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Proc. n.º 578/98 Plenário Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I O pedido e os seus fundamentos
1. O Provedor de Justiça requereu, em Junho de 1998, ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 281º, n.º 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa, a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos artigos 21º, n.º 1, 23º, n.º
1, 25º, n.ºs 2, 4 e 5, 26º, n.ºs 1 e 3, alínea b), 27º, 31º, n.º 2, 32º, n.º 2,
34º, 2ª parte, e 36º do Decreto-Lei n.º 86/98, de 3 de Abril (Aprova o regime jurídico do ensino da condução).
As normas em causa estabelecem como segue:
Artigo 21º Instrutores
1 – O ensino de condução só pode ser ministrado por indivíduo legalmente habilitado para todas as modalidades.
[...].
Artigo 23º Impedimento
1 – Não podem ministrar o ensino de condução os indivíduos que:
a) Sejam examinadores de condução ou trabalhem, a título gratuito ou oneroso, nos centros de exame;
b) Se encontrem inibidos de conduzir pela prática de contra-ordenação grave ou muito grave, enquanto durar aquela inibição.
[...].
Artigo 25º Licenças de instrutor
[...]
2 – O candidato a instrutor deve frequentar curso de formação, organizado nos termos a fixar em regulamento, após o que é submetido a exame de admissão a estágio, a realizar pela Direcção-Geral de Viação.
[...]
4 – Após aprovação em exame final, nos termos a definir em regulamento, é emitida licença de instrutor com carácter definitivo.
5 – Periodicamente e nos termos regulamentares, os instrutores ficam sujeitos à frequência de curso de actualização de conhecimentos, com aproveitamento, sem o qual não podem proceder à revalidação da licença de que são titulares.
[...].
Artigo 26º Cancelamento e caducidade da licença de instrutor
1 – É cancelada a licença do instrutor que infringir o disposto no n.º 1 do artigo 1º ou na alínea d) do n.º 7 do artigo 2º, sem prejuízo de reabilitação, nos termos da lei geral.
[...]
3 – Caduca a licença de instrutor cujo titular:
[...]
b) Não se submeta ou reprove em qualquer dos exames determinados nos termos do artigo 27º.
Artigo 27º Exames especiais
1 – Surgindo fundadas dúvidas sobre a aptidão física, mental ou psicológica ou sobre a capacidade de um candidato a instrutor ou de um instrutor para o exercício da profissão, pode o director-geral de Viação, por despacho fundamentado, determinar que aqueles sejam submetidos a exame médico, psicológico ou a novo exame final de instrutor.
2 – Constituem motivo para dúvidas sobre a aptidão ou capacidade referidas no número anterior a prática, num período de três anos, de três contra-ordenações à legislação rodoviária, ao ensino e a exames de condução.
Artigo 31º Subdirector
[...]
2 – Só pode ser subdirector de escola de condução o instrutor que, não se encontrando em qualquer das situações previstas nos artigos 22º e 23º, conte, pelo menos, três anos de exercício ininterrupto de funções e que, no termo daquele período, frequente curso de formação de subdirector de escola de condução, sendo aprovado no respectivo exame, prestado na Direcção-Geral de Viação.
[...].
Artigo 32º Director
[...]
2 – Apenas pode ter acesso à função de director o subdirector que, não se encontrando em qualquer das situações previstas nos artigos 22º e 23º, tenha exercido ininterruptamente aquelas funções no período dos últimos dois anos.
[...].
Artigo 34º Inabilidade e impedimento
Ao subdirector e director de escola é aplicável, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 22º e 23º.
Artigo 36º Cancelamento e caducidade das licenças de subdirector e de director
O cancelamento ou a caducidade da licença de instrutor implicam, respectivamente, o cancelamento ou a caducidade das licenças de subdirector ou de director.
2. O requerente pediu a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas identificadas, por entender que as mesmas violam a reserva de competência legislativa parlamentar constante do artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição, e pediu igualmente a declaração de inconstitucionalidade consequente de todas as normas que naquelas tenham o seu fundamento.
Para sustentar a sua pretensão, alegou, em síntese, o requerente:
– todas as normas em apreço visam limitar e condicionar o acesso e exercício de três profissões, a saber, a de instrutor, subdirector e director de escola;
– todas elas estabelecem requisitos sem o cumprimento dos quais é possível começar licitamente a exercer alguma daquelas profissões ou continuar a exercê-las;
– mostra-se, assim, em causa a liberdade de exercício de profissão, na sua vertente inicial, de escolha e ingresso na profissão, e contínua, de exercício da mesma;
– a liberdade de exercício de profissão está prevista no artigo 47º, n.º 1, da Constituição, integrando-se no título II da parte I da Lei Fundamental;
– deste modo, é aplicável às restrições a esta liberdade, ex vi do artigo 17º, o regime orgânico previsto no artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição, isto
é, está reservada exclusivamente à Assembleia da República a competência para legislar sobre tal matéria, salvo autorização ao Governo;
– o Decreto-Lei n.º 86/98, de 3 de Abril, foi aprovado pelo Governo ao abrigo da sua competência legislativa prevista no artigo 198º, n.º 1, alínea a), da Constituição, isto é, da chamada competência concorrencial;
– desconhece-se a existência de lei de autorização legislativa válida ao tempo da aprovação do decreto-lei em causa, sendo certo que a não invocação expressa de autorização legislativa pelo diploma em apreço sempre produziria uma desconformidade com a Constituição, por violação do artigo 198º, n.º 3;
– estando o Governo a legislar em matéria da competência exclusiva da Assembleia da República, sem a respectiva autorização legislativa, há que considerar as normas deste decreto-lei que incidam sobre essa matéria como organicamente inconstitucionais;
– declarada a inconstitucionalidade das normas em apreço, hão-de ter-se por consequentemente inconstitucionais todas as normas que apenas devem a sua subsistência àquelas, como sejam as que prevêem contra-ordenações para a violação das normas impugnadas e as que regulam procedimentos de concessão das licenças para o exercício das profissões em causa.
3. Notificado do pedido, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º e 55º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Primeiro-Ministro limitou-se a oferecer o merecimento dos autos.
4. Discutido em Plenário o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal, nos termos do artigo 63º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir de harmonia com o que então se estabeleceu.
II Questão prévia. Delimitação do objecto do pedido
5. O Decreto-Lei n.º 86/98, de 3 de Abril, foi submetido a apreciação parlamentar, ao abrigo do disposto nos artigos 162º e 169º da Constituição, a requerimento do Grupo Parlamentar do PSD (Diário da Assembleia da República, II Série-B, n.º 18, de 27 de Abril de 1998), tendo sido apresentadas várias propostas de alteração, subscritas pelos Grupos Parlamentares do PSD, do CDS-PP e do PCP e ainda pelo Deputado A. (PSD) (Diário da Assembleia da República, II Série-B, n.º 27, de 4 de Julho de 1998).
Na sequência dessa apreciação parlamentar, veio a ser aprovada e publicada a Lei n.º 51/98, de 18 de Agosto, que, entre outros, alterou os artigos 21º, n.º 1, 25º, n.ºs 4 e 5, e 27º do referido Decreto-Lei n.º 86/98, os quais integravam o objecto do presente processo.
Além disso, verifica-se que, quer nas propostas de alteração apresentadas pelo PCP, quer nas propostas apresentadas pelo Deputado A., o n.º 2 do artigo 25º do Decreto-Lei n.º 86/98 é referido através de um ponteado.
Suscita-se deste modo a questão de saber se é ainda invocável a inconstitucionalidade orgância de tais normas constantes da versão originária do Decreto-Lei n.º 86/98.
5.1. O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre os efeitos da aprovação de uma lei de emendas, no quadro jurídico-constitucional anterior às alterações introduzidas pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, que estiveram na origem da redacção do actual artigo 169º da Constituição da República Portuguesa, isto é, no quadro de um processo ratificativo então previsto no artigo 172º da Constituição.
Fê-lo nos Acórdãos n.ºs 415/89 e 786/96 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., tomo I, p. 507 ss, e 34º vol., p. 23 ss, respectivamente).
No Acórdão n.º 415/89, o Tribunal começou por lembrar as divergências doutrinárias a propósito do instituto da ratificação de decretos-leis (na versão originária da Constituição), nomeadamente na perspectiva do efeito da ratificação expressa de decretos-leis organicamente inconstitucionais por invasão governamental das matérias de exclusiva competência da Assembleia da República, citando as opiniões de Rui Machete,
“Ratificação de decretos-leis organicamente inconstitucionais”, Estudos sobre a Constituição, vol. I, p. 281 ss, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, 1980, p. 347/348, Jorge Miranda, “A ratificação no direito constitucional português”, Estudos sobre a Constituição, vol. III, p. 547 ss, Luís Nunes de Almeida, “O problema da ratificação parlamentar de decretos-leis organicamente inconstitucionais”, Estudos sobre a Constituição, vol. III, p. 619 ss. Recordou-se em seguida a jurisprudência produzida, quer pela Comissão Constitucional (Parecer n.º 7/79, Pareceres da Comissão Constitucional, 7º vol., p. 301 ss), quer pelo próprio Tribunal Constitucional (Acórdãos n.ºs 174/87 e
266/87, publicados no Diário da República, II Série, n.º 159, de 14 de Julho de
1987, p. 8677 ss, e I Série, n.º 197, de 28 de Agosto de 1987, p. 3333 ss, respectivamente). E, depois de analisar as alterações introduzidas nos artigos
172º e 165º, alínea c), da Constituição, pela revisão constitucional de 1982 – designadamente a circunstância de ter deixado de existir um acto positivo de ratificação, pois apenas se passou a prever a recusa de ratificação e a alteração do decreto-lei –, que deram lugar a uma orientação doutrinal dominante no sentido da não convalidação de decretos-leis organicamente inconstitucionais
(Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4ª ed., p. 654, Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado, p. 231/232, António Nadais, António Vitorino e Vitalino Canas, Constituição da República Portuguesa, p. 203, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 222, e Jorge Simão, Da ratificação dos Decretos-Leis, p. 32), disse o Tribunal Constitucional:
“[...] Não se afigura indispensável para a solução do caso dos autos resolver expressamente questões como a de saber se, face ao texto constitucional saído da revisão de 1982, ainda se pode falar de ratificação expressa, ou, até, se no caso de ser aprovada uma lei de alteração ao decreto-lei ratificando, tal lei tem como efeito, genericamente, inviabilizar que, para o futuro possa ser invocada a eventual inconstitucionalidade orgânica de qualquer das suas normas. Na verdade, ainda que se admita que a figura da ratificação expressa deixou de ter assento constitucional – como parece resultar do que se escreveu no citado Acórdão n.º 266/87 – e que a mera aprovação de uma lei de alterações, na sequência de um processo desencadeado ao abrigo do artigo 172º da Constituição, não pode ter como efeito impedir a invocação, a partir da entrada em vigor dessa lei, de eventuais inconstitucionalidades orgânicas que afectassem originariamente normas do decreto-lei ratificando, a questão não fica inteiramente resolvida para todos os casos. Com efeito, sempre será necessário ressalvar, pelo menos, a hipótese de a lei de alterações reproduzir as normas organicamente inconstitucionais do decreto-lei submetido à sua apreciação. Em tal caso, é inegável que a Assembleia da República assume ou adopta tais normas como suas ao mantê-las inalteradas de forma expressa e inequívoca. E, assim sendo, tais normas não podem mais ser arguidas de organicamente inconstitucionais, até porque se verifica, quanto a elas, uma novação da respectiva fonte. Mas, para além de tais normas expressamente reproduzidas na lei de alteração, não serão igualmente de ressalvar aquelas normas que, de forma implícita, a Assembleia da República não pode ter deixado de querer manter inalteradas, porquanto constituem um pressuposto logicamente necessário e indispensável de todas as restantes normas constantes do decreto-lei originário e da própria lei de alteração ? A resposta a esta questão parece dever ser claramente afirmativa. Na verdade, admita-se que se deve entender que, com a lei de alteração, se não produz, em princípio, qualquer confirmação, sanação, convalidação ou conversão das normas do decreto-lei que não hajam sido objecto de transposição para aquela lei. Ainda assim, porém, se há-de reconhecer que seria manifestamente absurdo que, no caso de decreto-lei cuja própria existência se centra numa determinada norma, relativamente à qual todas as restantes são puramente acessórias ou instrumentais, essa mesma norma – essencial – pudesse vir a ser questionada do ponto de vista da sua constitucionalidade orgânica, depois de a Assembleia da República, embora a não tivesse expressamente reproduzido na referida lei de alteração, a havia implicitamente assumido como norma sua, manifestando inequívoca vontade política de a manter na ordem jurídica. Assim sendo, não se vê como se possa sustentar que seja possível continuar a invocar a inconstitucionalidade orgânica de uma tal norma depois da entrada em vigor da lei de alteração. Essa tese só poderia, com efeito, assentar em argumentos de puro formalismo jurídico, inteiramente artificial e completamente desligado da razão de ser da atribuição constitucional de uma reserva de competência legislativa ao Parlamento: é que, por essa via, se iria contrariar frontalmente a vontade política desse mesmo Parlamento, já inequivocamente manifestada.
[...].”
Por seu turno, no Acórdão n.º 786/96, depois de se sustentar que, após a revisão constitucional de 1982, “a não recusa de ratificação não pode eliminar retroactivamente os vícios de inconstitucionalidade [orgânica]” e que
“a vontade política presente na não recusa de ratificação também não se confunde com uma vontade dirigida à situação em que juridicamente se encontre o decreto-lei e que possa precludir, por esse motivo, a intervenção fiscalizadora do Tribunal Constitucional”, escreveu-se:
“[...] Reconhece-se, todavia, que tais argumentos, válidos, em geral, para a mera não recusa de ratificação, não têm relevância absoluta num caso em que foram introduzidas alterações no diploma e em que foram rejeitadas propostas de alteração relativamente às normas cuja constitucionalidade orgânica é questionada. Em tal caso, foi desencadeado um processo legislativo autónomo, exigente nos respectivos pressupostos (de iniciativa de pelo menos dez Deputados) e que veio a culminar com uma nova lei. Embora se trate de um processo legislativo específico, destinado a produzir alterações, haverá, quanto
às normas objecto de projecto de propostas de alteração, mas não alteradas, uma decisão positiva da Assembleia da República ou, noutros termos, uma assunção da anterior intenção legislativa (cfr. Jorge Miranda, ob. cit., p. 520, que, apesar de rejeitar valor confirmativo à não recusa de ratificação, o não exclui quanto
às normas objecto de propostas de alteração). Ora, na situação que se analisa, não só houve a aprovação de emendas ao diploma como foram expressamente rejeitadas propostas de alteração da norma agora impugnada. Consequentemente, o argumento da necessidade de preservação da função essencial do artigo 168º da Constituição e da delimitação dos processos legislativos parlamentar e governamental deixa de ser pertinente. A possibilidade, efectivamente utilizada, de uma discussão na especialidade das normas impugnadas e da sua reafirmação num novo processo legislativo assegura a iniciativa parlamentar e ilustra uma verdadeira vontade legislativa. Através do uso de tal faculdade, a não recusa de ratificação não se esgota numa vontade política, assumindo-se como verdadeira intenção legislativa. Assim, embora num plano lógico-formal seja questionável qualquer superação da inconstitucionalidade orgânica por esta assunção legislativa (porque, na realidade, também a recusa da ratificação apenas faz cessar a vigência do diploma após a sua publicação) e não se possa atribuir a esta vontade legislativa uma eficácia sanatória ou uma supressão retroactiva da inconstitucionalidade, também é verdade que a justificação da invocação da inconstitucionalidade orgânica, num plano funcional, não se verifica.
É certo que não há paralelismo absoluto entre o significado da confirmação de actos anuláveis e esta situação (isto é, a da não recusa da ratificação acompanhada da rejeição de propostas de alteração), porque aqui o princípio subjacente não é, como no direito civil, a pura realização do interesse concreto de quem pode arguir a anulabilidade, mas o valor objectivo da preservação da distribuição da competência legislativa entre órgãos autónomos do Estado, como emanação da separação dos poderes e do sistema do controlo democrático dos poderes. Todavia, a vontade positiva manifestada após a rejeição das propostas de alteração, inserida num específico processo legislativo, revela que foi assegurado o sistema de controlo democrático inerente à delimitação dos processos legislativos parlamentar e governamental. Assim, a declaração de inconstitucionalidade orgânica do diploma não se justificaria para o cumprimento da função de controlo parlamentar da decisão legislativa, função já plenamente cumprida pelo processo de alteração do diploma, nos termos do artigo 172º, n.º 2, da Constituição. Deste modo, conclui-se que a inconstitucionalidade orgânica de um diploma, a que não foi recusada a ratificação, após discussão de propostas de alteração, não é pertinentemente invocável, não sendo exigível pela função de preservação da delimitação dos processos legislativos parlamentar e governamental.
[...].”
Recentemente, no Acórdão n.º 368/02 (Diário da República, II Série, n.º 247, de 25 de Outubro de 2002, p. 17780 ss), em que se desenvolveu o entendimento expresso nos mencionados Acórdãos n.ºs 415/89 e 786/96, disse o Tribunal:
“[...] Da jurisprudência transcrita – que se não vê razão para inflectir e aqui se reitera – retira-se que, tendo em conta «a função de controlo parlamentar da decisão legislativa», a aprovação de uma lei de emendas, ao abrigo do antigo artigo 172º da Constituição, tem como efeito a ininvocabilidade futura da inconstitucionalidade orgânica de, pelo menos, as seguintes normas constantes do decreto-lei alterado por essa mesma lei de emendas: a) As normas reproduzidas na lei parlamentar; b) As normas que a Assembleia da República não pode ter deixado de querer manter inalteradas, porquanto constituem um pressuposto logicamente necessário e indispensável de todas as restantes normas contidas no decreto-lei originário e na própria lei de alteração; c) As normas que, durante o especial processo legislativo parlamentar, foram objecto de propostas de alteração rejeitadas.
[...]
O n.º 5 do artigo em causa não foi objecto de qualquer proposta de alteração, constando do texto entregue pelo PS, no artigo 16º, n.º 5, a indicação (igual) e no texto apresentado pelo PCP o preceito é substituído por um ponteado.
Ora, neste contexto, é evidente que foi assegurada a possibilidade de iniciativa parlamentar quanto à alteração do preceito em causa e que se revelou uma clara vontade política dos subscritores das propostas de alteração de manter inalterado o n.º 5 do artigo 16º, o que permite concluir no sentido de que essa imutabilidade traduz – para usar a linguagem do Acórdão n.º 786/96 – a
«verdadeira intenção legislativa» da Assembleia da República, que acabou por aprovar alterações à epígrafe e aos n.ºs 1, 2 e 3 do mesmo artigo, ao qual também acrescentou um n.º 6.
Verifica-se, assim, que também quanto a esta norma se efectivou, de um ponto de vista substancial, «a função de controlo parlamentar da decisão legislativa», pelo que constituiria puro formalismo, claramente contraditório com a razão de ser da existência constitucional de uma reserva legislativa parlamentar e do instituto previsto no antigo artigo 172º da Constituição – cuja conjugação inculca o intuito de assegurar que não possam subsistir opções político-legislativas contrárias à vontade da Assembleia da República – vir eventualmente a declarar a sua inconstitucionalidade orgânica.
Não é, pois, já invocável a inconstitucionalidade orgânica da norma constante do artigo 16º n.º 5 do Decreto-Lei n.º 26/94.
[...]”.
5.2. Tendo em conta esta jurisprudência, conclui-se que deixou de ser invocável o vício de inconstitucionalidade orgânica relativamente às normas do decreto-lei em apreço que, apesar de terem sido objecto do pedido de declaração de inconstitucionalidade, foram alteradas (e, portanto, revogadas) pela Lei n.º
51/98 – a saber, as constantes dos artigos 21º, n.º 1, 25º n.ºs 4 e 5, e 27º.
A mesma conclusão vale no que se refere à norma do artigo 25º, n.º 2, do mesmo Decreto-Lei. Na verdade, tendo em conta que o artigo 172º da CRP não sofreu modificações substanciais em 1997 (compare-se com o actual artigo 169º), entende-se agora também que “foi assegurada a possibilidade de iniciativa parlamentar quanto à alteração do preceito em causa [o preceito do n.º 2 do artigo 25º]”, não se justificando a sua eventual declaração de inconstitucionalidade orgânica. Solução diferente “constituiria puro formalismo, claramente contraditório com a razão de ser da existência constitucional de uma reserva legislativa parlamentar e do instituto previsto no antigo artigo 172º da Constituição [actual artigo 169º]”.
6. Importa todavia apurar se, quanto a tais normas – isto é, quanto às normas constantes dos artigos 21º, n.º 1, 25º, n.ºs 2, 4 e 5, e 27º do Decreto-Lei n.º 86/98, na sua versão originária –, subsiste interesse no conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade.
O Tribunal Constitucional tem entendido – como se escreveu no Acórdão n.º 255/02
(publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 155, de 8 de Julho de 2002, p.
5237 ss) – “que se não justifica a utilização do mecanismo da fiscalização abstracta sucessiva relativamente a normas já revogadas sempre que não ocorra um interesse jurídico relevante – um interesse prático apreciável, ou seja, desde que se possa presumir que uma eventual declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral apenas viria a afectar um número muito reduzido de situações. Em tais casos o Tribunal tem optado por considerar desajustada a utilização da fiscalização abstracta sucessiva entendendo não tomar conhecimento do pedido por inutilidade superveniente”.
No Acórdão n.º 187/2003 (publicado no Diário da República, II Série, n.º 114, de
17 de Maio de 2003, p. 7512 ss), o Tribunal considerou, invocando acórdãos anteriores, que, atendendo à diminuta utilidade de uma eventual declaração de inconstitucionalidade quanto a situações residuais que pudessem estar eventualmente pendentes – uma vez que nas situações resolvidas à luz das normas entretanto revogadas estava excluída a possibilidade de serem afectadas por tal declaração –, o conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade dessas normas deixa de ter interesse juridicamente relevante, “já que seria inadequado e desproporcionado accionar um mecanismo de índole genérica e abstracta para (residuais) casos concretos em que a aplicação da norma subsistiu. Nesses casos residuais os possíveis beneficiários da eventual declaração de inconstitucionalidade poderão obter idêntico efeito suscitando a inconstitucionalidade da norma sub iudice em impugnação contenciosa do acto de indeferimento do pedido de acesso à actividade” que aí estava em causa.
Ora, no caso dos autos, as razões que têm sido invocadas na jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional justificam a conclusão no sentido de que não subsiste um interesse prático apreciável na apreciação da inconstitucionalidade das normas constantes da versão originária do Decreto-Lei n.º 86/98, de 3 de Abril, relativamente às quais se verificou ter deixado de ser invocável o vício decorrente da falta de aprovação parlamentar. No mesmo sentido aponta também o curto período que decorreu entre a data da entrada em vigor daquele diploma
(noventa dias após a data da respectiva publicação, nos termos do seu artigo
54º) e a data da entrada em vigor da Lei n.º 51/98, de 18 de Agosto.
Em face do exposto, não pode o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade, por inutilidade superveniente, relativamente às normas constantes dos artigos 21º, n.º 1, 25º, n.ºs 2, 4 e 5, e 27º do Decreto-Lei n.º 86/98, de 3 de Abril.
7. Por último, sublinhe-se que a circunstância de vir invocada apenas a inconstitucionalidade orgânica das normas impugnadas torna carecida de sentido a apreciação desse vício relativamente às normas vigentes no ordenamento jurídico após a publicação da mencionada Lei n.º 51/98, uma vez que esta foi aprovada pela Assembleia da República.
Aliás, o respeito pelo princípio do pedido impediria tal apreciação. Na verdade, de acordo com o entendimento que vem sendo seguido por este Tribunal, o princípio do pedido obsta ao conhecimento das normas constantes de diplomas que alteram aqueles que constituem o objecto do pedido, pelo menos quando, como acontece no caso dos autos, das alterações introduzidas resulte
“uma modificação substancial das normas, dando origem, assim, a normas substancialmente novas, ou seja, a normas que expressem uma diferente opção política do legislador” (cfr. Acórdão n.º 57/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p. 141 ss, e Acórdão n.º 368/02, já referido).
Em síntese, e considerando a delimitação que acaba de ser feita: a questão relevante para efeitos de apreciação de constitucionalidade, a título principal, consiste em saber se as normas constantes dos artigos 23º, n.º 1, 26º, n.ºs 1 e
3, alínea b), 31º, n.º 2, 32º, n.º 2, 34º, 2ª parte, e 36º do Decreto-Lei n.º
86/98 violam a reserva de competência legislativa parlamentar prevista no artigo
165º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República.
III Análise da questão de constitucionalidade
8. Nos termos do artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição, é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre a matéria respeitante a “direitos, liberdades e garantias”.
Ora, o decreto-lei cujas normas são objecto de análise foi emitido ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 198º da Constituição, nos termos da qual o Governo pode “fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República”. Por outras palavras, este decreto-lei foi emitido no âmbito da chamada competência concorrencial.
Importa, assim, esclarecer se as normas atrás assinaladas tocam de forma substancial aspectos relativos a direitos, liberdades e garantias, constituindo, por isso, matéria de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 165º, n.º 1, alínea b), da CRP.
O requerente invoca que as normas em apreciação “visam limitar e condicionar o acesso e exercício de três profissões” – a de instrutor, subdirector e director de escola de condução.
A liberdade de escolha de profissão encontra-se prevista no artigo 47º, n.º 1, da Constituição – disposição incluída no Título II da Parte I, que é precisamente subordinado à epígrafe Direitos, Liberdades e Garantias.
Nesta conformidade, e porque a liberdade de profissão faz parte dos direitos, liberdades e garantias pessoais, estando sujeita ao regime especialmente previsto para esta categoria de direitos fundamentais no mencionado artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição, toda a definição inicial e substantiva de questões atinentes ao acesso a uma profissão e ao exercício – ou à privação do exercício – dessa profissão constitui matéria da reserva relativa de competência legislativa parlamentar.
8.1. O Tribunal Constitucional já por várias vezes concluiu pela inconstitucionalidade orgânica de normas reguladoras de matérias atinentes à liberdade de profissão.
Assim, no Acórdão n.º 188/92 (publicado no Diário da República, II Série, n.º
191, de 20 de Agosto de 1992, p. 7740 ss), este Tribunal apreciou a norma constante do n.º 2 do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 282/86, de 5 de Setembro, que foi o primeiro diploma legal a regular a actividade de segurança privada. A norma em causa estabelecia uma incompatibilidade entre o exercício de actividade como pessoal de segurança privada e o exercício de qualquer cargo ou função na Administração central, regional ou local, bem como com o exercício de qualquer actividade profissional remunerada sob a autoridade e direcção de qualquer outra entidade. No referido aresto, o Tribunal Constitucional veio a julgar tal norma organicamente inconstitucional, por considerar que a criação daquela incompatibilidade “constitui uma verdadeira restrição a um direito fundamental”, inscrevendo-se no âmbito da reserva de competência legislativa parlamentar prevista no artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Lei Fundamental, atinente aos direitos, liberdades e garantias.
Esta conclusão viria a ser integralmente confirmada no Acórdão n.º 172/95
(Diário da República, II Série, n.º 134, de 9 de Junho de 1995, p. 6394), que apreciou a mesma norma.
Por outro lado, no Acórdão n.º 283/91 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol., p. 387 ss), em que se analisou uma norma respeitante às condições de inscrição na Câmara dos Solicitadores, aprovada através do Decreto-Lei n.º
376/87, de 11 de Dezembro, não precedido de autorização legislativa, o Tribunal julgou-a inconstitucional por violar a reserva de competência parlamentar, na conjugação dessa reserva em matéria de associações públicas com a reserva em matéria de direitos, liberdades e garantias. E, no Acórdão n.º 464/91 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20º vol., p. 549 ss), depois de se referir à reserva de competência legislativa parlamentar em matéria de associações públicas, o Tribunal afirmou:
“[...] E, embora seja questionável qual o alcance da reserva neste ponto, dúvidas não há de que nela se incluem necessariamente as regras relativas à própria inscrição na associação, inscrição que, condicionando o exercício da profissão em causa, é, por esse facto, matéria de direitos, liberdades e garantias, sujeita a reserva de autorização legislativa, nos termos dos artigos 47º, n.º 1, e 168º, n.º 1, alínea c) [hoje, alínea b)], da Constituição.”
Tal decisão, confirmada em acórdãos subsequentes, viria a dar origem à declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da referida norma, através do Acórdão n.º 347/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23º vol., p. 99 ss), onde se afirmou que “a definição de quem reúne as condições legais para se inscrever na Câmara dos Solicitadores inclui-se na reserva parlamentar, havendo, por isso, de constar de lei formal ou de decreto-lei do Governo, devidamente autorizado para o efeito”.
A consideração de que a fixação de condições específicas para o exercício de determinada profissão ou actividade profissional se enquadra no contexto da liberdade de escolha de profissão regulada no artigo 47º da Lei Fundamental e, portanto, constitui matéria da exclusiva competência legislativa da Assembleia da República, por tratar de matéria de direitos, liberdades e garantias, em nada foi contrariada pelo Acórdão n.º 367/99 (publicado no Diário da República, II Série, n.º 58, de 9 de Março de 2000, p. 4649 ss), que não julgou organicamente inconstitucionais normas constantes de diplomas legislativos governamentais disciplinadoras do exercício de funções docentes, no âmbito do ensino superior público. É que nesse aresto se esclareceu expressamente:
“[...] Não está em causa qualquer restrição à liberdade de escolha de profissão (n.º
1), pois ao recorrido no presente processo não foi vedada a opção pela actividade docente, apenas o exercício dessa mesma actividade em mais do que um estabelecimento de ensino sofreu limitações.
[...] E de afastar é igualmente a recondução do regime que incorpora à figura das incompatibilidades, área em que a intervenção legislativa restritiva é expressamente admitida pelo texto constitucional (artigo 269º, n.º 5), mas que nos arrastaria para o âmbito do direito à escolha de profissão, com todas as limitações que isso implica. A dupla limitação a que o recorrido se encontra sujeito não o coloca perante a obrigação de optar por um emprego preterindo outro, antes condiciona o exercício de uma determinada actividade, em acumulação com outra, à obtenção de uma autorização prévia e à submissão a um limite horário.
[...].”
Assinale-se ainda que o Tribunal já reconheceu que a reserva legislativa parlamentar em matéria de direitos, liberdades e garantias, abrange
“tudo o que seja matéria legislativa, e não apenas as restrições do direito em causa [no caso, o direito ao recurso contencioso]” (Acórdão n.º 128/00, publicado no Diário da República, II Série, n.º 247, de 25 de Outubro de 2000, p. 17331 ss).
A jurisprudência referida viria a ser confirmada no já mencionado Acórdão n.º 255/02, onde se concluiu que “as normas constantes do n.º 1 e do n.º
2 do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 231/98, ao fixarem requisitos de que depende o exercício das diversas profissões ligadas à actividade de segurança privada, se encontram feridas de inconstitucionalidade orgânica por violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 165º da CRP, com referência ao artigo 47º da mesma Lei Fundamental”. Nesse aresto, afirmou-se:
“[...] Dispõe este artigo 47º, n.º 1, que a liberdade de escolha e de exercício da profissão fica sujeita às «restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à sua capacidade». Todavia, como assinala Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional, IV vol., 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 502), «as restrições têm de ser legais», e como a competência para legislar sobre restrições aos direitos, liberdades e garantias pertence exclusivamente ao Parlamento (salvo autorização do Governo), daí decorre a inevitável inconstitucionalidade orgânica das normas em apreço. Para J.J. Gomes Canotilho, no domínio dos direitos fundamentais (mesmo no âmbito dos direitos, liberdades e garantias), «a reserva de lei não possui apenas uma dimensão garantística em face das restrições de direito; ela assume também uma dimensão conformadora-concretizadora desses mesmos direitos» (Direito Constitucional, 5ª ed., Almedina, 1992, pág. 801). Aliás, ainda que se entenda que em algumas das alíneas do n.º 1 e do n.º 2 do mencionado artigo 7º do Decreto-Lei n.º 231/98 se não prevêem verdadeiras e próprias restrições, mas antes se revelam tão-só limites imanentes da liberdade de profissão, a conclusão será sempre idêntica. É que, como vimos, a reserva parlamentar abrange «tudo o que seja matéria legislativa e não apenas as restrições» (Acórdão n.º 128/00, cit., e no mesmo sentido, J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, obra cit., nota VIII ao artigo 168º, pág. 672). Ora, os requisitos enunciados no n.º 1 do artigo 7º são todos eles condições – ainda que nalguns casos, ultrapassáveis sem dificuldade (assim, o requisito da plena capacidade civil) – cujo preenchimento é indispensável para exercer a profissão nele referida, e cuja falta impede, pois, a escolha e o exercício desta. Desde logo pelo seu efeito, tal norma regula matéria legislativa, não se limitando a proteger, promover ou ampliar o exercício da liberdade de escolha de profissão, nem a executar em aspectos de pormenor a regulação do seu exercício
[...].”
8.2. Da leitura das normas constantes dos artigos em análise no presente processo resulta que tais normas não se limitam a regular aspectos de execução do exercício da profissão, antes estabelecem requisitos condicionantes do acesso, do exercício, e da privação do exercício da profissão.
Assim, com efeito:
– o artigo 31º, n.º 2, bem como o artigo 32º, n.º 2, fixam habilitações para o acesso e exercício da profissão, sem as quais os candidatos não poderão ser admitidos como instrutores de condução, subdirector e director de escola de condução;
– o artigo 23º, n.º 1, e o artigo 34º, 2.ª parte, estabelecem impedimentos que vedam o acesso às profissões de instrutor, subdirector e director de escola de condução;
– o artigo 26º, n.ºs 1 e 3, alínea b), assim como o artigo 36º, determinam condições de privação de exercício de profissão, ao fixarem condições de cancelamento e caducidade da licença de instrutor.
Nestes termos, as normas do Decreto-Lei n.º 86/98, de 3 de Abril, em apreciação, ao fixarem requisitos que condicionam o acesso às profissões de instrutor, subdirector e director de escola de condução, ou ao regularem o exercício e a privação do exercício de tais profissões, encontram-se feridas de inconstitucionalidade, por violação da reserva relativa de competência legislativa parlamentar estabelecida na alínea b) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição.
IV A questão da inconstitucionalidade consequente
9. No seu requerimento, o Provedor de Justiça acrescenta que, “declarada a inconstitucionalidade das normas em apreço, hão-de ter-se por consequentemente inconstitucionais todas as normas que apenas devem a sua subsistência àquelas”.
O requerente terá deste modo pretendido requerer ainda que, uma vez declarada a inconstitucionalidade das normas que identificou, fosse, consequentemente, declarada a inconstitucionalidade de todas as normas que apenas a essas devessem a sua subsistência. Tal seria o caso das normas “que prevêem contra-ordenações para a violação das normas impugnadas e as que regulam procedimentos de concessão das licenças para o exercício das profissões em causa”.
A inconstitucionalidade consequente não resulta do confronto directo e imediato de um acto com a Constituição, mas é antes, como ensina Jorge Miranda, “a que inquina certo acto, por inquinar outro de que ele depende” (Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 3.ª ed., Coimbra Editora, 1991, p. 341). J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira chamam-lhe inconstitucionalidade derivada ou reflexa, por ser “produzida pela inconstitucionalidade da norma cuja validade é pressuposto necessário da legitimidade da norma em causa” (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra Editora, 1993, p. 993; cfr. ainda J. J. Gomes Canotilho, Fundamentos da Constituição, Coimbra Editora, 1991, p.
268). Por seu turno, Carlos Blanco de Morais explica que “se um acto depende de outro e este último for inconstitucional, o primeiro também o será por arrastamento, falando-se neste caso em inconstitucionalidade consequente”
(Justiça Constitucional, Tomo I, Coimbra Editora, 2002, p. 193); e, mais adiante, na mesma obra, refere que “a inconstitucionalidade consequente opera em cascata, através da propagação da relação de desvalor de uma norma principal, para as normas dela dependentes” (p. 198).
Ora, quanto a este pedido do requerente, uma questão prévia importa, desde logo, resolver.
Por força do disposto no artigo 51º, n.ºs 1 e 5, da Lei do Tribunal Constitucional, o pedido de fiscalização abstracta da constitucionalidade de normas jurídicas deve especificar, designadamente, as normas cuja apreciação se requer e o Tribunal Constitucional só poderá declarar a inconstitucionalidade de normas cuja apreciação lhe tenha sido requerida.
Vale, assim, aqui o princípio do pedido, tendo o Tribunal Constitucional já considerado que, “como corolário daquele princípio, pertence ao autor do pedido o ónus de identificar, especificando-a, a norma de direito ordinário que pretende ver declarada inconstitucional com força obrigatória geral”, e que está vedada ao Tribunal “a integração do pedido, já que aos requerentes, e só a eles, compete circunscrever o tema a decidir (ne eat judex ultra vel extra petita partium) ” (Acórdão n.º 31/84, publicado no Diário da República, II Série, n.º
91, de 11 de Abril de 1984, p. 1261 ss).
E deve entender-se que o princípio do pedido vale mesmo quando esteja em causa uma eventual declaração de inconstitucionalidade consequente, derivada ou reflexa.
É que, como refere Carlos Blanco de Morais, “o n.º 5 do artigo 51º da Lei do Tribunal Constitucional, à luz do «princípio do pedido», determina que o mesmo Tribunal em sede de fiscalização abstracta sucessiva só possa declarar a inconstitucionalidade consequente de normas cuja apreciação haja sido requerida”, sendo certo que “não pode o Tribunal Constitucional [...] declarar oficiosamente a inconstitucionalidade consequente de normas instrumentais de outras normas já julgadas inconstitucionais, se as primeiras não tiverem sido autonomamente impugnadas” (Justiça Constitucional, cit., p. 199).
Ora, o requerente não identificou as normas que pretendia ver declaradas inconstitucionais a título consequencial. Sublinhe-se, aliás, que o Provedor de Justiça concluiu o seu requerimento pedindo tão somente a
“declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas contidas nos artigos 21º, n.º 1, 23º, n.º 1, 25º, n.ºs 2, 4 e 5, 26º, n.ºs 1 e
3, alínea b), 27º, 31º, n.º 2, 32º, n.º 2, 34º, 2ª parte, e 36º do Decreto-Lei n.º 86/98, de 3 de Abril”.
Nestes termos, por falta de identificação das normas que se pretende impugnar, não pode o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do pedido, nesta parte.
V Decisão
10. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do disposto no artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição, das normas constantes dos artigos 23º, n.º 1, 26º, n.º 1, e n.º 3, alínea b), 31º, n.º 2, 32º, n.º 2, 34º, 2.ª parte, e 36º do Decreto-Lei n.º 86/98, de 3 de Abril
(Aprova o regime jurídico do ensino da condução);
b) Não tomar conhecimento, por inutilidade superveniente, do pedido de declaração de inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos
21º, n.º 1, 25º, n.ºs 2, 4 e 5, e 27º do mesmo diploma;
c) Não tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade consequente das normas, não especificadas no pedido, que devam a sua subsistência às ora declaradas inconstitucionais.
Lisboa, 18 de Novembro de 2003
Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício Paulo Mota Pinto Gil Galvão Carlos Pamplona de Oliveira – vencido quanto à alínea a) -, em parte quanto à alínea b) da decisão, conforme declaração em anexo. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza –vencida quanto à alínea a), nos termos da declaração junta pelo Senhor Conselheiro Bravo Serra. Bravo Serra (vencido, quanto à alínea a) da decisão, nos termos da declaração de voto junta) Luís Nunes de Almeida
DECLARAÇÃO DE VOTO Votei vencido quanto à alínea a) da decisão, por razões muito próximas das enunciadas na declaração de voto do Ex.mo Cons. Bravo Serra. Em meu entender, a matéria em causa não está, por natureza, integrada no capítulo de Direitos, Liberdades e Garantias, razão pela qual não poderá concluir-se, sem mais, que ocorra inconstitucionalidade orgânica das normas em apreço. Quanto à alínea b): concordo com a decisão, mas entendo, não sem algumas dúvidas, que relativamente a normas já revogadas se não justifica, de todo, o mecanismo da fiscalização abstracta sucessiva para determinar a inconstitucionalidade orgânica dessas normas. Cons. Carlos Pamplona de Oliveira
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto ao ponto constante da alínea a) da decisão pela essencialidade das razões que indiquei na declaração de voto que apus ao Acórdão deste Tribunal nº 255/2002, citado no presente aresto, sendo que perfilho a óptica segundo a qual os normativos ora declarados inconstitucionais não se diferenciam substancialmente, quanto à matéria neles regulada, daqueloutras normas que foram objecto de apreciação no mencionado Acórdão nº
255/2002, razão pela qual, no que toca a tais normativos, continuo a defender o mesmo ponto de vista que sufraguei naquela declaração, o que me conduz ao entendimento de que estes últimos, não prescrevendo em matéria de direitos, liberdades e garantias, não se integram na reserva relativa de competência da Assembleia da República. Bravo Serra