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Processo nº 193/2004
3ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A., B. e C., arguidos no proc. n.º 3074/00.OTAGMR-B, do Tribunal Judicial de Guimarães, vieram, “devidamente notificados do, aliás, douto despacho de fls. 13.702 e ss., e não sendo admissível recurso ordinário de tal decisão, por a lei não o prever (cfr. artigo 310° n.º 1 do Código de Processo Penal)”, recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo que o Tribunal aprecie “a inconstitucionalidade do entendimento dado aos n.ºs 1 e 2 do artigo 283º do Código de Processo Penal, pelo douto despacho de pronúncia
– na parte em que intrinsecamente absorve os fundamentos da acusação proferida nos autos, normas que exigem a existência de indícios suficientes para que seja deduzida acusação, ou seja, aqueles indícios de que resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança”.
Em seu entender, a decisão recorrida interpretou tais preceitos “no sentido de que são indícios suficientes a mera contemporaneidade da emissão e uso dos atestados médicos em causa nos autos com a realização das provas que os alunos deviam prestar – exigindo, ainda a apresentação das fichas clínicas como a única forma de afastar aqueles indícios que levaram à acusação”, assim violando o n.º 2 do artigo 32º da Constituição.
Dizem ainda os recorrentes que suscitaram oportunamente a inconstitucionalidade “nos autos, designadamente nos requerimentos de abertura de instrução que ofereceram os arguidos”.
Pelo despacho de 4 de Fevereiro de 2004, de fls. 81, o juiz não admitiu o recurso, nos seguintes termos:
« (...) os arguidos já identificados vieram interpor recurso da decisão de fls.
13.702 e seguintes para o Tribunal Constitucional, pondo em causa a interpretação dada ao artigo 283°, n.º s 1 e 2 acerca do que sejam indícios suficientes, na parte em que 'absorve os fundamentos da acusação proferida nos autos'.
(...) Cumpre apreciar. Em sede de Debate Instrutório datado do dia 14 de Janeiro de 2004, pelas 15h45, foi levantada pelos aqui requerentes a questão da suficiência de indícios para pronunciar o arguido, nomeadamente remetendo para a acusação tais fundamentos, e a inconstitucionalidade de uma tal interpretação das normas processuais penais – nomeadamente dos artigos 97°, n.º 1 e 286, n.º 1 – acta de fls. 13.701 e seguintes. Ora cumpre-nos dizer que, salvo melhor opinião, os aqui requerentes estão a tentar ultrapassar o disposto no artigo 310° do CPP . Com efeito o que os mesmos pretendem é por em causa a consideração de que existem indícios suficientes para levar os arguidos a julgamento e, quanto a este juízo, estão impedidos de recorrer. Os arguidos não podem requerer a inconstitucionalidade de uma decisão mas sim a inconstitucionalidade de uma interpretação de uma norma. Apesar de o virem dizer agora, e invocando o disposto no artigo 283° do CPP o que é certo é que, em sede de Debate, foi levantada a questão da conformidade com a Constituição de uma decisão e não de uma interpretação de uma norma – com efeito no requerimento em causa faz-se referência ao 'Despacho de Pronúncia'. Por outro lado, ainda que assim não se entendesse, a norma a que agora se faz referência nada tem a ver com aquelas invocadas em sede de Debate Instrutório. Falham, assim, os pressupostos de admissão de recurso para o Tribunal Constitucional uma vez que não foi invocada atempadamente a questão da conformidade com a Constituição de determinada norma e, por outro lado, ainda que se entendesse de maneira diferente, a norma invocada anteriormente não é aquela invocada em sede do presente requerimento. Assim sendo, e pelo exposto, decido não admitir os recursos ora apresentados.
(...)»
2. Inconformados, os recorrentes vieram reclamar para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82:
“1. Na sequência da acusação pública formulada contra os arguidos no processo comum singular n.º 404/03.7TAGMR, hoje apenso a estes autos, foi por estes requerida a abertura de instrução em 22 de Outubro de 2003.
2. Realizado o debate instrutório, em 14 de Janeiro do corrente ano, foi proferido despacho de pronúncia contra os arguidos pelos mesmos factos constantes da acusação, a fls. 13.719, 13.722 e 13.727 respectivamente.
3. Atento o teor dos fundamentos que antecederam os despachos em causa, a fls.
13.720, 13.722 e 13.727 dos autos, vieram os arguidos invocar irregularidades nos despachos em questão, por omissão de pronúncia e violação de outros preceitos legais e constitucionais que indicaram.
4. Sobre tais requerimentos e ouvido o Digníssimo Senhor Procurador-Adjunto, recaíram os despachos do Exmo. Senhor Juiz de Instrução, de fls. 13.721, 13.723 e 13.728, que julgou inexistentes as invocadas irregularidades e inconstitucionalidades.
5. Posteriormente, a fls. 13.960 e s. vieram os arguidos recorrer do despacho de pronúncia para o Tribunal Constitucional,
6. e em 29 de Janeiro do corrente para o Tribunal da Relação de Guimarães, dos despachos que julgam inexistentes as arguidas irregularidades.
7. A fls. 13.977 e s. foi proferido pelo Senhor Juiz de Instrução Criminal despacho de não admissão do recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
8. É, pois, deste despacho que se reclama.
(...)”. Conforme justificam, o recurso deveria ser admitido, não só porque entendem que suscitaram devidamente a inconstitucionalidade que pretendem ver apreciada,
“referente aos n.ºs 1 e 2 do artigo 283º do Código de Processo Penal na interpretação que lhe foi dada, sucessivamente, pelos autores dos despachos”,
–chamando a atenção em especial, para o que afirmaram nos artigos 14º e 15º de cada um dos requerimentos de abertura de instrução – mas também porque, ainda que se pudesse entender, diferentemente, que a inconstitucionalidade havia sido atribuída “a uma decisão judicial, sempre o recurso haveria de ser recebido, por força da aplicação directa dos preceitos referentes aos direitos, liberdades e garantias, a que obriga o artigo 18º, n.º 1 da Constituição da República”.
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público veio pronunciar-se no sentido do indeferimento da reclamação, porque “para além de se não mostrar suscitado, durante o processo, e em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para suportar o recurso de fiscalização concreta interposto, verifica-se que, em rigor, o que os reclamantes pretendiam controverter não é qualquer critério normativo específico, de índole geral, subjacente à prolação do despacho de pronúncia, mas antes a valoração judicial casuística das provas produzidas, em termos de integrarem ou não ‘indícios suficientes’ dos factos que lhes eram imputados. Ora, tal matéria, ostensivamente desprovida de natureza ‘normativa’, não constitui naturalmente objecto idóneo de fiscalização da constitucionalidade, o que implica a efectiva inverificação dos pressupostos dos recursos e dita a improcedência da presente reclamação”.
4. O despacho de que os arguidos recorrem para o Tribunal Constitucional, constante de fls. 42 e segs. (correspondentes a fls. 13.702 e segs., no processo original), foi proferido no final da realização do debate instrutório que se realizou na sequência da acusação deduzida pelo Ministério Público, constante de fls. 18 e segs., pela prática de “um crime de uso de atestado falso p. e p. pelos artºs 260º, n.º 4 do Código Penal”, no que toca a B., e, relativamente às outras duas arguidas, pela prática, cada uma, “em autoria material, [de] um crime continuado de uso de atestado falso, p. e p. pelos artºs 260º, n.º 4 e 30º, n.º 2, do Código Penal”.
Conforme se pode ler a fls. 59 (reclamante A.), 62 (reclamante B.) e
67 (reclamante C.), fls. correspondentes, no processo original, respectivamente, a fls. 13.719, 13.722 e 13.727, o despacho de que pretendem recorrer para o Tribunal Constitucional não contém qualquer decisão de pronúncia; em todos os casos, o que o Tribunal se limitou a dizer foi que “será proferido despacho de pronúncia, a final, após a comprovação do cumprimento da injunção determinada aos restantes arguidos”. Não contém, assim, a decisão de pronúncia que os ora reclamantes pretendem impugnar perante o Tribunal Constitucional; e tanto basta para que a sua reclamação seja indeferida.
5. Em qualquer caso, a verdade é que, tal como se afirma no despacho que não admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, os reclamantes não suscitaram “durante o processo”, ou seja, “perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (al. b) do n.º 1 do artigo 70º e n.º 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82, respectivamente), a inconstitucionalidade de qualquer norma contida no artigo
283ºº, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal. Nomeadamente, não o fizeram nos artigos 14º e 15º dos requerimentos de abertura de instrução, como os reclamantes referem no requerimento de fls. 2.
Sustentam os reclamantes, nesse requerimento, que “fácil é, pois, descortinar que o que os arguidos pretenderam com tal afirmação foi invocar a inconstitucionalidade da interpretação dada pelo Digníssimo Representante do Ministério Público ao artigo 283º n.os 1 e 2 do Código de Processo Penal”, até porque “sempre estaria bom de ver que não existe outra norma no mesmo Código que enforme a decisão de produzir acusação final do inquérito”, e que o despacho de pronúncia “absorve nesta parte, ainda que intrinsecamente, os fundamentos da acusação (...)” (pontos 17, 21 e 22 da reclamação).
Estas afirmações, que se não põem em causa, apenas demonstram não existir razão que, no caso presente, dispense os reclamantes do ónus de suscitarem oportunamente a inconstitucionalidade que, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, referem aos n.ºs 1 e 2 do artigo 283º do Código de Processo Penal.
Assim, sempre faltaria um pressuposto indispensável ao conhecimento do objecto do recurso: ter sido suscitada durante o processo, nos termos exigidos pelos preceitos citados, a inconstitucionalidade das normas que os reclamantes pretendem sejam apreciadas pelo Tribunal Constitucional. Como este Tribunal tem reiteradamente afirmado, este requisito da invocação da inconstitucionalidade de uma norma ou de uma sua interpretação durante o processo traduz-se na necessidade de que tal questão seja colocada perante o tribunal recorrido de forma a proporcionar-lhe a oportunidade de a apreciar. Só nos casos excepcionais e anómalos, que aqui manifestamente não ocorrem, em que o recorrente não dispôs processualmente dessa possibilidade, é que será admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal com os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994).
Também por este motivo a reclamação teria de improceder.
6. Finalmente, ainda se acrescenta que não procede de forma alguma a afirmação feita pelos reclamantes de que, ainda que estivessem a atribuir a inconstitucionalidade a uma decisão judicial e não a normas, “sempre o recurso haveria de ser recebido, por força da aplicação directa dos preceitos referentes aos direitos, liberdades e garantias a que obriga o artigo 18º n.º 1 da Constituição da República” (ponto 28. da reclamação).
Com efeito, o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas destina-se a que este Tribunal aprecie a conformidade constitucional de normas, ou de interpretações normativas, que foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida, não obstante ter sido suscitada a sua inconstitucionalidade “durante o processo” (al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82), e não das próprias decisões que as apliquem. Assim resulta da Constituição e da lei, e assim tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal (cfr. a título de exemplo, os Acórdãos nºs 612/94, 634/94 e 20/96, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 11 de Janeiro de 1995, 31 de Janeiro de 1995 e 16 de Maio de 1996).
A reclamação nunca poderia, pois, ser deferida.
Nestes termos, indefere-se a reclamação do despacho de não admissão de recurso. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 18 ucs por cada um, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Lisboa, 1 de Abril de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Luís Nunes de Almeida