art. 172º, n.º 1, e art.
172º, n.os 1 e 2, ambos do Código Penal) e dos pressupostos estabelecidos nos arts. 202º e 204º, alínea c), do CPP para a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, dos “diários” apreendidos ao recorrente, em busca domiciliária judicialmente decretada e cuja legalidade formal ou procedimental não é posta em causa.
II - Do mérito do recurso
20 - Da inconstitucionalidade da norma, extraída dos arts. 141º, n.º
4, e 194º, n.º 3, do CPP, segundo a qual, no decurso de interrogatório de arguido detido, a “exposição dos factos que lhe são imputados” e dos “motivos da detenção” se basta com a indicação genérica ao arguido do que é acusado (da prática de relações sexuais), do momento temporal dos factos (de 1998 a 2003), da identidade das vítimas como alunos, à data, da B. e outros, mas todos menores de 16 anos, estando o tribunal dispensado, por inutilidade, de proceder a maior pormenorização além da que resulta da indicação feita em tais termos quando o arguido confrontado com ela tome a posição de negar os factos.
Antes de mais cabe notar que, não obstante a norma cuja constitucionalidade aqui se questiona ter um conteúdo algo diferente, não deixam os parâmetros constitucionais com os quais ela deve ser confrontada de ser os mesmos que foram invocados como fundamentos no caso do Acórdão deste Tribunal n.º 416/03.
Recorde-se que aí o Tribunal julgou «inconstitucional, por violação dos artigos 28º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da CRP, a norma do n.º 4 do artigo 141º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que, no decurso do interrogatório de arguido detido, a “exposição dos factos que lhe são imputados” pode consistir na formulação de perguntas gerais e abstractas, sem concretização das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos que integram a prática desses crimes, nem comunicação ao arguido dos elementos de prova que sustentam aquelas imputações e na ausência da apreciação em concreto da existência de inconveniente grave naquela concretização e na comunicação dos específicos elementos probatórios em causa».
20.1 - Dispõe o art. 27º da CRP:
no n.º 1:
«Todos têm direito à liberdade e segurança»;
no n.º 2:
«Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança»;
no n.º 3, alínea b) [em cuja hipótese se enquadra o tipo legal de detenção aplicada ao recorrente]:
«Exceptua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes: Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos»;
e no n.º 4:
«Toda a pessoa privada de liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos».
Resulta destes preceitos que a Constituição de 1976 consagra como direitos e garantias fundamentais os valores da liberdade e segurança. A liberdade - liberdade física ou liberdade de “ir e vir” - é uma exigência ôntica da dignidade humana. É, aliás, como tal que ela é vista pelas convenções internacionais que à matéria se referem (cfr., entre outros, os arts. 3º, 9º e
10º da DUDH; 5º da CEDH e 9º do PIDCP). Sobre a dignidade da pessoa humana a Constituição baseia a República Portuguesa e o Estado de direito que esta é
(arts. 1º e 2º da CRP). E “saber que não se pode ser detido ou preso sem conhecer as razões é a primeira condição de toda a segurança pessoal e o teste de que se vive numa sociedade democrática e num verdadeiro Estado de direito”
(RÉGIS de GOUTTES, em anotação ao art. 5º, § 2 da CEDH, em La Convention Européenne des Droits de l’Homme - Commentaire article par article-, organizada por LOUIS-EDMOND PETTITI e Outros, p. 203). Por isso a Constituição Portuguesa prevê expressamente as privações de liberdade constitucionalmente admissíveis e determina que «toda a pessoa privada de liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos».
Estamos perante um bem jurídico tão essencial da natureza humana que a Lei Fundamental impõe que a pessoa que seja dele privada seja imediatamente informada das razões dessa privação e que isso seja feito de forma que a mesma pessoa fique efectivamente a conhecê-las, de modo a poder reagir dentro do quadro legal, querendo, contra a medida contra si tomada.
Mas a essencialidade da liberdade própria da natureza e da dignidade humanas, e a ofensa a tal valor que a sua privação importa, são patenteadas, ainda, pelo art. 28º da CRP, nos termos do qual “a detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinam e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa”.
Quer dizer: a nossa Lei Fundamental obriga não só a uma informação imediata, e de forma compreensível, à pessoa sobre as razões que determinam a sua detenção, como à sua apresentação dentro do curto prazo referido e a uma nova comunicação pelo juiz dessas razões.
20.2 - Também o art. 5º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, depois de no seu n.º 1 afirmar o direito de toda a pessoa à liberdade e à segurança e de enunciar, nas diversas alíneas do mesmo número, as excepções em que pode ocorrer privação legítima da liberdade, dispõe pelo seguinte modo:
no n.º 2:
«Qualquer pessoa presa deve ser informada, no mais breve prazo e em língua que compreenda, das razões da sua prisão e de qualquer acusação contra ela»;
no n.º 3:
«Qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1, alínea c) [‘se for preso e detido a fim de comparecer perante a autoridade judicial competente, quando houver suspeita razoável de ter cometido uma infracção, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infracção ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido’ – hipótese em que caberá o tipo de detenção do recorrente determinada pelo M.º P.º], do presente artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais [...]»;
e no n.º 4:
«Qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto espaço de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal».
Estamos perante preceitos que desenvolvem os princípios consagrados nos arts. 8º, 9º e 10º da DUDH [“Toda a pessoa tem direito a recurso efectivo para as jurisdições nacionais competentes contra os actos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei»; “Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado»; “Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente (...).]
Como é consabido, a CEDH foi uma das fontes inspiradoras da nossa Lei Fundamental. Sendo assim, - e independentemente do seu valor como direito ordinário convencional recebido na ordem jurídica interna portuguesa, de acordo com o art. 8º, n.º 2, da CRP [e ela foi aprovada para ratificação pela Lei n.º
65/78, de 13 de Outubro] - não pode a normatividade que dela resulta deixar de dar luz sobre o sentido dos referidos preceitos constitucionais.
20.3 - Glosando os referidos preceitos da CEDH, afirma Ireneu Cabal Barreto (A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 2ª edição, Coimbra
1999, p. 102/103) que: «O detido deve saber a razão de ser da sua privação da liberdade - Acórdão Fox, Campbell e Hartley, A 182, pág. 19, § 40»;
que: «Este número [refere-se ao n.º 2] deve ser entendido em harmonia com o disposto no n.º 4 que (...) concede à pessoa privada de liberdade um direito de recurso; ora, quem tem o direito de introduzir um recurso sobre as condições da sua privação de liberdade, só poderá utilizar eficazmente este direito se lhe for comunicado, no prazo mais curto, os factos e as regras jurídicas invocadas para o privar dessa liberdade - Acórdão X/Reino Unido, A 46, pág. 27, § 66; ver, ainda, Acórdão van Leer, A 170-A, pág. 13, § 28»;
que «[...] esta disposição visa informar convenientemente toda a pessoa detida das razões da detenção para que ela possa apreciar a sua regularidade e tomar as medidas para a contestar se ela assim o entender, prevalecendo-se assim do direito que lhe garante o n.º 4 do art. 5.º - Relatório de 16 de Julho de 1980, no caso X/Reino Unido, B, 41, pág. 24, § 103»;
e que: «A obrigação de informação aqui prescrita é menos estrita que a referida no artigo 6.º, n.º 3, alínea a) [‘ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada’]: não tem de revestir uma forma determinada, nomeadamente a forma escrita.
A autoridade não tem de comunicar, no momento da prisão da pessoa uma descrição completa das suspeitas que pesam contra si; tão pouco está obrigada a comunicar-lhe o conteúdo do processo. Deve, contudo, permitir à pessoa privada de liberdade contestar o bem fundado das suspeitas que pesam contra si - Decisões de Setembro de 1959, Queixa n.º 343/57, Ann. Conv., vol. II, pág. 462, de 4 de Outubro de 1962, Queixa n.º 1211/61, Ann. Conv., vol. VI, pág. 480, de 3 de Fevereiro de 1971, Queixa n.º 4220/69, Ann. Conv., vol. XIV, pág. 276, de 13 de Dezembro de 1978, Queixa n.º 9098/77, Déc. Rap., 16, pág.
111, e de 12 de Outubro de 1983, Queixa n.º 9614/81, Déc. Rap., 34, pág. 124».
20.4 - E conhecendo no referido caso Fox, Campbell et Hartley/Reino Unido de matéria enquadrável no n.º 2 do art. 5º da CEDH, sobre ele se pronunciou o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem nos seguintes termos:
«O § 2º do artigo 5º [...] enuncia uma garantia elementar: toda a pessoa detida deve saber porquê. Integrado no sistema de protecção que oferece o art.º 5º, ele obriga a comunicar a tal pessoa, numa linguagem simples para ela, as razões jurídicas e factuais da sua privação de liberdade, a fim de que ela possa discutir a legalidade perante um tribunal ao abrigo do § 4. E ela deve beneficiar destas informações no mais curto espaço de tempo (em inglês: promptly). Para poder determinar se ela as recebeu de forma rápida e suficiente,
é necessário olhar para as particularidades do caso concreto» (LOUIS-EDMOND PETTITI e Outros, op. cit., p. 207).
20.5 - A apresentação do detido, no prazo de quarenta e oito horas,
à autoridade judicial competente visa, na própria economia da nossa Lei Fundamental, que os riscos de uma privação ilegal de liberdade sejam reduzidos ao mínimo possível e tem por funcionalidade constitucional, segundo decorre do próprio texto do n.º 1 do art. 28º da CRP, a obtenção de um juízo judicial sobre a legalidade/ilegalidade da detenção e a definição da situação processual futura do arguido. Isso mesmo acentua o preceito, logo no seu início, ao dizer que a apresentação é para “restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada”.
Mas se esse é o fim da apresentação do detido, segundo os próprios termos da Constituição, não deixa esta de impor ao juiz o cumprimento anterior de certos deveres e de reconhecer ao detido certos direitos autónomos, a exercer antes de tomada a decisão judicial que defina a sua situação processual futura. Estão naquele caso o dever do juiz de conhecer das causas que determinam a detenção da pessoa apresentada e de lhas comunicar. Situa-se no campo de um e outro desses lados o interrogatório que o juiz deve fazer ao arguido: ao mesmo tempo que é um dever para o juiz constitui um direito autónomo do arguido.
Por fim, a Constituição reconhece ao detido o direito de se defender durante o interrogatório feito pelo juiz das razões que determinam a sua detenção. Sendo assim, o interrogatório está predestinado essencialmente para o arguido apresentar, de viva voz ou por escrito, a sua defesa.
Como é evidente, a comunicação das razões de detenção ao apresentado terá de ser feita pelo juiz com observância do princípio de presunção de inocência consagrado no art. 32º, n.º 2 - primeira parte - da CRP, de acordo com o qual “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
A intervenção do juiz que se encontra desenhada no art. 28º, n.º 1, da CRP encontra-se toda ela orientada para a salvaguarda do direito fundamental do arguido à liberdade, intentando obviar à manutenção de qualquer situação de detenção ilegal.
Por outro lado, mesmo em face do figurino de processo penal vigente, em que a investigação realizada durante o processo de inquérito corre sob o imperium quase exclusivo do Ministério Público, dado que apenas se ressalvam os actos a que aludem os arts. 268º e 269º do CPP, a intervenção do juiz, em tal momento processual, busca a sua razão de ser na necessidade de se assegurar o respeito, por um órgão independente, dos direitos fundamentais, sejam do arguido, sejam de outros sujeitos do processo, sejam até de terceiros. Nesta perspectiva, a intervenção do juiz é essencialmente garantística, visando acautelar a realização e defesa dos direitos fundamentais. Poder-se-á, assim, dizer com o recorrente que o juiz de instrução desempenha a função, no interrogatório do arguido detido [como em outros actos do inquérito], de “Juiz das Garantias”.
É aquela a normatividade constitucional que o legislador ordinário quis importar para o art. 141º, n.os 1, 4 e 5.
Atendo-nos, em razão da utilidade para a decisão, ao prescrito nestes dois últimos números, cabe notar que no n.º 4 se determina:
«Seguidamente, o juiz informa o arguido dos direitos referidos no art. 61º, n.º 1, explicando-lhos se isso parecer necessário, conhece dos motivos da detenção, comunica-lhos e expõe-lhe os factos que lhe são imputados».
Entre os direitos do arguido enunciados no n.º 1 do art. 61º do CPP, a que alude o preceito, e com relevo para a apreciação da questão, contam-se os de “estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito”; “ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte” e “não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar”.
Prevenindo a possibilidade de o arguido querer prestar declarações, quando interrogado pelo juiz sobre esse seu direito, dispõe o referido n.º 5 do art. 141º do CPP:
«Prestando declarações, o arguido pode confessar ou negar os factos ou a sua participação neles e indicar as causas que possam excluir a ilicitude ou a culpa, bem como quaisquer circunstâncias que possam relevar para a determinação da sua responsabilidade ou medida de sanção».
Num processo penal decantado sobre os princípios do respeito pela dignidade da pessoa humana, do direito de audiência ou de interrogatório do arguido e do asseguramento de todas as garantias de defesa, todos eles constitucionalmente reconhecidos, o arguido - e cabe acentuar que o detido ao abrigo do art. 257º, n.º 1, do CPP, como foi o caso, fica, logo, pelo facto de ser detido, constituído arguido nos termos do art. 58º, n.º 1, alínea c), do CPP - é sujeito e não objecto do processo e isso, como já o escrevia Figueiredo Dias, antes da Constituição de 1976 e sob a vigência do CPP29, “significa, em geral, ter de se [lhe] assegurar [...] uma posição jurídica que lhe permita uma participação constitutiva na declaração do direito do caso concreto, através da concessão de autónomos direitos processuais, legalmente definidos, que hão-de ser respeitados por todos os intervenientes do processo (Direito Processual Penal, Coimbra, 1974, p. 429). Nas palavras do Autor acabado de citar, o estatuto jurídico fundamental do arguido é “o estatuto próprio de um sujeito processual sempre armado com o seu «direito de defesa», mas que pode também sempre, embora só dentro de um âmbito rigorosamente delimitado por lei, servir de «meio de prova» [será meio de prova, nos termos do Autor, quando o arguido preste declarações sobre os factos e quando seja objecto de exames] e ser
«objecto de medidas coactivas»”.
O interrogatório do arguido não pode deixar, assim, de ter sempre presente que o mesmo é um sujeito processual “armado com o seu direito de defesa”. Relativamente a este momento escreveu Germano Marques da Silva (‘Sobre a liberdade no processo penal ou do culto da liberdade como componente essencial da prática democrática’, em Liber discipulorum para Figueiredo Dias, Coimbra,
2003, p.1371/1372):
«Deve explicitar-se que o interrogatório é um meio de defesa e por isso o arguido deve ser perguntado sobre todos os elementos de facto relevantes para a decisão de modo a dar-lhe oportunidade de defesa. [...]. O interrogatório é, como referimos já, essencialmente um meio de defesa do arguido, mas é um meio de defesa condicionado às comunicações e perguntas do juiz, porque o arguido, em regra, só conhece os factos que lhe são imputados e os indícios da sua responsabilidade através da comunicação e das perguntas que lhe são feitas no acto do interrogatório. Quando o processo é apresentado ao juiz para aplicação de uma medida de coacção, na avaliação que o Ministério Público faz dos indícios de prova recolhidos nos autos, estão já reunidos nos autos os elementos que indiciam a responsabilidade do arguido e os pressupostos da medida de coacção cuja aplicação o Ministério Público promove. O juiz confronta o arguido com esses elementos indiciários, dando-lhe a oportunidade de os confirmar ou refutar, mas o arguido está só, em regra, sem quaisquer elementos auxiliares de memória e incapacitado de no momento fornecer quaisquer elementos probatórios susceptíveis de ilidir os indícios recolhidos [...]». E o mesmo Autor já anteriormente dissera (Curso de Processo Penal, II, edição Verbo, 2002, p. 185) que
«na prática frequente dos nossos tribunais não é dado cumprimento ao disposto no n.º 4 do art. 141º, o que constitui irregularidade. Antes de iniciar o interrogatório sobre os factos imputados ao arguido, o juiz deve expor-lhos, pois, como dissemos, o arguido só pode defender-se conhecendo a imputação».
Por seu lado, Jorge Figueiredo Dias (op. cit., p. 442/443), depois de contestar a vantagem em considerar certos interrogatórios do arguido como predominantemente meios de defesa e outros como predominantemente meios de prova, como alguma doutrina pensava no domínio do CPP29, defende, em termos que são transponíveis para o actual regime de processo penal, que “[...] qualquer dos interrogatórios tem de ser revestido de todas as garantias devidas ao arguido como sujeito do processo - e constitui, nessa medida e naquela outra que tem de respeitar a inteira liberdade de declaração do arguido, uma expressão do seu direito de defesa ou, se quisermos, um meio de defesa. Mas também qualquer dos interrogatórios visa contribuir para o esclarecimento da verdade material, podendo nessa medida legitimamente reputar-se um meio de prova».
Nesta perspectiva, a comunicação das razões da detenção, ou, na linguagem do art. 141º, n.º 4, do CPP, a “exposição dos factos” que densificam os motivos da detenção de que o juiz conhece hão-de ter, como se diz no referido Acórdão n.º
416/03, «a concretização necessária a que um inocente possa ficar ciente dos comportamentos materiais que lhe são imputados e da sua relevância jurídico-criminal, por forma a que lhe seja dada “oportunidade de defesa” (art.
28º, n.º 1, da CRP)». Só desta forma a oportunidade de defesa será uma oportunidade efectiva e eficaz, como é demandado também pela garantia fundamental do acesso aos tribunais consagrada no art. 20º da CRP, aqui para defesa dos direitos e interesses próprios do arguido. No domínio da factualidade ou da materialidade factual, o exercício do direito de defesa, concretizável no exercício do direito de contraditório, só será possível se ao arguido for dado conhecimento dos factos materiais em que se consubstanciam as razões fácticas [ou histórico-fácticas] em que se apoia, ou, para usar os termos constitucionais, que determinam a detenção.
20.6 - Ouvido o arguido, cabe ao juiz pronunciar-se sobre a legalidade/ilegalidade da detenção e definir a sua situação processual futura, como decorre do referido art. 28º da CRP: restituição à liberdade pura e simples ou aplicação de uma medida de coacção e de garantia patrimonial de entre as legalmente previstas, entre as quais se inclui, como última ratio, a medida cautelar de prisão preventiva (cfr. art. 202º do CPP). É a essa definição que se refere o art. 194º do CPP. Ora, no seu n.º 3, dispõe-se que «o despacho referido no n.º 1 é notificado ao arguido e dele constam a enunciação dos motivos de facto da decisão e a advertência das consequências do incumprimento das obrigações impostas [...]» Estando o interrogatório do arguido orientado para a prolação de tal despacho, de acordo até com uma funcionalidade constitucionalmente prevista, como já se acentuou, não pode a comunicação dos factos durante o interrogatório ter um grau de concretização diferente daquele que depois há-de servir de base factual a tal despacho.
É claro que a questão da comunicação ao arguido dos acontecimentos ou comportamentos materiais com relevo para o seu conhecimento dos motivos da sua detenção, que lhe deve ser feita durante o seu interrogatório para lhe propiciar o exercício do direito de defesa, é juridicamente autónoma relativamente à do seu acesso aos documentos de que tais factos sejam inferidos pelo M.º P.º ou pelo juiz. E desta não há que curar aqui, atenta a delimitação feita da norma questionada. Em todo o caso, haverá, pelo menos, uma intercepção dos dois domínios, em uma situação processual: referimo-nos àquelas hipóteses em que a comunicação dos factos seja, e possa ser, feita mediante o acesso do arguido a documentos ou depoimentos constantes dos autos que refiram directamente esses factos. Não há dúvida que, numa situação deste género, estaria cumprida por inteiro a funcionalidade garantística da comunicação dos factos - a dação de efectiva oportunidade de defesa.
20.7 - Vejamos agora se a interpretação extraída pela Relação dos arts. 141º, n.º 4, e 194º, n.º 3, do CPP, acima precisada, satisfaz as exigências demandadas pelos arts. 28º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da CRP. A resposta só pode ser negativa. Na verdade, ao entender que a “exposição dos factos que lhe são imputados” e dos
“motivos da detenção” se basta com a indicação genérica ao arguido do que é acusado (da prática de relações sexuais), do momento temporal dos factos (de
1998 a 2003), da identidade das vítimas como alunos, à data, da B. e outros, mas todos menores de 16 anos, estando o tribunal dispensado, por inutilidade, de proceder a maior pormenorização além da que resulta da indicação feita em tais termos quando o arguido confrontado com ela tome a posição de negar os factos”, não pode deixar de concluir-se que o juiz (e depois a Relação) não dá ao arguido uma efectiva “oportunidade de defesa”. A propósito desta questão escreveu-se no mencionado Acórdão nº 416/03 o seguinte:
“ Numa situação, como a presente [ naturalmente, a que estava em causa nesse processo], que supostamente se prolongou ao longo de um ano, com prática reiterada de actos de índole sexual, não seria, certamente, exigível uma exaustiva pormenorização, com indicação precisa das datas de cada um desses actos, do conteúdo concreto de cada um deles ou da respectiva duração. Mas seria indispensável que ao arguido fosse dado conhecimento das circunstâncias essenciais à sua defesa. O que não implicava que lhe fossem comunicados todos os elementos já conhecidos dos autos, podendo o Tribunal realizar um juízo de ponderação dos interesses conflituantes, eventualmente conducentes a delimitar em concreto o alcance dessa comunicação. Ponto é que – repete-se – lhe sejam comunicados os elementos essenciais à sua defesa.”.
E mais à frente disse-se:
“ [...] mesmo tratando-se de crimes de abuso sexual de crianças, tal facto não dispensa [...] a ponderação, em concreto, dos interesses das vítimas e do interesse do arguido em conhecer os elementos probatórios relevantes. No caso
[...], impunha-se que se apurasse quem eram os autores desses depoimentos, designadamente se eram a(s) vítima(s) ou terceiros, qual a sua idade e qual as eventuais consequências danosas que para eles poderiam advir da revelação desses depoimentos.”.
Na verdade, a exposição dos factos feita nos termos acima referidos deixa, na comunicação, um grau de generalidade demasiado extensa, difusa e imprecisa para permitir ao arguido essa efectiva oportunidade de defesa, tendo ainda em conta que essa defesa, expressa na possibilidade do seu contraditório, deve ser garantida logo durante o próprio interrogatório. O contraditório do arguido teria, então, como objecto não comportamentos concretamente determinados, mas
“tipos” de comportamentos extremamente difíceis de identificar em concreto, porque referidos, apenas, a uma certa categoria de pessoas ou mesmo até impossíveis de precisar, como é o caso da imputação de que essas relações tiveram também lugar com “outros”, menores de 16 anos. E a densificação da generalidade não aumenta quando se acrescente, como aconteceu, que essas relações ocorreram num universo temporal de cinco anos. É que este elemento, mesmo que conjugado com os demais dados de informação que foram fornecidos ao arguido, não permite superar a impossibilidade de determinação dos concretos comportamentos materiais em causa, pois abrange um decurso de tempo demasiado longo para que psicologicamente se possa reconstituir o que durante ele ocorreu.
É claro que, como já se disse, o nível da compreensibilidade da comunicação necessária para que o arguido possa ter efectiva oportunidade de defesa poderia ser propiciado pelo acesso a elementos do processo que evidenciassem os factos ou até por uma informação anteriormente dada ao arguido, nomeadamente, aquando da sua detenção, e em cumprimento do disposto no art. 27º, n.º 4, da CRP, e que assim supririam a deficiência da sua exposição. Tal, porém, não ocorreu no caso concreto. Relativamente a tais aspectos, o que de positivo resulta dos autos é que, não obstante o arguido ter sido confrontado, durante o interrogatório, com umas fotografias contendo nús e um “diário” por si escrito, o facto é que nem a 1ª instância, nem a Relação os tomaram em conta enquanto instrumentos de prova de que o arguido pudesse inferir directamente os factos imputados. A interpretação feita pelo tribunal de 1ª instância, traduzida na técnica do interrogatório, transporta a ideia de que o arguido, para ter conhecimento dos factos e para o interrogatório poder prosseguir, tem de admitir a prática dos factos anteriormente indicados de forma genérica.
O entendimento que foi seguido pelo tribunal é o de que ele está dispensado de proceder a uma maior concretização do que a feita nos referidos termos quando o arguido, interrogado sobre os mesmos termos, tome a posição de os negar, sem que tenham sido, sequer, invocados factos que permitissem uma apreciação em concreto da existência de inconveniente grave na concretização das circunstâncias de
“tempo, modo e lugar” em que eles ocorreram. Tal traduz-se não só numa negação do direito de defesa do arguido na acepção do seu direito à completude necessária da comunicação dos factos que lhe são imputados e que foram os motivos da sua detenção para que perante eles possa ter oportunidade de defesa, como, ainda, na negação do seu direito a negar os factos e/ou não responder a todas, ou apenas a algumas, das perguntas feitas, por qualquer entidade, entre elas se contando o juiz (cf. arts. 141º, n.º 5, e 61º, n.º 1, alínea c), do CPP), como que conduzindo à existência de um ónus de auto-incriminação para o arguido poder exercer o direito de defesa. Uma tal interpretação viola claramente o sentido normativo condensado nos arts.
28º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da CRP.
21 - Da (in)constitucionalidade da norma constante do art. 126º, n.os 1 e 3 do CPP, na medida em que viola o disposto nos arts. 1º, 13º, n.º 1, 25º e 32º, n.º
8, da CRP, quando interpretada no sentido de não consagrar a ilicitude de valoração, como meio de prova da existência de indícios dos factos integrantes dos crimes de abuso sexual de crianças imputados ao arguido (p.p. pelo art.
172º, n.º 1, e art. 172º, n.os 1 e 2, ambos do Código Penal) e dos pressupostos estabelecidos nos arts. 202º e 204º, alínea c), do CPP para a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, dos “diários” apreendidos ao recorrente, em busca domiciliária judicialmente decretada, e cuja legalidade formal ou procedimental não é posta em causa.
21.1 - As disposições constitucionais invocadas apresentam o seguinte teor:
“Artigo 1º - (República Portuguesa)
Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.”
“Artigo 13º - (Princípio da igualdade)
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.”
“Artigo 25º - (Direito à integridade pessoal)
1. A integridade moral e física das pessoas é inviolável.
2. Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos.”
“Artigo 32º - (Garantias de processo criminal)
(…)
8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
(…)”.
21.2 - Por sua vez, o artigo 126º do Código de Processo Penal [transcrevem-se os n.os 1, 2 e 3, atendendo à sua relevância para a questão] dispõe que:
“1. São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa à integridade física ou moral das pessoas.
2. São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante: a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos; b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação; c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei; d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto; e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível.
3. Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
(...)”.
22 - Sustenta o recorrente que a valoração, como elemento probatório, de diários, obtidos através de uma busca domiciliária legalmente ordenada, representa “um imiscuir brutal na intimidade de um ser humano, logo afectando radicalmente o núcleo e reserva indisponível da dignidade do Homem” e contende com “[n]o próprio cerne da [sua] intangível integridade moral”. São estes, pois, os aspectos que, no caso sub judicio, importa indagar.
22.1 - A Constituição condensa, no seu artigo 32º, “os mais importantes princípios materiais do processo criminal – a constituição processual criminal”
(v. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
3.ª edição, Coimbra, 1993). Do seu n.º 8 consta uma referência ineliminável ao problema da prova (“São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio ou nas telecomunicações”), claramente elucidativa de que o nosso legislador constituinte ponderou e valorou os interesses subjacentes ao processo penal, impondo à sua consideração determinados limites, imediatamente decorrentes da tutela da dignidade humana – bem como, assim o referem Gomes Canotilho/Vital Moreira (Constituição..., op. cit., p. 206), dos “princípios fundamentais do Estado de direito democrático”.
22.1.1 - Este punctum crucis da hodierna axiologia fundamentante do processo penal foi tratado no Acórdão n.º 7/87 (publicado no Diário da República I Série, de 9 de Fevereiro de 1987 e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9.º vol., p. 7 e ss.) em termos de revelar a “estrita ligação [do processo penal] com o direito constitucional”, e de resultar, na sua essência, de uma tensão incontornável: por um lado, “propõe-se uma estrutura processual que permita, eficazmente, tanto averiguar e condenar os culpados criminalmente, como defender e salvaguardar os inocentes de perseguições injustas”, tendo em conta, por outro lado, a “válida conciliação de dois princípios ético-jurídicos fundamentais: o princípio da reafirmação, defesa e reintegração da comunidade ético-jurídica – i. é, do sistema de valores ético-jurídicos que informam a ordem jurídica, e que encontra a sua tutela normativa no direito material criminal –, e o princípio do respeito e garantia da liberdade e dignidade dos cidadãos, i. é, os direitos irredutíveis da pessoa humana” (A. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1967-1968, I, citado no Acórdão supra referido). Na mesma linha, escreve-se no referido aresto, reproduzindo Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, 1974), que:
“O processo penal constitui um dos lugares por excelência em que tem de encontrar-se a solução do conflito entre as exigências comunitárias e a liberdade de realização da personalidade individual. Aquelas podem postular, em verdade, uma «agressão» na esfera desta; agressão a que não falta a utilização de meios coercivos (prisão preventiva, exames, buscas, apreensões) e que mais difícil se torna de justificar e suportar por se dirigir a meros «suspeitos» – tantas vezes inocentes – ou mesmo a «terceiros» (...). Daí que ao interesse comunitário na prevenção e repressão da criminalidade tenha de pôr-se limites – inultrapassáveis quando aquele interesse ponha em jogo a dignitas humana que pertence mesmo ao mais brutal delinquente; ultrapassáveis, mas só depois de cuidadosa ponderação da situação, quando conflitue com o legítimo interesse das pessoas em não serem afectadas na esfera das suas liberdades pessoais para além do que seja absolutamente indispensável à consecução do interesse comunitário. É através desta ponderação e justa decisão do conflito que se exclui a possibilidade de abuso do poder (...) e se põe a força da sociedade ao serviço e sob controlo do Direito; o que traduz só, afinal, aquela limitação do poder do Estado pela possibilidade de livre realização da personalidade ética do homem que constitui o mais autêntico critério de um verdadeiro Estado de direito(...). Daqui resultam, entre outras, as exigências correntes: de uma estrita e minuciosa regulamentação legal de qualquer indispensável intromissão, no decurso do processo, na esfera dos direitos do cidadão constitucionalmente garantidos; de que a lei ordinária nunca elimine o núcleo essencial de tais direitos, mesmo quando a Constituição concede àquela liberdade para os regulamentar; de estrito controlo judicial da actividade de todos os órgãos do Estado (...); de proibição de provas obtidas com violação da autonomia ética da pessoa, mesmo quando esta consinta naquela (...)”.
Do mesmo passo que numa certa perspectiva se tem realçado, como o fez o Tribunal Constitucional Federal alemão (Bundesverfassungsgericht – BVerfGE; v. Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts –BVerfGE–, 33, p. 383), que “na medida em que o princípio do Estado de Direito contém uma ideia de justiça como componente essencial [...], ele exige também a manutenção de uma administração de justiça capaz de funcionar, sem o que não se pode ajudar a justiça a vingar
[...], [devendo reconhecer-se] as necessidades irrenunciáveis de uma acção penal eficaz [...], acentuado o interesse público numa investigação da verdade, o mais completa possível, no processo penal, indicando o esclarecimento dos crimes graves como tarefa essencial de uma comunidade orientada pelo princípio do Estado de Direito”, também a doutrina tem recordado a existência de “limites intransponíveis à prossecução da verdade em processo penal” (Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra, 1992, p. 117) que decorrem do reconhecimento de que “quando em qualquer ponto do sistema ou da regulamentação processual penal, esteja em causa a garantia da dignidade da pessoa – em regra do arguido, mas também de outra pessoa, inclusive da vítima –, nenhuma transacção é possível. A uma tal garantia deve ser conferida predominância absoluta em qualquer conflito com o interesse – se bem que, também ele legítimo e relevante do ponto de vista do Estado de direito – no eficaz funcionamento do sistema de justiça penal” (Figueiredo Dias, Para uma reforma global do processo penal português. Da sua necessidade e de algumas orientações fundamentais, in Para uma nova justiça penal, Coimbra, 1983, p. 207).
E este Tribunal, abordando, no seu Acórdão n.º 578/98 (publicado no Diário da República II Série, de 26 de Fevereiro de 1999), o tema da prova em processo penal, não deixou de lembrar que:
“(...) no processo penal, vigora o princípio da liberdade de prova, no sentido de que, em regra, todos os meios de prova são igualmente aptos e admissíveis para o apuramento da verdade material, pois nenhum facto tem a sua prova ligada
à utilização de um certo meio de prova pré-estabelecido pela lei. E recorda-se que também a busca da verdade material é, no processo penal, um dever ético e jurídico.
É que o Estado, como titular que é do ius puniendi, está interessado em que os culpados de actos criminosos sejam punidos; só tem, porém, interesse em punir os verdadeiros culpados: satius esse nocetem absolvi innocentem damnari – sentenciavam os latinos.
O Estado está, por isso, igualmente interessado em garantir aos indivíduos a sua liberdade contra o perigo de injustiças. Está interessado, desde logo, em defendê-los «contra agressões excessivas da actividade encarregada de realizar a justiça penal» (cf. Eduardo Correia, «Les preuves en droit pénal portugais», in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XIV, 1967, p. 8).
Existe um dever ético e jurídico de procurar a verdade material. Mas também existe um outro dever ético e jurídico que leva a excluir a possibilidade de empregar certos meios na investigação criminal.
A verdade material não pode conseguir-se a qualquer preço: há limites decorrentes do respeito pela integridade moral e física das pessoas; há limites impostos pela inviolabilidade da vida privada, do domicílio, da correspondência e das telecomunicações, que só nas condições previstas na lei podem ser transpostos. E existem também regras de lealdade que têm de ser observadas.
(...) Numa síntese aproximativa, pode dizer-se, com Eduardo Correia, que determinada prova é inadmissível «quando a violação das formas da sua obtenção ou da sua produção entra em conflito com os princípios cuja importância ultrapassa o valor da prova livre» (cf. ob. cit., p. 40); numa palavra: quando aqueles valores e princípios são lesados «a um tal ponto que as razões éticas que impõem precisamente a verdade material não podem deixar de a proibir) (ob. cit., p.
35).”
Como se compreenderá, teceram-se estas considerações porque nelas se denota a tensão particular que está subjacente ao nódulo problemático que a presente questão de constitucionalidade constitui, ilustrando o referente axiológico-normativo que tem presidido à sua resolução.
22.1.2 - Concretizando um tal quadro axiológico e as imposições constitucionais relativas à prova no âmbito do processo penal, estabelece-se, no artigo 126º, n.os 1 e 2, do C.P.P., em clara simetria e sintonia com o disposto na nossa Lei Fundamental, uma proibição de valoração das provas obtidas mediante tortura, coacção ou com ofensa da integridade física ou moral das pessoas – relativamente às quais, por atentarem contra direitos indisponíveis do seu titular, é irrelevante o consentimento deste –, e, no artigo 126º, n.º 3, do C.P.P., uma proibição de valoração de elementos probatórios que importem uma intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações, obtidos sem o consentimento do respectivo titular ou fora dos casos ressalvados previstos na lei.
Pode, pois, afirmar-se de tais disposições que “mais do que garantias processuais face à agressão e devassa das instâncias da perseguição penal, os direitos ou interesses que emprestam sentido axiológico e racionalidade teleológica às proibições de prova, emergem como direitos fundamentais erigidos em autênticos bens jurídicos. E, por isso, como referenciais e fundamentos autónomos duma tutela que transcende o horizonte do processo penal” (Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições de prova..., op. cit., p. 188). O que não deixa de relevar sob a perspectiva de que “também o direito processual penal português privilegia a dimensão material-substantiva das proibições de prova. A interpretação e aplicação dos respectivos preceitos terão, por isso, de partir da compreensão das proibições de prova como instrumentos de garantia e tutela de valores ou bens jurídicos distintos – e contrapostos – dos representados pela procura da verdade e pela perseguição penal” (op. cit., p. 196).
Tal concepção, em particular, empresta ao caso sub judicio um tratamento jurídico que, como se reterá, se não pode bastar com a consideração do modo como os diários do recorrente foram obtidos pelo tribunal.
Manuel da Costa Andrade (Sobre as proibições de prova..., op. cit., p. 146), depois de confrontar a solução americana e a alemã e reconhecendo que a
“temática específica da valoração dos diários pessoais deixa intuir as implicações pragmáticas divergentes duma impostação prevalentemente processual-adjectiva ou material-substantiva das proibições de prova”, esclarece que:
“(...) Para o direito americano, o que é decisivo é a licitude ou ilicitude processual do acesso ao diário. Tudo está fundamentalmente em saber se a polícia violou ou não os dispositivos legais e formais que definem e condicionam o exercício da sua competência. A valoração estará excluída se o diário foi apreendido de modo ilegal, nomeadamente por inobservância da exigência de mandado judicial. Mas já será admitida nos termos mais irrestritos se puder concluir-se que a polícia não violou qualquer formalidade legal. Isto à semelhança do que sucederia com a apreensão duma arma ou de um lenço que contém vestígios de abuso sexual sobre um menor (Morrison v. United States, 1958).
São outros os termos em que a questão é equacionada e solucionada na Alemanha. Decisivo é aqui, em primeiro lugar, o conteúdo do diário, isto é e na formulação do BGH, saber se nele se exprime «o desenvolvimento da personalidade e não a sua degradação». E, em segundo lugar, o relevo da nova e autónoma manifestação de danosidade social, sc., do novo atentado ao bem jurídico, que a valoração do diário em processo penal mediatiza. Nesta linha e continuando a apelar para a fundamentação da decisão do BGH a propósito do primeiro caso do diário (1964), quando estão em causa registos atinentes à intimidade pessoal, «está, por princípio, excluída toda a intromissão na esfera privada não tendo, por isso, qualquer significado o modo como o diário chegou ao conhecimento das autoridades». Lícita ou ilicitamente obtido, um diário íntimo não pode, contra a vontade do seu autor, ser valorado em processo penal”.
Anote-se, de resto, que o sistema português assenta, como melhor se verá posteriormente, num tertium genus quanto à questão da relação entre um meio da obtenção da prova e a admissibilidade da sua valoração.
22.1.3 - A possibilidade de valorar o conteúdo de diários do arguido em processo penal foi assaz discutida na Alemanha, conquanto que a propósito de uma fase processual distinta da que está em causa nestes autos (julgamento e não para efeitos de aplicação de medida de coacção da prisão preventiva na fase do inquérito), na sequência de duas decisões do Tribunal Federal alemão
(Bundesgerichtshof – BGH; o “primeiro caso do diário” foi apreciado em 1964 e o segundo em 9 de Julho de 1987, estando tais decisões publicadas, respectivamente, na revista Neue Juristische Wochenschrift – NJW – de 1964, p.
1139 a 1144, e de 1988, p. 1037 a 1039) e da decisão do Bundesverfassungsgericht, de 14 de Setembro de 1989 (NJW, 1990, p. 563 a 566), que resultou do recurso interposto pelo arguido da decisão do BGH de 1987.
Considera-se não ser despiciendo dedicar alguma atenção ao tratamento jurisprudencial e dogmático que os casos dos diários mereceram na Alemanha, referindo-se em particular a discussão do problema no âmbito da jurisdição constitucional germânica, dado reconhecer-se, com fundamento, “a afirmação da proximidade” ou “a sobreposição substancial” entre o direito português e o alemão (v. Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições de prova..., op. cit., p. 188: “O que bem se compreenderá, dada a consabida comunicabilidade geral entre a ordem jurídica portuguesa e a alemã, recondutível já à pertinência comum ao mesmo sistema continental já à não menos determinante permeabilidade entre a doutrina dos dois países. Sendo para além disso conhecida a influência marcante que as grandes construções dogmáticas do pensamento jurídico germânico acabaram por ter em textos legislativos como a Constituição da República Portuguesa e o Código de Processo Penal onde, no essencial, se encontra vertido o direito positivo português das proibições de prova”. ).
No primeiro caso do diário, o BGH decidiu da possibilidade de valoração probatória do conteúdo de diários em sede de um julgamento relativo a um crime de perjúrio. Considerou-se que “se os diários que são da esfera de personalidade do autor (Persönlichkeitssphäre des Verfassers) e que este não quer que sejam conhecidos de terceiros, são trazidos, contra a sua vontade, para servir de prova em processo penal, existe um atentado à dignidade humana e ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade (Menschenwürde und das Grundrecht auf freie Entfaltung der Persönlichkeit), a menos que o interesse do Estado na punição do crime, pesado à luz dos direitos fundamentais, seja mais relevante do que o interesse pessoal na protecção do seu próprio domínio de segredo (das persönliche Interesse am Schutz des eigenen Geheimbereichs)”, o que, por sua vez, apenas sucederá em casos de criminalidade grave (cf. BGH, decisão de 21.02.64, in NJW, 1964, p. 1139).
Foi o que sucedeu no âmbito do segundo caso do diário onde se reflectiu sobre a possibilidade de utilizar descrições tipo diário nos casos da criminalidade mais grave. Neste caso e na sequência da decisão do Tribunal de 1ª Instância
(Landgericht) [que, reconhecendo o carácter íntimo dos diários e que estes não se destinavam a terceiros, afirmou que o facto de o arguido discutir consigo próprio a prática de actos criminosos em mulheres não devia ficar coberto pelo manto de protecção da esfera intocável da personalidade (“in den Mantel des unantastbaren Persönlickeitsschutzes”), daí resultando que os textos escritos sobre actos criminosos e vítimas não podem ter-se por abrangidos pelas proibições de prova (cf. BGH, decisão de 09.07.87, in NJW, 1988, p. 1038)], o BGH, chamando à colação anteriores decisões onde havia defendido, nos casos de criminalidade grave, a utilização de gravações feitas secretamente, acabou também por sustentar que a tutela da intimidade e, em geral, o direito de personalidade não vale ilimitadamente (“Das Persönlichkeitsrecht gilt nicht uneingeschränkt”), tendo-se concluído, em face das necessidades de uma justiça funcionalmente capaz, pela admissibilidade de valoração dos diários no caso concreto (tratava-se de escritos onde o arguido se debatia com os seus problemas de relacionamento com mulheres e com uma tensão crescente que o impelia para a prática de crimes com elas).
Particularmente relevante, e, por isso, merecedor de uma atenção mais delicada, afigura-se o Acórdão do Tribunal Constitucional Federal alemão, de 14 de Setembro de 1989, tirado na sequência do Acórdão do BGH, de 9 de Julho de 1987 (o segundo caso dos diários), em função da queixa constitucional
(“Verfassungsbeschwerde”) apresentada pelo arguido que aí sustentou que a valoração dos seus diários atentava contra o artigo 2 I em conjugação com o artigo 1 I da Lei Fundamental (Grundgesetz – GG), uma vez que, “pelo seu teor, os textos pertenciam ao âmbito nuclear protegido da esfera privada, intocável em qualquer circunstância”.
A decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão assenta numa argumentação que não se sobrepõe à constante da jurisprudência supra citada do BGH, porquanto não se abandonando a jurisprudência anterior que reconhece uma
“esfera de intimidade absolutamente protegida” em relação com a dignidade da pessoa humana, considerou-se, numa decisão com quatro votos a favor e quatro contra, que as concretas descrições tipo diário, pelo seu conteúdo, não diziam respeito a essa esfera inviolável.
Como referem Baumann/Brenner (in Die strafprozessualen Beweisverwertungsverbote, Stuttgart-München-Hannoover, 1991, p. 160-161), o Bundesverfassungsgericht foi unânime quanto ao “princípio geral chamado para a solução do caso concreto [:] fundamentalmente, o direito geral de personalidade é limitável através da consideração de interesses importantes da comunidade. Uma excepção existiria apenas no que diz respeito ao conteúdo [último] de dignidade da pessoa e dos direitos de personalidade (Menschenwürdegehalt des Persönlichkeitsrechts) (...) para um âmbito intocável de conformação da vida privada (unantastbaren Bereich privater Lebensgestaltung)”. Nessa medida, o Tribunal Constitucional Federal alemão, reconhecendo embora a tutela jusfundamental de um direito geral de personalidade que garante ao indivíduo a conformação da sua vida privada (cf. BVerfGE, decisão de 14.09.89, in NJW, 1990, p. 563), não deixou de afirmar a relevância da imposição de limites que “podem decorrer, em especial, de um interesse geral prevalecente da comunidade, porquanto, se o indivíduo, como cidadão, vive inserido numa comunidade e entra, através da sua conduta, em relação comunicativa com os outros, pode, com isso, tocar a esfera pessoal dos seus concidadãos e os interesses da comunidade (die persönliche Sphäre seiner Mitmenschen oder die Belange der Gemeinschaft berührt”) - cf. BVerfGE, decisão de 14.09.89, in NJW,
1990, p. 563. Em todo o caso, segundo o Tribunal Constitucional Federal alemão, existe “um domínio último intocável de conformação da vida privada que é, sem mais, retirado ao poder público. Mesmo os interesses mais importantes da comunidade não podem justificar actuações nesse campo; uma ponderação segundo o princípio da proporcionalidade (Abwägung nach Maßgabe des Verhältnismäßigkeitsgrundsatzes) não tem aqui lugar. Isto decorre, por um lado, da garantia (...) dos direitos fundamentais e, por outro lado, deduz-se [da ideia de que] o cerne da personalidade é protegido através da dignidade intocável da pessoa humana.
Assim sendo e considerando o problema que estava em julgamento, foi enfaticamente enunciado pela jurisdição constitucional alemã que “o contacto com a esfera de personalidade de um outro homem confere à acção ou a uma informação um significado social que a torna acessível a uma regulamentação jurídica”. Por isso, considerou-se que “se um facto pode ou não ser classificado como pertencendo ao núcleo íntimo depende (...) de o seu conteúdo apresentar um carácter altamente pessoal e em que medida e intensidade ele toca, por si, a esfera de outros ou os interesses da comunidade”, e, consequentemente, concluiu-se que a Lei Fundamental não impõe, tout court, a subtracção, à utilização em processo penal, de diários e descrições privadas semelhantes: “um registo de um diário não faz com que as informações sejam postas fora do alcance da actuação do Estado. Antes pelo contrário, a capacidade de estas serem utilizadas depende do carácter e do significado do seu conteúdo. Se tais descrições contêm, por exemplo, indicações sobre o planeamento de crimes ou uma descrição de crimes consumados, elas estão, portanto, em imediata relação com concretas acções puníveis (unmittelbaren Bezug zu konkreten strafbaren Handlungen) e [por isso] não pertencem ao domínio intocável da vida privada. Daqui segue-se, também, que, no âmbito da prossecução da investigação penal, não exista, ao nível do direito constitucional, um obstáculo a apreciar os escritos constantes dos diários se contiverem informações sobre a investigação processual” (cf. BVerfGE, decisão de 14.09.89, in NJW, 1990, p. 564).
No caso de as descrições constantes de textos privados tipo-diário não pertencerem ao domínio íntimo absolutamente protegido, a sua valoração, no entendimento do Tribunal Constitucional Federal alemão, carece, ainda assim, de uma justificação mediante a afirmação de um “interesse prevalecente da comunidade”. E, quanto a este ponto, a posição assumida, na esteira de anteriores decisões jurisprudenciais, passou pela consideração de que a
“Constituição atribui uma elevada importância às necessidades de um tratamento jurídico orientado para a garantia do Estado de Direito no que concerne à ideia de justiça. O Tribunal Constitucional tem salientado repetidamente as necessidades inadiáveis de (...) luta contra o crime, acentuando o interesse público na averiguação da verdade no processo penal e designou o esclarecimento eficaz de crimes graves como uma função essencial no âmbito de um Estado de Direito (cf. BVerfGE, decisão de 14.09.89, in NJW, 1990, p. 564. Contudo, para o Tribunal Constitucional Federal alemão não é menos verdade que o direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade não tem um significado menor, pelo que “um equilíbrio destas duas tensões só se poderá alcançar se às intervenções, que sejam necessárias sob o ponto de vista de um tratamento jurídico eficaz, for sempre contraposta, como ponto de equilíbrio, a obrigação de protecção decorrente do art. 2 I em conjugação com o art. 1 I da Grundgesetz”. O que significa, na opinião manifestada no aresto em consideração, que é sempre de ponderar, em concreto, qual das dimensões deve, ainda que com limitações, prevalecer: “se a utilização dos textos [dos diários] não for, em geral, de excluir, então, no caso concreto, deve ainda verificar-se se tal utilização em processo penal é adequada e necessária para a averiguação do crime e se a intervenção na esfera privada, condicionada por isto, não está desproporcionada (ist nicht außer Verhältnis) em relação ao objectivo de esclarecimento [da verdade] no direito penal” (cf. BVerfGE, decisão de 14.09.89, in NJW, 1990, p. 564).
Ora, se as considerações expostas mereceram o consenso do Tribunal Constitucional Federal alemão, já o facto de saber se os registos concretos de tipo-diário do arguido integravam, ou não, o domínio da esfera íntima, absolutamente protegida pela Lei Fundamental, acabou por dividir os juízes de uma maneira inexorável:
(a) Quatro magistrados entenderam que a utilização dos textos seria admissível na medida em que consideraram que as “descrições” deles constantes não pertenciam à esfera íntima do arguido – como descrevem Baumann/Brenner (in Die strafprozessualen..., op. cit., p. 160-161), entendeu-se que “no mínimo, o conteúdo das descrições aponta para além da esfera íntima do arguido, dizendo respeito à sua estrutura de personalidade, além de evidenciarem igualmente uma situação de perigo concreto para terceiros (...) estando numa relação estrita com o acontecimento fáctico (...), e, assim, a autorizada ponderação do caso concreto à luz do princípio da proporcionalidade deveria conduzir, perante um caso da mais grave criminalidade, à possibilidade de valoração dos diários do arguido”. Tal posição, sufragada, entre outros, por Kirchhof, teve na sua base o entendimento de que os concretos “registos tipo-diário” tocavam interesses marcantes da comunidade, tendo um conteúdo que ia para lá da esfera jurídica do seu autor, além de que, apesar de não revelarem um planeamento concreto do crime, a relação deste com o processo reflectido na escrita apresentava uma ligação tal que impunha que os textos, revelando igualmente uma situação de perigo concreto para terceiros, tivessem de ser valorados pelo tribunal, não se encontrando, consequentemente, sob a protecção da reserva da intimidade (cf. BVerfGE, decisão de 14.09.89, in NJW, 1990, p. 564-565).
(b) Os restantes quatro juízes, ao invés, concluíram pela impossibilidade de valoração probatória do conteúdo concreto constante das “notas tipo-diário” do arguido, sustentando que as reflexões efectuadas integravam a esfera íntima do arguido, e, como tal, mereciam uma protecção absoluta. Baumann/Brenner (in Die strafprozessualen..., op. cit., p. 162), dando conta dos argumentos subjacentes a tal posição, mencionam que “as descrições [do arguido] não tocavam a esfera de outros ou da comunidade, elas não continham, de modo nenhum, indicações sobre um facto concreto posterior e apenas reproduziam impressões internas. A possibilidade de, a partir do diário, retirar conhecimentos sobre a personalidade do [arguido] não apresenta ligação suficiente ao caso concreto
(...)”. Nessa linha e tendo em conta que parte do tribunal considerou os escritos do arguido como tendo, exclusivamente, um carácter altamente pessoal
(“ausschließlich höchstpersönlichen Charakter”), sustentou-se que os escritos manifestavam “um estado de consciência aberto (...) e reflexões sobre a estrutura da própria personalidade que o arguido, sem piedade do seu mundo de sentimentos, queria melhorar para, desse modo, poder conviver melhor com os seus problemas. Esta discussão com o seu próprio eu só assim acontecia e só assim podia acontecer, porque, na solidão da conversa consigo mesmo, protegido, portanto, de olhos e ouvidos estranhos, não perdeu o seu carácter altamente pessoal por terem sido confiados ao papel. Tão certo é que os pensamentos são livres e, por isso, têm de ficar livres da (...) intervenção do Estado (...). Os
[concretos] textos escritos (...) antes do crime não tocam a esfera dos outros ou da comunidade, reflectem exclusivamente impressões internas e sentimentos e não contêm, de modo nenhum, indicações sobre o acto criminoso que mais tarde foi imputado ao arguido” (cf. BVerfGE, decisão de 14.09.89, in NJW, 1990, p. 565).
Destarte e em face do disposto no § 15, 3, da Lei do Tribunal Constitucional Federal alemão (Bundesverfassungsgerichtsgesetz), existindo igualdade de votos, esse Tribunal não se pronunciou no sentido da existência de uma violação à Lei Fundamental, não tendo, por isso, sido acolhida a queixa apresentada pelo arguido.
Relativamente às posições dogmáticas relacionadas com o problema subjacente, Manuel da Costa Andrade (in Sobre as proibições de prova..., op. cit., p. 32 e ss.) dá conta de que a doutrina dominante alemã admite uma aberta ponderação dos interesses em causa, considerando como justificável uma intromissão na esfera
íntima do arguido quando estiverem em causa casos de criminalidade especialmente grave:
“De acordo, por exemplo com Schäfer: «O primado da esfera íntima, face às necessidades da justiça penal na procura da verdade, recua quando, à luz do princípio de proporcionalidade, a ponderação com o significado do direito fundamental de respeito pela dignidade humana e o livre desenvolvimento da personalidade faz emergir prevalecentes necessidades da justiça criminal, que exigem a admissibilidade de produção e valoração do meio de prova. Quando, por exemplo, a valoração de gravações ou de dados constantes de um diário constituem o único meio processual de libertar outra pessoa de uma acusação particularmente séria ou sobre o arguido impende a suspeita fundada de um atentado grave à ordenação jurídica» (...). Na fórmula de Kleinknecht: «Como bens jurídicos em confronto e interesses a ponderar entre si aparecem: de um lado, o interesse da perseguição criminal encabeçado pela comunidade jurídica ofendida e tendo na devida conta o significado da matéria criminal; e, do outro lado, a ideia de justiça e o imperativo de um processo conforme às exigências de justiça.
(...) Na fundamentação e defesa deste paradigma vem-se destacando Rogall a quem se deve uma das mais acabadas e consequentes formulações. Isto no contexto duma construção, que se nos afigura exageradamente simplificadora e que reconduz as proibições de prova a uma conflitualidade unidimensional a partir da sua definição como «meros instrumentos de tutela de direitos individuais
(Instrumente des Individualrechtsschutzes)». Instrumentos cuja actualização, em nome e ao serviço de direitos individuais constitucionalmente sancionados, colide forçosa e abertamente com outro interesse de não menos ostensiva dignidade: «uma justiça criminal funktionstüchtige, sem a qual nunca poderia afirmar-se plenamente realizado o Estado de Direito». Na síntese do autor: «Para o cidadão as proibições de prova aparecem como instrumento de defesa dos direitos individuais contra a actividade estadual de perseguição criminal. As proibições de valoração emergem e relevam assim do conflito entre os interesses individuais e o interesse da perseguição penal. Só pode afirmar-se a sua existência quando a consideração da concreta situação de conflito faz aparecer a prevalência do interesse individual, porque o princípio do Estado de Direito reclama a garantia e efectivação do bem jurídico individual face à actividade de perseguição do Estado». A ponderação, precisa Rogall, terá de orientar-se expressamente para as singularidades da situação, fazendo nomeadamente relevar o significado do interesse punitivo, a gravidade da violação legal, a dignidade de tutela e a carência de tutela do interesse do lesado (...)”.
Já Claus Roxin (in Strafverfahrensrecht, München, 1993, p. 160), criticando as sucessivas decisões concretas do BGH onde o interesse da prossecução da justiça prevaleceu perante o direito de personalidade, afirma uma posição tendencialmente coincidente com o princípio geral de ponderação afirmado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, posto que, chamando a atenção para a importância das especificidades do caso concreto, veda a valoração de diários quando esteja em causa o domínio nuclear intocável da personalidade e, inerentemente, a dignidade do homem (“den unantastbaren Kernbereich der Persönlichkeit und damit die Menschenwürde”) – cf. Claus Roxin, Strafverfahrensrecht, op. cit., p. 160 –, admitindo, fora de tais circunstâncias e em casos de criminalidade grave, a razoabilidade de uma ponderação da protecção da personalidade do arguido e dos interesses subjacentes à prossecução da justiça penal (“Strafverfolgungsinteressen”) – cf. Claus Roxin, Strafverfahrensrecht, op. cit., p. 161.
Não faltam, contudo, na doutrina alemã, vozes mais críticas. Como dá conta Manuel da Costa Andrade (in Sobre as proibições de prova..., op. cit., p.
32 e ss.):
“(...) autores como Grünwald, Hassemer, Wolter ou Amelung, vêm pondo em evidência que a doutrina da ponderação (...), para além de colidir com os princípios basilares da organização e funcionamento do Estado de direito, só seria possível em nome de uma compreensão do direito extremamente orientado para as consequências e, por isso, indiferente à legitimação material e à margem de todo o lastro ético-axiológico.
(...) Bastará ter presente a clarificadora decisão do segundo caso do diário, segundo a qual a repressão da criminalidade grave legitima a valoração do diário mais
íntimo, em que o seu autor se confronta com problemas existenciais e radicalmente incomunicáveis. Diários que a doutrina dos três degraus definiria como expressão paradigmática daquela área nuclear intangível (unantastabaren Kernbereich), de todo subtraída ao alcance dos juízos de ponderação.
(...) A ideia da existência de princípios e valores do processo penal, atinentes às proibições de prova, indisponíveis, e como tais subtraídos à «dogmática da ponderação», é particularmente acentuada por Hassemer e Wolter.
(...) Wolter considera que «em todos os casos que contendam com a dignidade humana, não poderão ser chamados à ponderação dos interesses por uma justiça penal eficaz. Quem o fizesse não tomaria a sério nem a inviolabilidade da dignidade humana nem um processo penal vocacionado para a protecção dos direitos fundamentais. Pois nas situações de criminalidade mais grave uma tal ponderação de interesses redundaria sempre na frustração da tutela dos direitos fundamentais».
Note-se, porém, que tais críticas acabam por não abalar o princípio geral que orientou o Bundesverfassungsgericht no Acórdão relativo ao segundo caso dos diários. Na verdade, o tribunal, referindo decisões anteriores (“BVerfGE 6, 32 [41] = NJW
1957, 297; BVerfGE 6, 389 [433] = NJW 1957, 865; BVerfGE 54, 143 [146] = NJW
1980, 2572”), não deixou de reconhecer a existência de uma esfera inviolável de intimidade (“einen letzten unantastbaren Bereich privater Lebensgestaltung”), subtraída à intervenção do Estado e a qualquer ponderação à luz do princípio da proporcionalidade (cf. BVerfGE, decisão de 14.09.89, in NJW, 1990, p. 563), tendo apenas concluído, nos termos já descritos, que as concretas descrições tipo diário poderiam ser valoradas por não contenderem com essa esfera inviolável.
Com uma argumentação distinta, Amelung (Der Grundrechtsschutz der Gewissenserforschung und die strafprozessuale Behandlung von Tagebüchern, in NJW, 1988, p. 1002 a 1006, apud Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições de prova..., op. cit., p. 99) também se pronuncia favoravelmente à afirmação de uma esfera de intimidade inviolável que cabe ao direito garantir (“e na qual o cidadão pode ceder às suas necessidades menos apresentáveis” – cf. Amelung, Der Grundrechtsshutz..., op. cit., p. 1004), acabando, todavia, por colocar a questão relativa à valoração dos diários no plano da liberdade de consciência
(art. 4.º da GG), excluindo, assim, a possibilidade de estes serem mobilizados no âmbito do processo penal. O Autor, partindo sobretudo da consideração do segundo caso do diário e reflectindo o conteúdo típico de diários, considera que as descrições em diários “mais não são do que a projecção do forum internum sobre o papel”; são, no fundo, “discussões consigo próprio para a solução de tensões internas (Lösung innerer Spannungen)”, afirmando, de seguida, que seriam aqui enquadráveis as descrições do segundo caso dos diários resultantes das “tensões internas” do arguido que, num diálogo com o seu “melhor eu”, “serviam para tentar evitar um temido envolvimento na prática de actos criminosos” (cf. Amelung, Der Grundrechtsshutz..., op. cit., p. 100), e, portanto, assim sendo, o que resulta da discussão interna não releva apenas do direito geral de personalidade, mas sim do direito fundamental de liberdade de consciência (art. 4 I GG), que
“pertence aos poucos direitos fundamentais que a Lei Fundamental garante sem reservas”. Tal posição, que classifica tal discussão privada por escrito consigo mesmo e com o mundo (“schriftliche Privatauseinandersetzung mit sich und der Welt”) como um problema de consciência (“Gewissensproblem”), vai, contudo, demasiado longe na opinião de Claus Roxin (cf. Strafverfahrensrecht, op. cit., p. 160) e da doutrina maioritária alemã, que, ao invés, coloca a questão principal no âmbito dos arts. 1.º e 2.º da Lei Fundamental.
22.2 - Efectuado este excurso geral sobre o thema, importa agora abordar especificamente o problema da admissibilidade da relevância probatória do conteúdo de diários em face do tratamento do direito à reserva da intimidade da vida privada em relação com a tutela constitucional da dignidade da pessoa humana, posto que o arguido faz decorrer a violação dos artigos 1º, 13º, 25º e
32º, n.º 8, da Constituição, do facto de a valoração do conteúdo dos diários representar uma insustentável intromissão na sua intimidade, atentando contra uma esfera pessoal inviolável que a todos deve ser reconhecida.
22.2.1. A Constituição, após abrir o catálogo dos direitos, liberdades e garantias pessoais (Título II, Capítulo I, da nossa Lei Fundamental) com a tutela do direito à vida (art. 24º) e do direito à integridade pessoal (art.
25º), consagra, no art. 26º (sob a epígrafe “outros direitos pessoais”), um conjunto de direitos fundamentais que, como refere Paulo Mota Pinto (in A Protecção da vida privada e a Constituição, Boletim da Faculdade de Direito
-BFD-, Coimbra, 2000, p. 155), protegem “um círculo nuclear da pessoa, correspondendo, genericamente, a direitos de personalidade”. Entre esses, encontra-se o direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada – direito este que, como se compreende, tem de ser considerado e entendido em relação com a garantia de inviolabilidade do domicílio e da correspondência constante do artigo 34º da Constituição (v. Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 2001, p. 117; Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição..., op. cit., p. 212; e Paulo Mota Pinto, A protecção..., op. cit., p. 156) –, cuja tutela não deixa de projectar-se em sede processual penal, impondo limites à valoração de provas que representem uma abusiva intromissão em tal esfera – designadamente quando seja “efectuada fora dos casos previstos na lei e sem intervenção judicial (art. 34º - 2 e 4), quando desnecessária ou desproporcionada, ou quando aniquiladora dos próprios direitos
(cfr. art. 18º - 2 e 3)” (v. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição..., op. cit., p. 206), ou quando o titular do direito não consinta na intromissão.
Ora, antes de mais e atendendo ao facto de que, como foi enfatizado no Acórdão n.º 278/95 (publicado no Diário da República II Série, de 28 de Julho de 1995), o texto constitucional “não estabelece o conteúdo e alcance do direito
à reserva da intimidade, nem define o que deva entender-se por intimidade como bem jurídico constitucionalmente protegido”, importa concretizar o que se tem entendido por intimidade da vida privada, sendo forçoso reconhecer, nesse
âmbito, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição..., op. cit., p. 181), que “não é fácil demarcar a linha divisória entre o campo da vida privada e familiar que goza de reserva de intimidade e o domínio mais ou menos aberto à publicidade”.
Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição..., op. cit., p. 181) consideram que o direito à intimidade da vida privada e familiar “analisa-se principalmente em dois direitos menores: (a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem (cfr. Cód. Civil, art. 80º)”.
Paulo Mota Pinto (in A protecção..., op. cit., p. 164), determinando o interesse correspondente à protecção da reserva da vida privada, afirma que está em causa “[d]o interesse em impedir ou em controlar a tomada de conhecimento, a divulgação ou, simplesmente, a circulação de informação sobre a pessoa, isto é, sobre factos, comunicações ou situações relativo[s] (ou próximos) ao indivíduo, e que previsivelmente ele considere como íntimos, confidenciais ou reservados. Trata-se do interesse na autodeterminação informativa, entendida como controlo sobre informação relativa à pessoa. [§] Paralelamente a este interesse, podemos também sublinhar a subtracção à atenção dos outros (anonimato lato sensu) ou interesse na “solidão” (“solitude”), isto
é, na exclusão do acesso físico dos outros à pessoa do titular. (...) A protecção da reserva sobre a vida privada origina, assim, um núcleo de intimidade, de solidão ou anonimato que desempenha importantes funções, sociais, psicológicas, etc., para a pessoa” – do mesmo Autor, cf., mais desenvolvidamente, O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, BFD, Coimbra, 1993, p. 504 e ss..
Para Benjamim Rodrigues (O sigilo bancário e o sigilo fiscal, in Sigilo Bancário, Lisboa, 1997, p. 104, citado pelo recorrente), “o direito fundamental à reserva absoluta de intimidade da vida privada, que se impõe a qualquer sujeito de direito, (...) só abrange aqueles domínios que, sendo emanação da personalidade humana, expressam valores ou opções do foro íntimo que não têm de ser conhecidas relacionalmente por encarnarem valores de dignidade do Homem enquanto Homem, visto como dono exclusivo do seu corpo, do seu espírito e das suas manifestações segundo a concepção civilizacional vigente (opções filosóficas, religiosas, políticas, sexuais, etc.)”.
Já Rabindranath Capelo de Sousa (O direito geral de personalidade, Coimbra, 1995, p. 318 e ss.), ainda que tratando o problema em sede juscivilística, afirma que o direito à reserva “abrange não só o respeito da intimidade da vida privada, em particular a intimidade da vida pessoal, familiar, doméstica, sentimental e sexual e inclusivamente os respectivos acontecimentos e trajectórias, mas ainda o respeito de outras camadas intermédias e periféricas da vida privada (...) bem como também, last but not the least, a própria reserva sobre a individualidade do homem no seu ser para si mesmo, v.g., sobre o seu direito a estar só e sobre os caracteres de acesso privado do seu corpo, da sua saúde, da sua sensibilidade e da sua estrutura intelectiva e volitiva”.
A jurisprudência deste Tribunal já se pronunciou sobre a noção de reserva sobre a intimidade da vida privada, tendo, assim, oportunidade de concretizar o conteúdo de tal direito.
No Acórdão n.º 128/92 (publicado no Diário da República II Série, de
24 de Julho de 1992), considerou-se estar em causa “o direito de cada um ver protegido o espaço interior ou familiar da pessoa ou do seu lar contra intromissões alheias. É a privacy do direito anglo-saxónico. (...) Neste âmbito privado ou de intimidade está englobada a vida pessoal, a vida familiar, a relação com outras esferas de privacidade (v.g. a amizade), o lugar próprio da vida pessoal e familiar (o lar ou o domicílio), e bem assim os meios de expressão e comunicação privados (a correspondência, o telefone, as conversas orais, etc.). [§] Este direito à intimidade ou à vida privada – este direito a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular – compreende: a) a autonomia, ou seja, o direito a ser o próprio a regular, livre de ingerências estatais e sociais, essa esfera de intimidade; b) o direito a não ver difundido o que é próprio dessa esfera de intimidade, a não ser mediante autorização do interessado [...]”. E no Acórdão n.º 319/95 (publicado no Diário da República II Série, de 2 de Novembro de 1995) afirmou-se que “o direito à reserva da intimidade da vida privada (...) é o direito de cada um a ver protegido o espaço interior da pessoa ou do seu lar contra intromissões alheias; o direito a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular (...)” – cf., sobre a diversa jurisprudência do Tribunal Constitucional, o exaustivo retrato efectuado por Paulo Mota Pinto, in A protecção..., op. cit., p. 157 e ss..
Assim e considerando os essentialia que perpassam as considerações supra mencionadas, pode afirmar-se que tanto a doutrina como a jurisprudência têm entendido - o que é especialmente realçado pela jurisprudência deste Tribunal - que o direito à reserva da intimidade da vida privada não deixa de redundar na tutela jusfundamental de uma “esfera pessoal íntima” (cf. os Acórdãos n.os
456/93 e 355/97, publicados, respectivamente, no Diário da República I-A Série, de 9 de Setembro de 1993 e de 7 de Maio de 1997) e “inviolável” (cf. o Acórdão n.º 319/95, publicado no Diário da República II Série, de 2 de Novembro de
1995), de “um núcleo mínimo onde ninguém penetre salvo autorização do próprio titular” (cf. Acórdão n.º 264/97), que abrange, “no âmbito desse espaço próprio inviolável” (cf. Acórdão n.º 355/97), inter alia, os aspectos relativos à vida pessoal e familiar da pessoa, designadamente, “os elementos respeitantes à vida
(...) conjugal, amorosa e afectiva da pessoa (tais como, por exemplo, os projectos de casamento e separação, as aventuras amorosas, as amizades, afeições e ódios)” – cf. Paulo Mota Pinto, in A protecção..., op. cit., p. 168. Nessa medida, sendo, em essência, tuteladas “as relações vivenciais de cada homem consigo mesmo”, não deve deixar de considerar-se abrangido por este direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada não só a criação e manutenção de diários, mas também – principaliter et maxime – o seu próprio conteúdo.
E, nesse domínio, não está em causa, ad substantiam, a liberdade de a pessoa regular e autodeterminar a sua esfera de intimidade privada, outrossim a possibilidade de considerar as informações extraídas de um diário pessoal: o problema principal em questão passa, pois, por saber se o material relativo à intimidade da vida privada, que um diário apresenta, é acessível e probatoriamente valorável no âmbito do processo penal, em particular no contexto de decisões judiciais relativas à aplicação de medidas de coacção.
22.2.2 - Ora, se não se duvida de que “o reconhecimento da reserva da vida privada é uma condição de integridade da pessoa e a sua protecção deve ser considerada actualmente como um aspecto da protecção da «dignidade humana»”
(Paulo Mota Pinto, A protecção..., op. cit., p. 164), importa, em todo o caso, reconhecer que tal direito não pode configurar-se, em absoluto, como um direito ilimitável e irrestringível perante outros direitos ou interesses que, sub species constitutionis, se tenham por legítimos. Nessa linha e como refere Vieira de Andrade (in Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de
1976, 2.ª edição, Coimbra, 2001, p. 79), pode afirmar-se que a “autonomia dos direitos fundamentais como instituto jurídico-constitucional é, afinal, o reflexo da autonomia ética da pessoa, enquanto ser simultaneamente livre e responsável. E, como esta, é ao mesmo tempo irrecusável e limitada. [§] Irrecusável, porque a liberdade dos homens não pode confundir-se com a justiça social ou com a democracia política, nem ser-lhes sacrificada (...). [§] Limitada, porque o homem individual, destinado ou condenado a viver em comunidade, tem também deveres fundamentais de solidariedade para com os outros e para com a sociedade, obrigando-se a respeitar as restrições e as compressões indispensáveis à acomodação dos direitos dos outros e à realização dos valores comunitários, ordenados à felicidade de todos (...)”. Antes de mais importará acentuar que a própria Constituição apenas sanciona com nulidade as provas obtidas mediante intromissão na vida privada que deva ser considerada abusiva. Este Tribunal já afirmou, ainda que noutro contexto problemático (cf. Acórdão n.º 137/02 – publicado no Diário da República II Série, de 3 de Abril de 2002), que «não há dúvida de que o princípio da investigação ou da verdade material, sem prejuízo da estrutura acusatória do processo penal português, tem valor constitucional. Quer os fins do direito penal, quer os do processo penal, que são instrumentais daqueles, implicam que as sanções penais, as penas e as medidas de segurança, apenas sejam aplicadas aos verdadeiros agentes de crimes, pelo que a prossecução desses fins, isto é, a realização do direito penal e a própria existência do processo penal só são constitucionalmente legítimas se aquele princípio for respeitado), acaba por admitir uma intromissão na intimidade da vida privada ao ressalvar da inviolabilidade do domicílio e da correspondência a ingerência das autoridades públicas nos casos previstos na lei em matéria de processo penal (cf. artigo 34º, n.º 2: “A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos na lei” e n.º 4: “É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”)». Por sua vez, e quanto ao carácter não ilimitado da inviolabilidade do domicílio, e mesmo antes da revisão constitucional de 1997, refira-se que o seu Acórdão n.º
7/87, considerou que, mesmo sem autorização judiciária, as buscas domiciliárias efectuadas no âmbito da investigação de criminalidade violenta ou organizada não atentariam contra a Constituição, desde que existisse perigo iminente da prática de um crime com grave risco para a vida ou para a integridade de uma pessoa, porquanto “o direito à inviolabilidade do domicílio (...) deve[r] compatibilizar-se com o direito à vida e à integridade pessoal, consignados respectivamente nos artigos 24º e 25º da lei fundamental (...), direitos que hão-de entender-se como limites imanentes do direito em causa”.
Assim, se é indesmentível que a tutela do direito à reserva da intimidade da vida privada se projecta em sede processual penal, impondo limites à valoração de provas que representem uma abusiva intromissão em tal esfera – designadamente quando seja “efectuada fora dos casos previstos na lei e sem intervenção judicial (art. 34º - 2 e 4), quando desnecessária ou desproporcionada, ou quando aniquiladora dos próprios direitos (cfr. art. 18º - 2 e 3)” (v. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição..., op. cit., p. 206) – também deve considerar-se que o problema da (i)licitude de uma ingerência pública no âmbito da intimidade pessoal ou familiar como a que se questiona no caso dos presentes autos – a valoração do conteúdo de diários do arguido, apreendidos no âmbito de uma busca domiciliária legalmente autorizada – não pode, sem mais, subtrair-se a uma ponderação que atenda às especificidades do caso concreto, relevando os direitos e interesses aí nuclearmente envolvidos (sobre a necessidade de realizar um juízo de ponderação relativo ao direito à reserva da intimidade da vida privada, cfr. Acórdão n.º 263/97, publicado no Diário da República II Série, de 19 de Março de 1997).
22.2.3 - Não se excluindo, consequentemente, a justificação de uma ingerência na intimidade da vida privada quando estão em causa os interesses da prossecução da justiça penal, a verdade é que a extensão e a intensidade da intromissão na esfera pessoal íntima de uma pessoa não são irrelevantes. Uma teoria, patente na elaboração jurisprudencial do Tribunal Constitucional Federal alemão (cfr. Manuel da Costa Andrade – Sobre as proibições de prova..., op. cit., p. 94-96), distingue três áreas ou esferas na vida privada: “Em primeiro lugar, está a esfera da intimidade, área nuclear, inviolável e intangível da vida privada, protegida contra qualquer intromissão das autoridades ou dos particulares e, por isso, subtraída a todo o juízo de ponderação de bens ou interesses. O que significa a proibição radical e sem excepções de todas as provas que contendam com este círculo: «(...) Na determinação do conteúdo e extensão do direito fundamental (...) há-de ter-se presente que, de acordo com a norma fundamental do artigo 1º, n.º 1, da Lei Fundamental, a dignidade do homem é inviolável (...). Nem sequer os interesses superiores da comunidade podem justificar uma agressão à área nuclear da conformação privada da vida, que goza duma protecção absoluta. Uma ponderação segundo o critério do princípio de proporcionalidade está aqui fora de causa».
[§] Para além deste núcleo central da intimidade, estende-se a área normal da vida privada, também ela projecção, expressão e condição do livre desenvolvimento da personalidade ética da pessoa. E, nessa medida, erigida em autónomo bem jurídico pessoal e como tal protegido tanto pela Constituição como pelo direito ordinário. Trata-se, porém (...) de um bem jurídico que não pode perspectivar-se absolutamente isolado dos compromissos e vinculações comunitárias e, nessa medida, inteiramente a coberto da colisão e ponderação dos interesses. O seu sacrifício em sede de prova estará, por isso, legitimado sempre que necessário e adequado à salvaguarda de valores ou interesses superiores, respeitadas as exigências do princípio da proporcionalidade. (...)
[§] Em terceiro e último lugar, é possível referenciar a extensa e periférica vida de relação em que, apesar de subtraída ao domínio da publicidade, sobreleva de todo o modo a funcionalidade sistémico-comunitária da própria interacção
(...)”; cf., igualmente, do mesmo Autor, a sua anotação ao artigo 192º do Código Penal, in Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte especial, Aa. Vv., dirigido por Figueiredo Dias, tomo I, Coimbra, 1999, p. 727 e ss., maxime,
729-730. Independentemente de se saber se deve ou não subscrever-se, em geral, a distinção, no âmbito da reserva da vida privada constitucionalmente tutelada, entre uma esfera de intimidade nuclear, absoluta e radicalmente protegida, e uma outra, mais ampla e já susceptível de intervenção por parte dos poderes públicos, a consideração da dignidade da pessoa humana, enquanto último reduto
ético da sua imanente pessoalidade, afirma um limite a qualquer ponderação susceptível de conduzir ao seu total aniquilamento (v., sobre o problema, Paulo Mota Pinto, O direito à reserva..., op. cit., p. 525-539, maxime, 530 e ss. e A protecção..., op. cit., p. 162). Note-se, também, que em toda a jurisprudência anterior deste Tribunal se consolidou o princípio de que a Constituição tutela a intimidade da vida privada, não retirando da noção de intimidade, como denuncia Paulo Mota Pinto
(A protecção..., op. cit., p. 163), “nenhum critério restritivo de protecção. Pelo que, em todo o caso, poderá assim subscrever-se a ideia de que “o critério constitucional deve (...) arrancar dos conceitos de «privacidade» e «dignidade humana»” (v. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição..., op. cit., p. 182).
É, assim, da intersecção tutelar destes parâmetros constitucionais que pode resultar a consideração de que a intimidade deve ser mais intensamente resguardada naqueles casos que “abrange[m] os aspectos mais densos da consciência, com as suas opções últimas”, como atrás se referiu (v. JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENÇÃO, A reserva da intimidade da vida privada e familiar, in Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, Coimbra, 2002, p. 18).
22.2.4 - Nessa esteira, deve, desde já, considerar-se que, no que concerne à perspectivação da (in)admissibilidade de utilização probatória de diários pessoais sob o prisma da tutela da intimidade e à luz da valoração do princípio matriz da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana, é imprescindível – como adequadamente salientou o Bundesverfassungsgericht (cf. BVerfGE, decisão de
14.09.89, in NJW, 1990, p. 563) a propósito do segundo caso do diário – aferir se o conteúdo concreto das descrições ou relatos que o integram pertencem ao domínio absolutamente interno do seu autor – tocando apenas a sua esfera pessoal e revelando, ao jeito de “uma conversa consigo próprio”, o seu “estado de alma” relativamente a problemas que atingem o “cerne da sua personalidade”, afora a existência de uma factualidade que implique terceiros –, ou se, em oposição, tais descrições, não apresentando um cunho vivencial puramente pessoal, envolvem a esfera das vítimas, estando, assim, para lá de um foro exclusivo interno.
Na primeira hipótese, decerto, ao admitir-se a valoração probatória de tais escritos, atingir-se-ia uma “área interior colocada sob o domínio exclusivo do arguido” (cf., a decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão, de 14 de Setembro de 1989, in Neue Zeitschrift für Strafrecht, 1990, p. 90, citada por Gössel, in As Proibições de prova no direito processual penal da República Federal da Alemanha, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2, fasc. 3, Julho-Setembro, 1992, p. 426), o que, no limite, contenderia com a dignidade ética da pessoa humana que o arguido constitui, aniquilando-se, de todo, o direito que este tem à reserva dos seus “pensamentos, impressões e angústias”, ainda que levados a escrito. E estar-se-ia, aqui, perante uma intromissão inadmissível em face da dignidade da pessoa humana porquanto se admitiria a consideração de informações e reflexões que, apesar de postas no papel, não deixam de ser mera expressão das representações do seu autor sobre si
(sem atingir os outros) ou relatos das suas emoções, estando aí radicalmente excluído, por definição, no an e no quantum, qualquer retrato exterior à intrínseca integridade moral da pessoa. Todavia, fora desses casos, quando as descrições constantes dos diários toquem a esfera dos outros ou da comunidade, não reflectindo exclusivamente impressões internas, sentimentos e emoções, e contenham já indicações sobre os actos imputados ao arguido (cf. BVerfGE, decisão 14.09.89, in NJW, 1990, p. 565), há-de admitir-se uma ponderação que, em concreto, pode conduzir a que, nestas circunstâncias, se deva admitir a valoração processual-probatória das descrições em causa. Nessa medida, verbi gratia, não são abrangidos pela protecção dos direitos fundamentais “os textos descritivos do agente sobre a sua vítima e os seus crimes ou, para além disso, anotações de negócios ou análogas que se referem a processos de tipo externo sem deixar reconhecer uma referência directa
à personalidade do seu autor” (Baumann/Brenner, Die strafprozessualen..., op. cit., p. 159; cf., também com Claus Roxin, Strafverfahrensrecht, op. cit., p.
160). Tais registos, mesmo quando integrados num diário pessoal, não ficam, sem mais, excluídos de uma justificada intervenção estatal no âmbito da prossecução da justiça penal, como foi adequadamente salientado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão (BVerfGE, 14.09.89, in NJW, 1990, p. 563; note-se ainda, com interesse, que, no segundo caso dos diários, os textos do arguido constavam de bloco [de notas] de folhas destacáveis e de folhas soltas). Na verdade, e em geral, os materiais constantes de um diário podem ser assaz diferenciados, variando forçosamente caso a caso: desde um diário-“agenda”, até um diário-“romance”, vai uma distância significativa que não pode ser desprezada
– cf. Amelung, Der Grundrechtsshutz..., op. cit., p. 1004, que denuncia, procurando apurar “um conteúdo típico de diários”, que as descrições constantes de um diário de um escritor ou de um psicólogo, com intenção de serem utilizadas literária ou cientificamente, acabam por estar, na verdade, tuteladas no âmbito da liberdade artística e científica. Ora no domínio de um concreto diário, poderão existir, como não se deve ignorar, elementos que constituem manifestações exclusivas do domínio interno da consciência de um indivíduo, mas também descrições de concretas situações da vida, externamente constatáveis (e testemunháveis por terceiros), que se reportam a um domínio que contende com a esfera “da vida em relação”, merecendo, destarte, um diferente âmbito tutelar. Se no primeiro caso se pode afirmar, acompanhando Amelung, que tais descrições “não têm, além do gasto do papel, outra consequência social” (Der Grundrechtsshutz..., op. cit., p. 1004), já no segundo caso importa reconhecer, na linha de pensamento do Tribunal Constitucional Federal alemão, que “o contacto com a esfera de personalidade de um outro homem confere a uma acção ou informação um significado social que a torna acessível a uma regulamentação jurídica” (cf. BVerfGE, decisão de
14.09.89, in NJW, 1990, p. 563) e, deste modo, quando os diários digam respeito a uma esfera relacional, sustentada fáctico-empiricamente, indo para além de uma mera discussão do “forum internum” – porquanto assente em elementos vivenciais que, tocando a esfera de vida de terceiros, referem-se a processos externos que se encontram “numa relação imediata com acções concretas puníveis pelo direito penal” (cf. BVerfGE, decisão de 14.09.89, in NJW, 1990, p. 563) –, não deve ter-se por absolutamente excluída a sua utilização em sede processual-probatória.
22.2.5 – A aludida diferenciação não poderá deixar de projectar-se inelutavelmente no tratamento circunstanciado dos parâmetros constitucionais relevantes. Assim deve considerar-se que a densificação material e axiologicamente fundada de uma abusiva intromissão na reserva da vida privada – que qua tale se afirma constitucionalmente vedada –, não pode dispensar, como definens, a consideração do limite, ineliminável e intransponível, da dignidade e da integridade da pessoa humana. Esta pedra angular da juridicidade impõe, nemine contradicente, que os interesses gerais da investigação e da prossecução da justiça penal terão de ser sacrificados sempre que contendam com esta reserva absoluta de pessoalidade. Logo para a individualização do segundo tipo de conteúdos, torna-se indispensável que o julgador tenha acesso a todo o diário. Trata-se, porém - e apenas - de um conhecimento funcionalmente justificado - sempre coberto pelo dever de segredo do juiz - que não pode, por isso, ser confundido com a valoração em processo penal para efeitos da prisão preventiva ou outros dos materiais em princípio coberto pela tutela da intimidade. Nessa óptica, mesmo que esteja legalmente justificado um determinado meio de obtenção de prova, em função de uma avaliação feita em abstracto pelo legislador, a licitude da valoração da prova obtida constitui um aliquid novi que não pode deixar de ser considerado autonomamente. Ou seja, a lícita apreensão de um diário não faz, sem mais, que, à luz das inarredáveis dimensões constitutivas do Estado de direito supra mencionadas, se haja de admitir a relevância probatória, no todo ou em parte, do seu conteúdo específico: de fora de tal valoração ficam, em homenagem à autonomia ética da pessoa humana, todas as “descrições” que apenas relevam de um estrito plano interior, ineliminavelmente agrilhoado à consciência do seu autor, sendo assim de reter, relativamente a estas, praevalet quod principale est, que a intervenção formalmente justificada na intimidade não a transforma, ipso facto, em “não abusiva” de um ponto de vista axiológico-material. E tal juízo não pode, pois, efectuar-se em abstracto tendo como ponto de partida e como critério de valoração o subjacente à validade da obtenção de um diário, outrossim deve realizar-se crítico-reflexivamente em concreto perante o(s) conteúdo(s) que integra(m) um diário particular, aí discernindo, nos termos já referidos, se e em que medida pode estar em causa a dignidade e integridade éticas apenas do arguido. A esta exigência da bondade material-substantiva de toda a intervenção processual penal acresce, naqueles casos onde as descrições constantes de diários não contendam com o “cerne da personalidade” e da consciência do indivíduo, que a validade da valoração probatória de tais escritos não fica imediata e automaticamente justificada pela invocação do interesse público fundamental subjacente à investigação criminal. Em rigor, não deixa de ser igualmente imperioso indagar se a intromissão na reserva da intimidade da vida privada pode considerar-se materialmente fundada – e, portanto, não abusiva – à luz de outros criteria jusfundamentais, sendo ainda forçoso apurar, scilicet, se a utilização de textos extraídos de um diário é necessária e adequada para a investigação do crime ou para a concreta decisão a tomar, como a aplicação de uma medida de coacção, e se, em todo o caso, tal intervenção na esfera da intimidade não se prefigura, em concreto, desproporcionada para o desejável esclarecimento da verdade relativamente aos crimes que são imputados a um determinado arguido. O que significa, consequentemente, que, mesmo ressalvada, nos termos referidos no ponto anterior, uma “reserva interior exclusiva” decorrente da dignidade da pessoa humana, a licitude da valoração de um diário há-de ainda resultar de um teste, realizado em concreto, ad mensuram do princípio da proporcionalidade (art. 18º, n.º 2, da Constituição). Nesse domínio particular, compreende-se que o juízo de valoração (ou não valoração) das descrições constantes de diários tenha em conta não apenas a gravidade do(s) crime(s) em questão (cf. Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições de prova..., op. cit., p. 201), mas também, de forma particular, a sua natureza e relação com os bens jurídicos em causa (cf. Claus Roxin, Strafverfahrensrecht, op. cit., p. 161) ou ainda a possibilidade de continuação da actividade criminosa e o interesse na protecção das vítimas. De facto, não deve ignorar-se que determinados ilícitos penais se encontram numa estrita relação com o domínio da intimidade: é, designadamente, o que sucede no âmbito da investigação e julgamento penais dos crimes de abuso sexual de crianças, que, dizendo, pois, respeito a um dos aspectos mais nucleares da intimidade da vida privada de uma pessoa (v. Ireneu Cabral Barreto, A Convenção..., op. cit., p.
180) – a esfera da sua vida sexual - não pode deixar de tocar, atendendo à natureza dos ilícitos penais em questão, na intimidade quer das vítimas, quer dos arguidos, daí decorrendo, pois, uma sempre inevitável compressão dessa esfera de intimidade, sob pena de ficarem sem julgamento penal os atentados à autodeterminação e ao livre desenvolvimento sexual das vítimas (cf. Maria João Antunes, in anotação ao artigo 178º do Código Penal, in Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte especial, cit. p. 596). Todavia, não se deverá esquecer, tendo em linha de conta as considerações anteriormente expendidas, que, mesmo em tais casos, nunca a inevitável compressão/ingerência na esfera da privacidade poderá sacrificar a dignidade da pessoa e/ou redundar no total aniquilamento desse direito fundamental, sendo assim manifesta a radical importância – rectius, a indispensabilidade – assumida por uma ponderação concreta radicada no adequado cumprimento das injunções constitucionais que asseguram um núcleo de direitos básicos incontornáveis.
22.2.6 – No caso que nos ocupa, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, dando conta de que a questão “que o recorrente questionou, e questiona, é que tais diários possam ser utilizados como meio de prova, pois estar-se-ia perante uma intromissão [d]na vida privada já que os diários, como é sabido, expõem, muitas vezes, factos, acontecimentos, pensamentos, impressões do seu autor não partilháveis e tantas vezes inconfessáveis”, acabou por salientar, por um lado, que “os diários vieram ao processo na sequência de busca realizada à residência do arguido, busca essa cuja legalidade não é posta em causa”, e, por outro lado, que “o artigo 125º dispõe que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, pelo que haverá de concluir-se que, não havendo proibição alguma sobre a admissibilidade de diários do arguido como meio de prova, não estamos perante qualquer nulidade; os interesses da investigação criminal, salvaguardadas as exigências legais, terão de se sobrepor a uma eventual violação da privacidade que, no interesse da descoberta da verdade e realização da justiça penal terá de ceder”. Daqui resulta, inexoravelmente, que o Tribunal da Relação adoptou um critério de ponderação“geral” , segundo o qual, uma vez justificada formalmente a legalidade do acesso aos diários do arguido, o interesse da realização da justiça penal subjugaria a tutela da intimidade da vida privada do arguido, independentemente do concreto conteúdo das descrições deles constantes e da diferenciada densidade de tutela que lhes há-de ser reservada. Antes de mais cumpre acentuar, retendo que qualquer valoração probatória que atente contra a dignidade da pessoa humana deve ter-se em face do panorama constitucional vigente por inadmissível, que, mesmo justificada a licitude da obtenção dos diários do arguido, sempre importa ter em linha de conta se, em concreto, existirá, ou não, uma proibição de valoração da informação
(Informationverwertungsverbot na terminologia de Amelung, in Informationsbeherrschungsrechte im Strafprozess. Dogmatische Grundlagen individualrechtlicher Beweisverbote, Berlin, 1990, p. 12, apud Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições de prova..., op. cit., p. 23) decorrente, desde logo, desse limite intransponível. Na verdade, como resulta das considerações tecidas, deve afirmar-se que a validade de uma ponderação prudencial suscitada neste domínio, ainda que balanceando a tutela da intimidade com o contrapeso do premente interesse público na realização da justiça, não pode excluir a inviolabilidade ética inerente à dignidade da pessoa humana. Em bom rigor, só fora de uma “área interior colocada sob o domínio exclusivo do arguido” se há-de admitir tal ponderação, sendo que, mesmo aí, o “fiel da balança” dos valores em questão deve encontrar-se no respeito pelos princípios da necessidade e da proporcionalidade, indagando, designadamente, se a intromissão na vida privada é, em face do caso concreto, necessária e não desproporcionada. Ora o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, ao admitir uma valoração indistinta e indiferenciada do conteúdo dos diários, acaba por não considerar esta dimensão axiológico-normativa fundamental, partindo apenas de um princípio que, considerando estritamente a tutela da intimidade da vida privada, conduz à sobrevalorização, ou mesmo absolutização, do interesse da investigação criminal, ainda quando, perante o conteúdo concreto do manancial “informativo-reflexivo” constante dos diários, possa estar em causa, nos termos anteriormente elucidados, a inviolável dignidade ética do arguido. A validade da utilização probatória dos diários do arguido não pode resultar, tout court, como já se afirmou, de uma sobreposição dos interesses inerentes à perseguição criminal em face da vida privada. Nessa esteira deve considerar-se que, quando a Constituição prescreve, no art.
32º, n.º 8, concretizando, neste plano, o valor da dignidade humana assumido como princípio estruturante no seu art. 1º, que “são nulas” todas as provas obtidas “mediante abusiva intromissão na vida privada”, está a prever não só a imposição de condicionamentos formais ao acesso aos meios de prova que represente uma intromissão na vida privada, como, também, a existência de restrições à valoração de provas, que devem aferir-se, conforme o exposto, pelas exigências do princípio da proporcionalidade, sempre ressalvando a ineliminável dignidade e integridade da pessoa humana. A Constituição não exclui que, neste domínio específico, uma ponderação possa conduzir a que, em concreto, o interesse público geral na investigação dos ilícitos penais imputados ao arguido e na prossecução da verdade material e a subsequente realização da justiça se sobreponham, acauteladas as devidas reservas, às necessidades de tutela da sua esfera de privacidade, não sendo assim de afastar, dentro do domínio tido por admissível, uma valoração das descrições constantes de diários em processo penal, conquanto esta não se mostre desadequada, desnecessária e desproporcionada face aos valores e ao tipo de decisão em causa – no caso concreto, face às finalidades da medida de coacção aplicada (que foram, nos termos da decisão recorrida, “evitar o perigo de continuação da actividade criminosa e a intranquilidade pública”). A esta luz, os critérios de admissibilidade constitucional de diários não têm necessariamente de coincidir quando está em causa aferir da existência dos pressupostos de aplicação de uma medida de coacção, como a prisão preventiva, ou quando se trata de apurar a responsabilidade penal, em sede de julgamento. É que importa relevar, na ponderação, quer a especificidade dos distintos momentos processuais em causa, quer a diferente natureza, pressupostos e finalidades daqueles actos processuais. Se, por um lado, num caso como o presente, está apenas em causa, como um fundamento meramente indiciário, a decretação da prisão preventiva, e não o apuramento da responsabilidade penal para efeitos de condenação, o que não poderá deixar de ser ponderado, por outro lado, ao tratar-se de uma medida de coacção pode avultar com particular relevo uma finalidade cautelar com incidência sobre terceiros, como se revela pelo pressuposto do perigo da continuação da actividade criminosa.
Só perante um tal circunstancialismo, não relevado pela decisão em crise, se poderia concluir pela admissibilidade, sub specie constitutionis, da valoração processual-probatória dos diários do recorrente, pelo que, nessa medida, o critério normativo aplicado pela decisão recorrida acaba por não atender aos parâmetros constitucionais relevantes para concluir sobre a
(in)admissibilidade de valoração dos diários em sede processual penal.
Sendo assim, há-de concluir-se que a interpretação extraída dos n.os 1 e 3 do art. 126º do CPP pelo acórdão da Relação, segundo a qual, uma vez salvaguardada a legalidade da obtenção dos diários, o tribunal poderá valorar, em sede probatória, sem sujeição a quaisquer limites, todo o seu conteúdo, independentemente da sua diversa natureza, não está conforme com o âmbito de tutela conferido constitucionalmente ao direito à reserva da intimidade da vida privada.
22.3 - Sustenta também o recorrente, nas alegações de recurso que apresentou junto deste Tribunal, que a valoração probatória dos diários atenta contra a sua inviolável dignidade, “na vertente da sua integridade moral”, devendo, por isso, considerar-se que, nesse domínio, não está em causa – ao contrário do que se podia depreender do requerimento de interposição - o disposto no n.º 3 do art.
126º do Código de Processo Penal, mas antes no n.º 1 do assinalado artigo.
A este respeito, a argumentação do recorrente é dificilmente autonomizável em face das considerações já expendidas porquanto, na sua perspectiva, a intromissão consistente na valoração dos seus diários “não se verificou no estrito âmbito da «vida privada», do «domicílio», da
«correspondência» ou das «telecomunicações», mas no próprio cerne da intangível
«integridade moral» do recorrente”, posto que “a valoração de um diário pessoal e íntimo como meio de prova constitui, a todas as luzes, um imiscuir brutal na intimidade de um ser humano, logo afectando radicalmente o núcleo e reserva indisponível da dignidade do homem”.
De tal aspecto conheceu-se anteriormente tendo como base a inexistência de uma distinção constitucionalmente fundada, no que se refere à tutela da intimidade da vida privada. Igualmente se apreciaram, então, os termos em que a referência à “inviolável dignidade da pessoa humana”, à qual o recorrente aproxima a noção de integridade moral, é susceptível de se projectar na imposição de limites à consideração de elementos probatórios respeitantes à esfera de intimidade da pessoa humana.
Ora, assim sendo - e uma vez que o recorrente não põe em causa a violação da sua integridade moral, relativamente ao método de obtenção dos diários - a questão do confronto da norma impugnada com o direito à integridade moral, com o específico sentido que lhe é dado pelo recorrente, está consumida pela questão anteriormente respondida.
22.4 - Por fim, quanto à pretensa violação do princípio da igualdade, cujo fundamento o recorrente não concretiza em termos suficientemente inteligíveis, pode afirmar-se que não se vislumbra que a norma aplicada pela decisão recorrida padeça de inconstitucionalidade por atentar especificamente contra o disposto no artigo 13.º, designadamente por criar (ou redundar n)uma situação de desigualdade arbitrária ou discriminatória em relação a casos ou situações que se devam ter por materialmente análogas, para além do que resulta do anteriormente decidido quanto à necessidade de diferenciações impostas por outros parâmetros constitucionais (arts. 1º, 26º, n.º 1 e 32º, n.º 8, da CRP).
C – Decisão
23 - Destarte, atento tudo o exposto, decide este Tribunal Constitucional:
a) Não tomar conhecimento do recurso quanto à questão da alegada falta de fundamentação do acórdão recorrido.
b) Julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 28º, n.º 1, e
32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma extraída da conjugação dos artigos 141º, n.º 4, e 194º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal, segundo a qual, no decurso de interrogatório de arguido detido, a exposição dos factos que lhe são imputados e dos motivos da detenção se basta com a indicação genérica ao arguido das infracções penais de que é acusado, da identidade das vítimas como alunos, à data, da B., e outras pessoas, mas todas elas menores de 16 anos, estando o tribunal dispensado, por inutilidade, de proceder a maior pormenorização além da que resulta da indicação feita em tais termos, quando o arguido, confrontado com ela, tome a posição de negar globalmente os factos, e na ausência da apreciação em concreto da existência de inconveniente grave naquela concretização;
c) Julgar inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos
1º, 26º, n.º 1, e 32º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, a norma extraída do art. 126º, n.os 1, e 3 do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual não é ilícita a valoração como meio de prova da existência de indícios dos factos integrantes dos crimes de abuso sexual de crianças imputados ao arguido (previstos e puníveis pelos artigos 172º, n.º 1, e 172º, n.os 1 e 2, do Código Penal) e dos pressupostos estabelecidos nos artigos 202º e 204º, alínea c), do Código de Processo Penal, para a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, dos “diários” apreendidos, em busca domiciliária judicialmente decretada, na ausência de uma ponderação, efectuada à luz dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, sobre o conteúdo, em concreto, desses “diários”.
d) Ordenar a reforma da decisão recorrida tendo em conta os precedentes juízos de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 5 de Dezembro de 2003
Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos