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Processo n.º 514/02
2ª Secção Relator -Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A. pediu em acção declarativa comum emergente de contrato individual de trabalho, que intentou contra B., que fosse declarada a ilicitude do seu despedimento e, consequentemente, que a ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de Esc. 489 600$00. Por acórdão datado de 13 de Julho de 2001, o Tribunal de Trabalho de Santa Maria da Feira julgou a acção parcialmente procedente, considerando o despedimento lícito mas com a condenação da ré no pagamento ao autor de Esc. 228.566$00, a título de férias e respectivo subsídio. Pode ler-se nessa decisão:
“(…) No dia 15/03/2000, cerca das 12h15m, o autor, ao passar pelo C., que se encontrava a falar com a colega D., disse ‘estás sempre no paleio em vez de trabalhares’, ao que o C. respondeu ‘eu não te digo nada quando tu estás a falar’. Não satisfeito o autor ameaçou dizendo que ‘vou informar o patrão de que falas mais do que trabalhas’ ao que novamente o C. retorquiu ‘então vamos os dois’. Foi então que, inesperadamente, o autor passou a ameaçar o C. dizendo ‘fodo-te o focinho’. Face a esta ameaça o C. disse-lhe ‘ora, se me queres bater, bate’. De seguida e sem qualquer razão que o justificasse, o autor pegou num cortante e dirigindo-se ao posto de trabalho do C., bateu-lhe com ele no lado esquerdo da cabeça, provocando-lhe ferimentos graves que necessitaram de tratamento hospitalar imediato.
(…) No caso dos autos, os factos traduzem-se numa agressão grave de um trabalhador a outro, a exigir intervenção hospitalar imediata. Uma agressão antecedida de insultos e ameaças do autor à vítima. E agressão que nem sequer foi seguida a estes insultos e ameaças. Ainda teve um intervalo. Não se alegou nem provou, é certo, qualquer tipo de consequências na relação laboral, mas estas, tendo em conta as regras da experiência comum das coisas, existem de forma evidente. Cabia ao autor atenuar a gravidade do ilícito ou a sua culpa. Não o fez. O despedimento é justificado.”
2.Inconformado, o autor recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra concluindo as suas alegações da seguinte forma:
«(...)
5. O Tribunal a quo ao interpretar as normas constantes do art. 9.º do DL
64-A/89, nomeadamente o requisito “...torne prática e imediatamente impossível a subsistência da relação de trabalho...”, e o art. 10.º/9 do DL 64-A/89, de forma a permitir que a justificação do despedimento possa a vir ser dada pelo Tribunal sem que exista qualquer alegação ou prova por parte da entidade patronal no sentido de que o comportamento do trabalhador tivesse qualquer tipo de consequências na relação laboral, violou o princípio constitucional da segurança no trabalho e da proibição dos despedimentos sem justa causa, previsto no art.
53.º da Constituição da República Portuguesa.
(...)
8. Atenta a inexistência de factos reveladores da impossibilidade concreta da manutenção da relação laboral, o despedimento deveria ter sido declarado ilícito pelo Tribunal a quo, por improcedência da justa causa invocada (art. 12.º/1, c) do DL 64-A/89), uma vez que o mesmo não foi legalmente fundamentado (art. 9.º/1 do DL 64-A/89).
9. A sentença recorrida violou o disposto nas seguintes normas: art. 10.º/9 do DL 64-A/89; art. 12.º/1, c) do DL 64-A/89; art. 12.º/4 do DL 64-A/89; art.
10.º/9 do DL 64-A/89; art. 3.º-A do Código de Processo Civil; art. 26.º do Decreto-Lei 49408 (LCT); art. 53.º da Constituição da República Portuguesa; art.
349.º do Código Civil.” Em 8 de Abril de 2002, foi proferido acórdão que negou provimento ao recurso, remetendo para as razões constantes da douta sentença recorrida e, em relação à inconstitucionalidade invocada, acrescentando o seguinte:
“(…) A este propósito, alega o Rte. que ‘O Tribunal a quo ao interpretar as normas constantes do art. 9.º do DL 64-A/89, nomeadamente o requisito “...torne prática e imediatamente impossível a subsistência da relação de trabalho...”, e o art.
10.º/9 do DL 64-A/89, de forma a permitir que a justificação do despedimento possa a vir ser dada pelo Tribunal sem que exista qualquer alegação ou prova por parte da entidade patronal no sentido de que o comportamento do trabalhador tivesse qualquer tipo de consequências na relação laboral, violou o princípio constitucional da segurança no trabalho e da proibição dos despedimentos sem justa causa, previsto no art. 53.º da Constituição da República Portuguesa.’ Mas nada na sentença recorrida permite uma tal ilação.
É sabido que é a entidade patronal o titular do poder disciplinar e que apenas a ela compete aplicar a sanção disciplinar. E que os tribunais não detêm poder disciplinar, não despedem, apenas declaram a existência de justa causa para despedir e que para isso lhes é mister apreciar e valorar os factos provados na perspectiva do relevo que possam ter para constituírem justa causa de despedimento. E que a apreciação da justa causa deve ser feita na observância dos critérios referenciais enunciados no art.º 12º, n.º
5, do DL n.º 64-A/89. Ora, o Tribunal da 1ª instância fazendo a apreciação da matéria de facto apurada concluiu, e bem, pela existência de justa causa de despedimento. A entidade patronal, como ressalta da factualidade apurada, ao aplicar a sanção disciplinar de despedimento, fê-lo porque, tal como invoca na ‘Decisão Final’ do Processo Disciplinar, o comportamento do Autor, retratado nos factos praticados e constantes da nota de culpa, além de tornar impossível a manutenção das relações de trabalho, constitui justa causa de despedimento. Não se vislumbra que a sentença recorrida tenha de alguma forma violado qualquer norma constitucional, designadamente a do art.º 53.º da CRP.”
3.O autor veio então interpor o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação das
“normas constantes do n.º 1 do art. 9.º do DL 64-A/89 e norma constante do n.º 9 do artigo 10.º do DL 64-A/89, quando interpretadas no sentido de permitir que a justificação do despedimento possa vir a ser dada pelo Tribunal sem que exista qualquer alegação ou prova por parte da entidade patronal demonstrando que o comportamento do trabalhador tivesse quaisquer tipo de consequências na relação laboral. A referida interpretação de tais normas legais viola o princípio constitucional da segurança no trabalho e da proibição dos despedimentos sem justa causa, previsto no art. 53.º da Constituição da República Portuguesa
(art.75.º-A/2 da LCT)”. Determinada a produção de alegações, o recorrente concluiu as suas defendendo a inconstitucionalidade da norma impugnada. Por sua vez, a recorrida, nas suas contra-alegações, veio dizer que a norma em causa não viola qualquer preceito constitucional e que, no presente caso, foi aplicada com inteiro rigor, pois
“é da mais comezinha experiência comum tirar a conclusão necessária destes
‘factos graves’. O recorrente não podia continuar a trabalhar na empresa (…). O insulto soez e a agressão violenta feita a um colega de trabalho justificam aos olhos de todos o imediato despedimento.” Notificado para se pronunciar sobre a questão prévia do eventual não conhecimento do recurso – que veio a ser suscitada pelo relator depois das alegações –, por a norma impugnada não ter sido aplicada pelo acórdão recorrido com a interpretação que o recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, veio este dizer:
“1º Salvo o devido respeito pela opinião contrária, julgamos que neste momento processual, isto é, depois de ter sido admitido o recurso e de ambas as partes já terem apresentado as suas alegações de recurso, não há norma legal que permita ao Senhor Juiz Relator levantar a ‘questão prévia do não conhecimento do recurso’,
2º Pois essa questão, a existir, deveria ter sido levantada antes da admissão do recurso e da notificação do recorrente para apresentar as suas alegações. Parece ser isto que resulta do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
3º Pelos motivos atrás expostos, o despacho proferido pelo Senhor Juiz Relator, em 13.01.2004, constitui um acto processual que a lei não admite, que tem influência no exame e na decisão da causa, sendo, portanto, nulo (cfr. art. 201º CPC, art. 69º LTC)
4° O que se invoca para todos os efeitos legais.
5° Sem conceder, se se entender que o despacho não enferma de nulidade processual, então, perante essa hipótese,
6° Salvo o devido respeito pela opinião contrária, pensamos que só por mero lapso de análise é que se poderá afirmar que a norma impugnada não foi aplicada pelo acórdão recorrido, na interpretação que o recorrente pretende ver apreciada.
7° A questão da inconstitucionalidade da interpretação do art. 9º/1 do DL
64-A/89, suscitada pelo recorrente perante o Tribunal Constitucional, foi previamente levantada perante o tribunal de 2ª instância, na 1ª a 6ª conclusões do recurso de apelação.
8° O Tribunal da Relação do Porto confirmou inteiramente a sentença proferida pelo Tribunal do Trabalho de Santa Maria da Feira
9° E pronunciou-se sobre a questão da inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente, decidindo que não existia qualquer inconstitucionalidade na interpretação levada a cabo pelo Tribunal do Trabalho de Santa Maria da Feira.
10° Logo, o tribunal da 2ª Instância, ao confirmar a decisão da 1ª instância, teve necessariamente de interpretar e de aplicar as normas legais em causa com o sentido que foi referido nas alegações do recorrente. Pois, de outra maneira nunca poderia ter chegado à conclusão que chegou. E isto por uma razão muito simples e absolutamente insofismável: não foram provados na acção quaisquer factos concretos que justifiquem concretamente o requisito legal da
‘impossibilidade prática e imediata da manutenção do contrato de trabalho’.
11° Não há pois qualquer dúvida em como a questão da inconstitucionalidade da interpretação, que é objecto do presente recurso, trespassa todo o acórdão do Tribunal da Relação do Porto.
12° Em conclusão, o despacho do Senhor Juiz Relator é nulo e, sempre, desprovido de fundamento.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4.O presente recurso vem intentado ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Ora, como se sabe, no direito constitucional português vigente, apenas as normas são objecto de fiscalização de constitucionalidade concentrada em via de recurso
(cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/96, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Maio de 1996, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., 2003, 932, Almedina, Coimbra), com exclusão dos actos de outra natureza (políticos, administrativos, ou judiciais em si mesmos). E, como também é sabido, para se poder conhecer do recurso de constitucionalidade interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, torna-se necessário, a mais do esgotamento dos recursos ordinários e que a inconstitucionalidade normativa tenha sido suscitada durante o processo, que a norma ou dimensão normativa impugnada tenha sido aplicada, como ratio decidendi, pelo tribunal recorrido – designadamente, quando a norma impugnada corresponde apenas a um certa dimensão interpretativa de um preceito, torna-se indispensável que esta interpretação normativa impugnada tenha sido aplicada pela decisão recorrida, apenas assim podendo o julgamento que o Tribunal Constitucional proferir vir a repercutir-se nessa decisão. Só preenchidos os requisitos referidos pode este Tribunal tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade, tendo sido justamente para prevenir a hipótese de um eventual não conhecimento, por a norma impugnada não ter sido aplicada pelo acórdão recorrido com a interpretação que o recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, que se determinou a sua notificação para se pronunciar sobre este ponto. Como é evidente, a suscitação desta questão não fica necessariamente precludida pelo facto de o recorrente ter anteriormente sido notificado para apresentar alegações. É certo que o relator pode logo proferir decisão sumária de não conhecimento do recurso, se existir fundamento para tal, nos termos do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional. Mas mesmo que o não faça, e que determine a produção de alegações, pode bem novo exame do processo, realizado depois das alegações, pelo relator ou em julgamento em secção, levar à conclusão de que uma questão prévia relativa ao não conhecimento deve ser suscitada, dando-se ao recorrente (para evitar qualquer
“decisão-surpresa”) a oportunidade de sobre ela se pronunciar. Não procede, pois, a alegação de que a referida suscitação constitui um acto processual que a lei não permitia.
5.No presente caso, o recorrente pretende, com o recurso de constitucionalidade, a apreciação das normas dos artigos 9.º e 10.º, n.º 9, do Decreto-Lei n.º
64-A/89, de 27 de Fevereiro (regime jurídico da cessação do contrato de trabalho), “quando interpretadas no sentido de permitir que a justificação do despedimento possa vir a ser dada pelo Tribunal sem que exista qualquer alegação ou prova por parte da entidade patronal demonstrando que o comportamento do trabalhador tivesse quaisquer tipo de consequências na relação laboral”. Ora, apesar de se afirmar na decisão da 1ª instância que “[n]ão se alegou nem provou (…) qualquer tipo de consequências na relação laboral, mas estas, tendo em conta as regras da experiência comum das coisas, existem de forma evidente”, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra recorrido não entendeu a fundamentação do despedimento, no procedimento disciplinar promovido pela entidade patronal, como tendo dispensado a alegação e prova de quaisquer repercussões na relação de trabalho, nem sequer entendeu a decisão de 1ª instância como tendo dispensado a prova de tais consequências (que se afirma aí serem evidentes). Antes se afirmou, no acórdão do Tribunal da Relação recorrido, que “nada na sentença recorrida permite uma tal ilação”, que “o Tribunal da 1ª instância fazendo a apreciação da matéria de facto apurada concluiu, e bem, pela existência de justa causa de despedimento”, e, sobretudo, que a “entidade patronal, como ressalta da factualidade apurada, ao aplicar a sanção disciplinar de despedimento, fê-lo porque, tal como invoca na ‘Decisão Final’ do Processo Disciplinar, o comportamento do Autor, retratado nos factos praticados e constantes da nota de culpa, além de tornar impossível a manutenção das relações de trabalho, constitui justa causa de despedimento.” O Tribunal da Relação, ao confirmar a decisão da 1ª instância, não se baseou, pois, em qualquer norma com o sentido de que não haviam sido alegados e
“provados na acção quaisquer factos concretos que justifiquem concretamente o requisito legal da ‘impossibilidade prática e imediata da manutenção do contrato de trabalho’”. Designadamente, não adoptou a interpretação das normas em causa impugnada pelo recorrente – isto é, no sentido de que a justificação do despedimento pode ser dada pelo Tribunal “sem que exista qualquer alegação ou prova por parte da entidade patronal demonstrando que o comportamento do trabalhador tivesse quaisquer tipo de consequências na relação laboral” –, e antes considerou que tal alegação e prova fora efectuada, resultando dos graves factos provados, quer logo pela entidade patronal no procedimento disciplinar, quer na 1ª instância. Não tendo a norma impugnada sido aplicada pelo tribunal recorrido, não pode tomar-se conhecimento do presente recurso de constitucionalidade. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do presente recurso. Custas pelo recorrente, com 10 (dez) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 10 de Março de 2004 Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos