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Proc. n.º 268/01
2ª Secção Conselheiro Benjamim Rodrigues
A - Relatório
1 - A., notificado do Acórdão n.º 553/2003, proferido nestes autos, que decidiu não tomar conhecimento do recurso interposto para este Tribunal, vem pedir a sua aclaração ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do art. 669º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por força do disposto no art. 69º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), nos termos e com os fundamentos seguintes:
«[...] A - PRIMEIRO PEDIDO DE ACLARAÇÃO
1. No identificado acórdão foram analisadas sucessivamente as questões prévias suscitadas pelo Ilustre Representante do Ministério Público e foram as mesmas julgadas integralmente procedentes.
2. Relativamente à primeira questão prévia suscitada pelo Ministério Público, sustenta esta entidade que seria manifesta a falta de interesse processual no que toca à questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente, na medida em que, qualquer que fosse o juízo de inconstitucionalidade proferido pelo Tribunal Constitucional, ele não se repercutiria sobre a questão de mérito, já que o decidido pelo Tribunal da Relação assenta num fundamento alternativo e autónomo em relação a tal questão, a saber, a preclusão por não arguição tempestiva de uma invocada nulidade.
3. Não ignora o recorrente que o Tribunal Constitucional vem entendendo, de um modo praticamente uniforme, que não há que tomar conhecimento do recurso quando este se haja tornado inútil ou desnecessário, nomeadamente, quando a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional fosse insusceptível de ter relevância ou eficácia em relação ao julgamento da situação concreta de que emerge o recurso
(cfr. Acórdão n° 12/83, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. I).
4. Subsequentemente, na douta decisão aclaranda, parte-se do princípio de que a decisão da Relação assentava num fundamento alternativo e autónomo, o da alegada sanação - e consequente preclusão - da possível e eventual «nulidade», consistente na não reabertura da audiência final para exercer o contraditório acerca de prova documental supervenientemente obtida, por força do disposto em norma (o artigo 118º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal) que não integra o objecto do recurso.
5. A verdade, porém, é que, por um lado, a não inconstitucionalidade da norma do processo penal foi uma das rationes decidendi do acórdão da Relação de Coimbra, objecto do recurso.
6. Por outro lado, a tese da sanação da nulidade avançada pela Relação de Coimbra é uma falsa ratio decidendi, porquanto a forma idónea de pôr em causa a omissão de reabertura da audiência em julgamento era o recurso, visto a nulidade ter sido detectada apenas com a notificação do acórdão final de 1ª instância.
7. Situação em que, manifestamente, não eram aplicáveis nem o art. 120º, nem o art. 121º do Código de Processo Penal.
8. Como ensina MANUEL DE ANDRADE, 'se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho) que ordenou, autorizou ou sancionou o respectivo acto ou omissão, em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo' (Noções Elementares de Processo Civil, ed. de 1979, pág. 183, louvando-se o autor em ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, II, pág. 510, autores que admitiam bastar uma decisão implícita de cobertura da nulidade).
9. Doutrina esta aplicável em processo penal (art. 4º do Código de Processo Penal).
10. Neste quadro, solicita-se o esclarecimento sobre se foi encarado pelo Tribunal Constitucional o controlo da bondade da tese da Relação de Coimbra de que estava sanada a nulidade, apesar de ter sido efectuada a impugnação da decisão de 1ª Instância por recurso e, no caso afirmativo, se devia, ou não, julgar insubsistente o fundamento alternativo esgrimido pelo Ministério Público.
B - SEGUNDO PEDIDO DE ACLARAÇÃO
11. No que se refere à 4.ª questão prévia suscitada pelo Ilustre Representante do Ministério Público, este entendeu que não era uma questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de ser sindicada pelo Tribunal, a verificação da alegada violação pelas instâncias do princípio da tipicidade ou legalidade, resultante da ampliação (ou errada e «ilegal» interpretação) dos elementos que integram factispecie do tipo de crime.
12. Todavia, o Tribunal Constitucional conclui que: '... no caso dos autos, não se está perante uma questão normativa cuja constitucionalidade haja de conhecer-se, mas antes está em causa apenas a própria decisão judicial, na dimensão substantiva que a mesma apesar [sic: no acórdão lê-se “... dimensão substantiva que a mesma operou...”] da factualidade concreta aos elementos do tipo legal e maxime do preenchimento factual do conceito de «acto que implique violação dos deveres do seu cargo [de presidente da Câmara]»' (a fls. 28).
13. E foi ao ponto de afirmar que: “... situando-nos nesta perspectiva não há que colocar sequer a questão da possibilidade deste Tribunal poder controlar a interpretação de normas de outros ramos de direito (no caso, de direito administrativo) quando estas sejam convocadas na conformação do tipo legal” (a fls. 28).
14. Salvo o devido respeito - que é muito - assalta ao recorrente a dúvida fundada sobre se o Tribunal atentou na formulação do artigo 16º, n.º 1 da Lei
34/87, de 16 de Julho, norma indiscutivelmente aplicada na decisão da Relação de Coimbra.
15. Reza o artigo 16º n.º 1 dessa Lei,
'o titular de cargo político que no exercício das suas funções, por si ou interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação solicitar ou aceitar dinheiro, promessa de dinheiro ou qualquer vantagem patrimonial ou não patrimonial a que não tenha direito (...) para a prática de acto que implique violação dos deveres do seu cargo ou omissão do acto que tenha o dever de praticar e que, nomeadamente, consista: a) (...) b) em intervenção em processo, tomada na participação em decisão que implique a obtenção de benefícios, recompensas, subvenções, empréstimos, adjudicações ou celebração de contrato e, em geral, reconhecimento ou atribuição de direitos, exclusão ou extensão de obrigações, em qualquer caso com violação da lei.'
16. Face a tal formulação entendeu o Tribunal Constitucional que não era uma questão de inconstitucionalidade normativa aquela que decorria de a norma transcrita, na interpretação acolhida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, admitir que havia violação de um dever quando o acto a praticar pelo Presidente da Câmara era um acto vinculado que poderá ser licitamente praticado em certo prazo e ainda não tenha decorrido esse prazo.
17. De facto, não alcança o recorrente o entendimento sufragado de que, ao interpretar a norma, o Tribunal a quo mais não fez do que valorar em concreto as específicas particularidades do caso.
18. A formulação do acórdão aclarado é ambígua pois que - ao situar a questão no plano de subsunção dos factos à norma, não esclarece se o sentido da mesma norma
- que resultou da interpretação adoptada no acórdão da Relação de Coimbra - é, ou não, conforme à Constituição.
19. Tão pouco se entende qual o sentido de uma referência ao modelo de recurso de amparo - modelo que foi postergado pelo Legislador Constitucional (ut art.
280º da CRP) - quando é certo que a decisão descarta a argumentação do Ministério Público e acaba por referir um juízo de valoração da factualidade concreta pela Relação 'na sequência do qual conclui pelo preenchimento do conceito de «acto que implique violação dos deveres do cargo»'.
20. Mas não é seguro que a subsunção que supõe uma interpretação da previsão e da estatuição normativas o que implica o confronto do resultado com o disposto nas normas e princípios constitucionais?
21. Acresce a tudo isto que o douto acórdão recorrido parece suprimir totalmente o momento interpretativo que foi posto em causa pelo recorrente, tornando-o totalmente irrelevante.
P22. Por isso se solicita o esclarecimento sobre a razão por que se alude – na interpretação da própria decisão recorrida – a uma suposição sobre o que foi
“verdadeiramente decisivo” – de forma dificilmente compreensível os “momentos jurídicos de discricionariedade” ou antes “a existência e o uso incorrecto de poderes de facto de emitir logo, ou em alturas posteriores, o alvará.”
23. Além de que do mesmo acórdão em doutíssima Declaração de Voto é acolhida a suscitada constitucionalidade normativa.
24. E na mesma declaração expressa está a essência da questão invocada ao referir que trata-se, assim, de uma divergência de entendimento quanto a saber se determinadas situações ainda realizam as finalidades daquele especifico tipo de ilícito, o que é relevante, sobretudo tendo em conta que o legislador prevê uma corrupção passiva para a prática de acto lícito, a que atribui uma moldura penal inferior. Independentemente da solução que a questão justificaria quanto ao fundo, parece-me que está em causa, no presente recurso, um problema de âmbito normativo e não apenas de qualificação concreta de uma situação. A relevância dada pelo acórdão recorrido aos poderes de facto excedidos pelo agente pressupõe a caracterização do acto ilícito em função da motivação do agente e da discricionariedade temporal da prática do acto. Entre a questão colocada pelo recorrente e a ratio decidendi há, assim, a coincidência essencial que permite considerar que se suscitou uma questão de constitucionalidade sobre uma verdadeira dimensão normativa decorrente de um critério de decisão quanto ao âmbito de um elemento de factualidade típica - o conceito de acto ilícito.
C- TERCEIRO PEDIDO DE ACLARAÇÃO
25. O ora requerente invocou a inconstitucionalidade da norma dos arts. 410º, n.º 2 e 432º, alínea c), e 433º do Código de Processo Penal de 1987, na versão anterior à introduzida pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, na motivação do recurso por si interposto para o Supremo Tribunal de Justiça.
26. Sobreveio entretanto a Lei n.º 59 /98, de 25 de Agosto, que determinou a não aplicação da lei nova em matéria de recurso quando já houver sido interposto recurso, nos termos do n.º 3 do art. 411º do CPP (cfr. art. 6º, n.º 2, daquela Lei).
27. A verdade é que o Supremo Tribunal de Justiça remeteu o processo para a Relação de Coimbra, a qual aplicou os arts. 410º, 432º e 433º aos autos, como se fosse o Supremo Tribunal de Justiça.
26. É indesmentível tal aplicação dessas normas, cuja constitucionalidade foi impugnada pelo requerente.
28. Pretende-se o esclarecimento sobre a razão pela qual se alude a uma interposição frustrada de um terceiro recurso para o STJ, quando é certo que não foi impugnado o despacho proferido pelo Presidente do Supremo que não admitiu o recurso, com fundamento no art. 400º, al. f) do CPP.
São estas as dúvidas que o acórdão proferido suscita ao recorrente e cuja superação se impõe, até mesmo, a acrescer, pela virtualidade de uma tal decisão, para o futuro, na ponderação de questões de inconstitucionalidade, e na destrinça entre a norma, o seu âmbito e a conflitualidade com os princípios constitucionais numa interpretação normativa.».
2 - O Ex.mo Magistrado do M.º P.º junto deste Tribunal respondeu aos pedidos de aclaração, defendendo o seu indeferimento com base nas razões condensadas na seguinte síntese conclusiva:
«1 - Embora apresentadas sob a capa formal de um pedido de 'aclaração', as pretensões formuladas pelo recorrente traduzem uma verdadeiramente impugnação deduzida contra o acórdão proferido por este Tribunal.
2 - Note-se, desde logo, que o acórdão proferido é perfeitamente claro e insusceptível de dúvidas sobre os fundamentos e teor da decisão proferida, no que respeita à inverificação dos pressupostos do recurso.
3 - Limitando-se o recorrente a dissentir do nele decidido e a pedir esclarecimentos complementares ao teor do decidido no acórdão reclamado - o que obviamente não é objecto idóneo do meio processual utilizado.».
3 - Cumpre apreciar e decidir.
B – Fundamentação
4 - Como resulta do seu requerimento, o recorrente formula três pedidos de aclaração do acórdão deste Tribunal.
O uso do meio processual da aclaração justifica-se quando uma decisão é obscura ou ambígua [art.º 669º, n.º1, alínea a) do Código de Processo Civil, aplicável ao processo constitucional por via do disposto no art.º 69º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro]. A decisão é obscura quando o seu texto não permite entender o pensamento do julgador e é ambígua quando a decisão comporta mais de um sentido.
Diz Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, págs. 151), a propósito destes dois vícios formais da decisão, que “n[N]um caso, não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos”. A função da aclaração é a de “iluminar algum ponto obscuro da decisão” e, sendo assim, “através dela apenas se pode corrigir a sua forma de expressão e não modificar o seu alcance ou o seu conteúdo” (Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 3ª edição, 2002, págs. 45/46).
Vejamos, então, se, a esta luz, devem os pedidos do requerente ser atendidos.
4.1 - Primeiro pedido.
Como se colhe das causas de pedir alegadas, o requerente não coloca nenhuma questão relativa ao entendimento da decisão do Tribunal ou sequer da sua fundamentação, mas uma pergunta sobre se este Tribunal Constitucional equacionou a bondade da tese do Tribunal da Relação no sentido de que a inobservância das disposições legais, porventura inconstitucionais, respeitantes à reabertura da audiência para o exercício do direito de contraditório relativamente a documentos juntos posteriormente ao seu encerramento consubstanciava uma nulidade e de que esta estava sanada, tanto mais que é verdade que essa sanação foi assumida, como dado definido, pela decisão aclaranda que a tomou por fundamento alternativo e autónomo, sendo, todavia, “a tese da sanação da nulidade avançada pela Relação [...] uma falsa ratio decidendi, porquanto a forma idónea de pôr em causa a omissão de reabertura da audiência em julgamento era o recurso, visto a nulidade ter sido detectada apenas com a notificação do acórdão final de 1ª instância”, “situação em que manifestamente não eram aplicáveis nem o art. 120º, nem o art. 121º do Código de Processo Penal”.
O que o requerente pretende é, pois, não que o Tribunal esclareça o sentido dos termos e a racionalidade do juízo decisório que fez sobre os pressupostos que foram definidos pela Relação, mas antes uma pronúncia assente sobre um quadro de pressupostos diferente cuja existência (hipotética), segundo a sua forma de ver, se haveria de ter por verificada por virtude do Tribunal da Relação ter errado na definição dos que constituíram a base do raciocínio deste Tribunal. O requerente apresenta-se, assim, a discutir a correcção jurídica do decidido e não o esclarecimento de qualquer ambiguidade ou obscuridade da decisão.
O seu pedido é, pois, de indeferir.
4.2 - Segundo pedido.
Também aqui, o requerente não coloca qualquer questão de inteligibilidade relativa ao sentido do discurso decisório deste Tribunal Constitucional. Ao invés, o que o recorrente, agora, intenta demonstrar é que ocorre uma desconexão lógica no raciocínio deste Tribunal, porquanto, partindo de uma suposição do que foi tido em conta por parte do tribunal a quo - “não tanto a existência de momentos de discricionariedade, mas antes a existência e o uso incorrecto de poderes de facto de emitir logo, ou em alturas posteriores, o alvará” - acaba por afirmar que isso “foi aquilo que foi verdadeiramente decisivo”.
Como é evidente, o que o requerente se apresenta, assim, a questionar é a validade racional ou lógico-jurídica do discurso seguido pelo Tribunal, ou seja, a existência de um eventual erro de julgamento.
Todavia, como já se disse, o pedido de aclaração não é um meio processual que esteja funcionalizado juridicamente para se poder obter a alteração do julgado.
É, pois, de indeferir este pedido.
4.3 - Terceiro pedido.
Antes de mais cumpre notar que o requerente não alega nenhuma causa de pedir de que faça derivar o terceiro pedido de aclaração como seu efeito jurídico adequado.
Por outro lado, no discurso espendido, o requerente limita-se a contradizer os fundamentos do acórdão aclarando, relativamente à questão nele resolvida, da falta dos pressupostos do recurso de constitucionalidade relativamente às normas dos arts. 410º, n.º 2, 433º e 432º, alínea c) do C. P. Penal. Na verdade, enquanto no acórdão aclarando se considera que as duas primeiras normas não foram aplicadas “quer [pel]a Relação” (que proferiu a decisão recorrida), quer [pel]o Supremo” e que o terceiro preceito apenas foi
“invocado pelo dito despacho [refere-se ao despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que indeferiu a reclamação da decisão da Relação que não havia admitido o recurso interposto para o STJ] como consequência da impossibilidade de recorrer ao abrigo da citada alínea f) do n.º 1 do art.º
400º”, o requerente sustenta que essas normas foram efectivamente aplicadas pela Relação de Coimbra.
Deste modo, o que se intenta obter não é nenhuma aclaração do acórdão proferido mas um reexame da mesma questão que propicie uma alteração do julgado.
Mas tal objectivo está fora do escopo legal do meio processual exercido, acima referido.
É, pois, de indeferir , também, este pedido.
C - Decisão
5. Destarte, atento tudo o exposto, decide este Tribunal Constitucional indeferir todos os pedidos de aclaração.
Custas pelo requerente, com taxa de justiça de 6 UC.
Lisboa, 17 de Dezembro de 2003
Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos