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Proc. n.º 40/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., Juiz de Direito, interpôs recurso contencioso para o Supremo Tribunal de Justiça da deliberação do Conselho Superior da Magistratura de 21 de Janeiro de 1997, que lhe aplicou a pena de aposentação compulsiva (fls. 3 e seguintes).
Na petição respectiva sustentou, entre o mais, que os artigos 82º, 85º, n.º 1, alínea f), e 95º, todos do Estatuto dos Magistrados Judiciais, são inconstitucionais, “por violação do disposto nos arts. 2º, 18º/2, 29º/1, 47º/1 e
2, 53º e 266º/1 e 2 da CRP, na versão em vigor ao tempo da prática da deliberação recorrida e do princípio segundo o qual as normas de direito disciplinar que prevejam medidas expulsivas têm de conter um grau de precisão tal que permita identificar o tipo de comportamentos a que elas podem aplicar-se” (fls. 5), bem como que “[o] art. 82º do EMJ, se interpretado no sentido de que a divulgação pública de pensamentos e opiniões por Magistrados constitui infracção disciplinar, é manifestamente inconstitucional por violação do art. 37º da CRP, traduzindo-se ainda no exercício de censura, proibida pela nossa Lei Fundamental” (fls. 7).
O representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça emitiu parecer no sentido de que o recurso era legalmente inadmissível e padecia de inutilidade superveniente, uma vez que a deliberação que dele era objecto transitara em julgado em 5 de Março de 1998 e, além disso, o recorrente já fora desligado do serviço para efeitos de aposentação (fls. 72 e seguinte).
Notificado para se pronunciar sobre estas questões prévias, veio o recorrente dizer, entre o mais, que a deliberação recorrida era nula, sendo a nulidade invocável a todo o tempo por qualquer interessado, bem como que mantinha todo o interesse na apreciação do mérito do recurso (fls. 75 e seguintes).
Por despacho do relator no Supremo Tribunal de Justiça (fls. 90 e seguinte), foram as questões prévias julgadas improcedentes e ordenado o prosseguimento do recurso.
Posteriormente, veio o Conselho Superior da Magistratura apresentar a resposta ao recurso (fls. 94 e seguintes), na qual sustentou nomeadamente que transitara em julgado a deliberação que aplicara ao recorrente a sanção disciplinar de aposentação compulsiva, bem como que improcediam as questões de inconstitucionalidade suscitadas pelo recorrente.
Nas alegações que produziu (fls. 100 e seguintes), o recorrente reiterou as afirmações sobre a inconstitucionalidade dos artigos 82º, 85º, nº 1, alínea f), e 95º do Estatuto dos Magistrados Judiciais “por violação do disposto nos arts. 2º, 18º/2, 29º/1, 47º/1 e 2, 53º e 266º/1 e 2 da CRP, na versão em vigor ao tempo da prática da deliberação recorrida e do princípio segundo o qual as normas de direito disciplinar que prevejam medidas expulsivas têm de conter um grau de precisão tal que permita identificar o tipo de comportamentos a que elas podem aplicar-se”.
O Conselho Superior da Magistratura sustentou novamente, nas contra-alegações (fls. 135 e seguintes), que o recurso devia ser julgado improcedente.
No mesmo sentido se pronunciou, no seu visto final, o representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça (fls. 142 e seguinte).
2. Por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Dezembro de 2002
(fls. 153 e seguintes), foi negado provimento ao recurso contencioso.
Quanto à alegada “inconstitucionalidade dos art°s 82° 85° n° 1 al. f) 95º do EMJ 85 por suposta violação do disposto nos artºs 2º, 18º nº 2, 29º nº
1, 47º nºs 1 e 2, 53º e 266° nºs 1 e 2 da CRP na versão de 89”, lê-se nesse acórdão:
“[...] O conceito de infracção disciplinar encontra-se genericamente contemplado no art° 82° do EMJ 85, nos termos do qual «constituem infracção disciplinar os factos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos deveres profissionais e os actos ou omissões da sua vida pública ou que nela se repercutam incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções». É, ademais, hoje incontroversa a relevância disciplinar dos actos da vida privada do magistrado que se repercutam negativamente na dignidade, prestígio e decoro do exercício do seu múnus profissional. Tal norma do artº 82° do EMJ 85 apenas pretende estatuir-prever a relevância disciplinar da violação dos deveres específicos que impendem sobre a categoria estatutária dos magistrados judiciais, sendo que a violação dos deveres gerais que recaem sobre todo e qualquer servidor público (v.g. o dever de correcção e de respeito para com os seus pares e superiores hierárquicos) se encontra abstractamente prevista no artº 3° do EDF 84. Abrange, pois, nessa previsão, toda uma panóplia de tipos de infracção disciplinar sem determinação da sanção a aplicar, isto é, sem qualquer tipificação concreta; essa concretização em termos de tipicidade de comportamentos censuráveis e respectiva gradação é efectuada pelos artigos subsequentes. Dentro deste espírito, não se mostra, desde logo, como possa o artº 85° do EMJ
85 – ao sujeitar os magistrados judiciais à pena de aposentação compulsiva (al. f) – enfermar «a se» de qualquer inconstitucionalidade material; tal diploma, aprovado pela Assembleia da República no uso da sua competência própria, contém
– teria necessariamente de conter e prever – uma escala de penas determinada e graduada, em função e pela correspondência da gravidade das infracções cometidas, assim salvaguardando os princípios constitucionais da legalidade, da justiça e da proporcionalidade (adequação) contemplados nos artºs 2° e 266° da CRP. Estabelece esse preceito o elenco das escalas das penas aplicáveis aos magistrados judiciais pela prática de infracções disciplinares, sendo que a concreta eleição de uma qualquer dessas penas é operada pelo órgão detentor do poder disciplinar por reporte, além do mais, à natureza e gravidade da infracção cometida (conf. respectivo art° 96°). Isto sendo sabido que na emissão do juízo qualificativo desses tipos infraccionais e na dosimetria concreta da pena a autoridade administrativa goza de uma ampla margem de liberdade de apreciação e avaliação, materialmente incontrolável pelos órgãos jurisdicionais, porque dependente de critérios ou factores impregnados de acentuado subjectivismo e, como tais, por sua natureza, imponderáveis; tudo isto salva a preterição de critérios (legais) estritamente vinculados ou ainda a comissão de erro palmar, manifesto ou grosseiro [...]. Assim, nos artºs 91° a 95° do EMJ, delimita-se e precisa-se o campo de aplicação de cada uma das penas disciplinares estatutariamente previstas. [...] Prevêem-se n[o] n° 1 do artº 95° do EMJ 85 quatro situações-quadro passíveis da aplicação das penas de aposentação compulsiva e de demissão, o que não deixa de constituir uma concreta tipificação dos pressupostos de facto e de direito susceptíveis de sancionamento com as referidas penas de natureza expulsiva. E, evidentemente, como não podia deixar de ser, no mesmo se fixaram as situações-limite em que o magistrado arguido se encontre incurso e que, pelo seu acentuado grau de gravidade, sejam subjectiva e objectivamente consideradas como comprometedoras, de modo irremediável, da subsistência da relação funcional
(conf. art° cit. n° 1 do artº 26° do EDF 84). Tudo numa relação «facto-dever» que, em derradeira «ratio», tem que ter presente a necessidade de salvaguarda dos superiores valores do prestígio, dignidade, decoro e credibilidade da função judicial, e da necessária confiança do público em geral e dos operadores e utentes em especial, na seriedade e eficácia dos administradores da justiça. Não se diga, em contrário, que tais preceitos, mormente o citado artº 82° do EMJ
85, representem uma mera norma «aberta» ou «em branco» desprovida de qualquer grau de tipicização, sempre de exigir no âmbito do direito sancionatório.
[...] Na esteira do obtemperado pela entidade recorrida, «aceita-se que as normas que regulam o direito disciplinar devam ter um ‘mínimo de determinabilidade’ quando se trate de sanções disciplinares de carácter expulsivo, na medida em que afectam o direito de acesso à função pública, segurança no emprego e ao trabalho
(art°s 47°, 53° e 58° da CRP). Mas não se torna necessária nem exigível uma tipificação exaustiva de todos os comportamentos dos magistrados judiciais susceptíveis de serem sancionados com tais medidas. E a previsão do art° 95° do EMJ determina com razoabilidade as quatro situações-quadro onde se podem integrar os comportamentos sancionáveis com tais medidas e permitem a um magistrado – a quem é exigível compreensão dos deveres e um sentido ético e de dignidade acima do comum dos cidadãos – saber discernir que factos, comportamentos ou actos concretos podem levar à aplicação de tais medidas»
(sic). De qualquer modo, sempre se dirá que as infracções disciplinares – contra o que sucede em direito criminal – não se encontram sujeitas a uma tipicização absoluta como parece sugerir o recorrente. Com efeito, os deveres funcionais, são, na sua maioria, inominados, isto é, não individualizados e tipicizados, não se fazendo assim a determinação dos factos disciplinarmente ilícitos ou dos elementos que permitam uma tipicização definida [...]. Como ensinava Marcello Caetano, in «Manual de Direito Administrativo», vol. II,
2ª ed., pág. 786, «é disciplinarmente ilícita qualquer conduta do agente que transgrida a concepção dos deveres funcionais válida para as circunstâncias concretas da sua posição de actuação. E, mais adiante: «pode normalmente ser qualificada como infracção disciplinar qualquer conduta de um agente que caiba na definição legal: a infracção disciplinar é atípica». Na hipótese vertente – há que assinalá-lo – todas as condutas com relevância disciplinar em que o arguido incorreu – aliás de forma reiterada como vem dado como provado – poderiam, no fundo, ter sido (subsidiariamente) reconduzidas no articulado acusatório ao quadro típico genérico (não taxativo, mas meramente exemplificativo) dos nºs 1 e 2 a) do art° 26° do EDF 84; isto é, ao quadro de infracções inviabilizadoras da manutenção da relação funcional, já que as penas em tais disposições previstas poderiam ser («nomeadamente» segundo a própria expressão da lei) aplicadas aos funcionários e agentes que injuriarem ou desrespeitarem gravemente «superior hierárquico, colega, subordinado ou terceiro» (sic).
Óbvia se torna, por seu turno e ainda, a previsão legal «anterior» dos comportamentos censuráveis imputados ao arguido, ora recorrente, pelo que não se mostra infringido o princípio da legalidade genericamente contemplado no n° 1 do artº 29° da CRP. Improcede pois a invocação de ausência de tipicidade. Assim como carecem de fundamento as supostas ofensas ao núcleo fundamental dos invocados «direitos fundamentais» por parte dos preceitos da lei ordinária supra-citados e postos em crise pelo ora recorrente. Tudo sem antes se dizer, a propósito desses direitos e princípios fundamentais, que os mesmos não possuem uma natureza absoluta ou irrestrita, contendo antes limites imanentes explícitos e implícitos, muito menos podendo ser deixada a interpretação do seu cerne ou âmago ao livre alvedrio da entidade sancionadora ou do próprio arguido. Limites e restrições essas que o próprio texto da CRP expressamente prevê no n° 2 do seu artº 18°. A própria legislação ordinária comina sanções penais para o abuso ou uso doloso desses direitos e deveres – conf. v.g. o artº 408° do CP 82 – assim acolhendo claramente a existência de limites imanentes implícitos [...]. Deste modo, a deliberação punitiva em causa possui assento válido no artºs 82° e
95° do EMJ , não violando, assim, os preceitos constitucionais enumerados na conclusão 1ª do recurso.
[...] Alegada violação do direito (liberdade) de expressão do pensamento e do direito (liberdade) de criação intelectual. Não se descortina em que é que a actuação disciplinar do Conselho, que culminou com a prolação do acto administrativo em apreço, se perfile como coarctador do direito do recorrente à liberdade de expressão e de divulgação do seu pensamento e à criação intelectual consagrados nos artºs 37° e 42° da Constituição.
[...].”
3. Deste acórdão recorreu A. para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação das normas dos artigos 82º, 85º, n.º 1, alínea f), e
95º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, que seriam “claramente inconstitucionais, por violação do disposto nos arts. 2º, 18º/2, 29º/1, 47º/1 e
2, 53º e 266º/1 e 2 da CRP, na versão em vigor ao tempo da prática da deliberação recorrida e do princípio segundo o qual as normas de direito disciplinar que prevejam medidas expulsivas têm de conter um grau de precisão tal que permita identificar o tipo de comportamentos a que elas podem aplicar-se” (fls. 181 e seguinte).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 185.
4. Nas alegações que apresentou no Tribunal Constitucional (fls. 187 e seguintes), concluiu assim o recorrente:
“1ª- Os arts. 82°, 85°/1/f) e 95° do EMJ são claramente inconstitucionais, por violação do disposto nos arts. 2°, 18°/2, 29°/1 , 47°/1 e 2, 53° e 266°/1 e 2 da CRP, na versão em vigor ao tempo da prática da deliberação recorrida e do princípio segundo o qual as normas de direito disciplinar que prevejam medidas expulsivas têm de conter um grau de precisão tal que permita identificar o tipo de comportamentos a que elas podem aplicar-se (v. Ac TC n° 666/94, de
14.12.1994, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29°– 1994, págs. 349 e segs.) .
2ª- A norma do art. 82° do EMJ é uma norma completamente aberta, pois considera infracção disciplinar «os actos ou omissões da sua vida pública ou que nela se repercutam incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções».
3ª- Por seu turno, o art. 95°/1/b) do EMJ permite a aplicação da pena de aposentação compulsiva «quando o magistrado revele falta de honestidade ou tenha conduta moral ou desonrosa».
4ª- As normas citadas não permitem assim minimamente a um magistrado saber que factos ou actos concretos poderão integrar infracção disciplinar e conduzir à sua demissão ou aposentação compulsiva.
5ª- Em face da inconstitucionalidade e inaplicabilidade ao caso sub judice dos arts. 82° e 95° do EMJ, inexiste qualquer norma jurídica válida que permitisse à entidade recorrida punir disciplinarmente o recorrente e aposentá-lo compulsivamente.
6ª- O acórdão recorrido enferma de erro de julgamento ao não considerar inconstitucionais as normas em causa.
7ª- O acto recorrido puniu o recorrente por factos praticados no exercício do seu direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento e da sua liberdade de criação intelectual, consagrados nos arts. 37° e 42° da CRP.
9ª- O art. 82° do EMJ, se interpretado no sentido de que a divulgação pública de pensamentos e opiniões por Magistrados constitui infracção disciplinar, é manifestamente inconstitucional por violação do art. 37° da CRP, traduzindo-se ainda no exercício de censura, proibida pela nossa Lei Fundamental.
10ª- O acórdão recorrido devia ter considerado inconstitucionais estes preceitos, enfermando de erro ao não fazê-lo.”
Nas contra-alegações (fls. 204 e seguintes), sustentou o Conselho Superior da Magistratura, em síntese, o seguinte:
- “[T]endo o arguido recorrido judicialmente da deliberação que o sancionou com medida expulsiva, aqui em causa, e tendo transitado em julgado a decisão judicial, precludido fica o conhecimento de todas as questões que a mesma deliberação possa suscitar”;
- “[P]or força do trânsito da referida deliberação punitiva e dando-lhe execução, cessou há muito o pagamento do vencimento ao recorrente, cessou funções no tribunal onde se encontrava e não mais foi colocado em outro tribunal”;
- Não são inconstitucionais as normas dos artigos 82º, 85º, n.º 1, alínea f), e 95º do Estatuto dos Magistrados Judiciais;
- Nunca o Conselho Superior da Magistratura coarctou ou quis coarctar a liberdade de expressão, de divulgação do pensamento e de criação cultural do recorrente. Cumpre apreciar.
II
5. Nas contra-alegações, suscita o recorrido duas questões prévias que já foram apreciadas no processo: reconduzem-se elas à questão do caso julgado da deliberação que aplicou ao recorrente a pena de aposentação compulsiva e à da inutilidade do presente recurso (supra, 1.; cfr. despacho de fls. 90 e seguinte).
Independentemente do problema de saber se tal apreciação judicial precludiu, por força das regras do caso julgado formal, a possibilidade de nova apreciação das mesmas questões pelo Tribunal Constitucional, a verdade é que o Tribunal Constitucional não tem competência para determinar se a deliberação em causa tem força de caso julgado material, se a nulidade de que alegadamente padece é ou não invocável a todo o tempo ou se o recurso contencioso de que emergiram os presentes autos se repercute ou não no estatuto jurídico-funcional do recorrente (e, portanto, se tem ou não utilidade).
Com efeito, as questões colocadas pelo recorrido não dizem respeito à decisão aqui sob recurso, mas a uma decisão anterior – a deliberação do Conselho Superior da Magistratura que aplicou ao recorrente a pena de aposentação compulsiva. Não pode, por isso, o Tribunal Constitucional, tomar conhecimento das mencionadas questões prévias.
6. As normas cuja constitucionalidade o recorrente impugna inserem-se no Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, e têm o seguinte teor:
“Artigo 82º
(Infracção disciplinar) Constituem infracção disciplinar os factos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos deveres profissionais e os actos ou omissões da sua vida pública ou que nela se repercutam incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções.”
“Artigo 85º
(Escala de penas)
1 – Os magistrados judiciais estão sujeitos às seguintes penas:
[...] f) Aposentação compulsiva;
[...]”.
“Artigo 95º
(Penas de aposentação compulsiva e de demissão)
1 – As penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis quando o magistrado: a) Revele definitiva incapacidade de adaptação às exigências da função; b) Revele falta de honestidade ou tenha conduta imoral ou desonrosa; c)Revele inaptidão profissional; d) Tenha sido condenado por crime praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres a ela inerentes.
2 – Ao abandono de lugar corresponde sempre a pena de demissão.”
7. Comecemos por averiguar se é possível conhecer de todas as questões colocadas pelo recorrente.
Analisando o texto da decisão recorrida (supra, 2.), verifica-se que nem todas as normas constantes dos preceitos transcritos foram aplicadas.
Assim, tendo o ora recorrente sido punido com a pena de aposentação compulsiva, por ter praticado factos incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções como magistrado judicial, torna-se evidente que na decisão recorrida não foram aplicadas as normas do artigo 95º, n.º s 1, alíneas a), c) e d), e 2.
O próprio recorrente, quando disserta sobre a inconstitucionalidade do artigo 95º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (supra, 4.), particulariza a norma do artigo 95º, n.º 1, alínea b). De todas as normas constantes do artigo
95º, só esta foi, na verdade, aplicada na decisão recorrida.
Relativamente ao artigo 82º, é também claro que não está agora em causa a parte deste preceito que se refere aos “factos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos deveres profissionais”, mas aqueloutra que se refere a actos ou omissões da vida pública dos magistrados, ou que nela se repercutam, e que sejam incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções. É o próprio recorrente, aliás, que acaba por restringir o objecto do recurso a esta parte do preceito
(cfr. conclusão 2ª das suas alegações: supra, 4.).
Apenas podem, assim, constituir objecto do presente recurso as normas dos artigos 82º, 2ª parte, 85º, n.º 1, alínea f), e 95º, n.º 1, alínea b), todos do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85, de
30 de Julho.
8. A primeira questão de inconstitucionalidade colocada pelo recorrente reporta-se à norma do artigo 82º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, na interpretação segundo a qual “a divulgação pública de pensamentos e opiniões por Magistrados constitui infracção disciplinar”, por entender que tal norma viola o artigo 37º da Constituição e traduz exercício proibido de censura.
O problema suscitado prende-se, desde logo, com a questão de saber se existem limites constitucionais à liberdade de expressão e com a questão de saber se é constitucionalmente admissível que a repressão dos abusos da liberdade de expressão se faça, não através de sanções de natureza penal, mas de sanções de outra natureza, nomeadamente disciplinares.
O Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se pronunciar sobre estas questões, retomando aliás jurisprudência da Comissão Constitucional.
No Acórdão n.º 81/84 (publicado no Diário da República, II Série, n.º 26, de 31 de Janeiro de 1985, p. 1025), a propósito dos artigos 154º, n.º 1, e 155º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o Tribunal começou por esclarecer que “a liberdade de expressão [...] não é um direito absoluto nem ilimitado” e que, não obstante o artigo 37º, n.º 2, da Constituição proibir toda a forma de censura, “é lícito reprimir os abusos da liberdade de expressão”.
E acrescentou:
“O art. 37º [da Constituição da República Portuguesa] aponta [...] no sentido de que se não devem permitir limitações à liberdade de expressão, para além das que forem necessárias à convivência com outros direitos, nem impor sanções que não sejam requeridas pela necessidade de proteger os bens jurídicos que, em geral, se acham a coberto da tutela penal, mas não impede que o legislador organize a tutela desses bens jurídicos, lançando mão de sanções de outra natureza (civis, disciplinares...).
Não terá, assim, que haver apenas sanções criminais.
É que o direito criminal deve limitar-se à tutela de bens jurídicos essenciais para a livre realização e desenvolvimento em comunidade da personalidade de cada homem. Só deve intervir quando os meios não criminais da política social se mostrem insuficientes para tutela daqueles bens jurídicos. Dizendo de outro modo: só deverá recorrer-se a sanções penais para tutelar os bens jurídicos mais importantes e fazer frente aos ataques mais graves. As sanções penais surgem, assim, como ultima ratio. É o princípio da subsidiariedade ou – como se expressa certa doutrina – o princípio da liberdade máxima - intervenção mínima [...].
A política criminal deve orientar-se por critérios de racionalidade. Só deve, por isso, ir-se pela via das sanções criminais quando elas possam ser minimamente eficazes. Devem, com efeito, adoptar-se soluções que conduzam a maximizar o conformismo e os ganhos sociais e a minimizar os custos.
[...]
Por consequência, nenhuma razão existe para que se não entenda agora também, com a Comissão Constitucional, que o art. 154º, nº 1, do Código de Processo Civil não prevê qualquer forma de censura, sim uma medida disciplinar, cuja aplicação o texto constitucional não proíbe”.
A fundamentação utilizada pelo Tribunal Constitucional no acórdão acabado de citar é perfeitamente transponível para o caso dos autos, sendo certo que está agora em causa a instauração de um processo disciplinar que se fundamenta em declarações proferidas – e nos termos em que o foram – a propósito da solução consagrada no actual artigo 217º da Constituição quanto ao exercício do poder disciplinar relativamente aos magistrados judiciais através de um órgão autónomo (o Conselho Superior da Magistratura).
9. A tese da inconstitucionalidade sustentada pelo recorrente – relacionada com o “grau de precisão” quanto ao tipo de comportamentos a que se aplicam as normas impugnadas no presente recurso – alicerça-se na doutrina do Tribunal Constitucional constante dos Acórdãos n.º s 666/94, de 14 de Dezembro
(publicado no Diário da República, II Série, n.º 47, de 24 de Fevereiro do 1995, p. 2235) e 91/01, de 13 de Março (publicado no Diário da República, II Série, n.º 21, de 25 de Janeiro de 2002, p. 1607).
9.1. No primeiro desses acórdãos, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma do artigo 23º do Regulamento Disciplinar, aprovado pelo Decreto de 22 de Fevereiro de 1913, podendo ler-se no respectivo texto, para o que aqui releva, o seguinte:
“[...]
5. O Regulamento Disciplinar de 1913 [...] define, no artigo 5º, o que seja infracção disciplinar. No artigo 6º, enumera as penas disciplinares aplicáveis
(a saber: advertência, repreensão verbal ou por escrito, repreensão publicada em ordem de serviço ou no Diário da República, multa até 15 dias de vencimento, afastamento do serviço para outro análogo, suspensão de exercício e vencimento de mais de 30 até 180 dias, inactividade de 1 a 2 anos com metade do vencimento da categoria ou sem vencimento algum, regresso à categoria imediatamente inferior e demissão), e nos seus §§ 1º a 4º, os respectivos efeitos. Nos artigos
7º e 8º, enuncia, respectivamente, as circunstâncias agravantes e atenuantes. Nos artigos 10º e 13º, define a competência para a aplicação das penas disciplinares. Nos artigos 17º a 22º, aponta os factos a que são aplicáveis as diferentes penas disciplinares. E, finalmente, no artigo 23º, dispõe sobre as infracções disciplinares não especificadas. Preceitua-se nesse artigo 23º: As infracções não especificadas nos artigos antecedentes são punidas do mesmo modo e em proporção da sua gravidade ou do dano por elas causado. Este artigo 23º preceitua pois, que, a par das infracções disciplinares tipificadas nos artigos anteriores (recte, nos artigos 17º a 22º), existem infracções disciplinares atípicas, puníveis com as mesmas penas das infracções disciplinares típicas, devendo, na escolha da medida disciplinar a aplicar em cada caso, observar-se um critério de proporcionalidade, atendendo-se, para tanto, à «gravidade» e ao «dano causado» pela infracção.
É, assim, um preceito aberto, no qual cabem todos os comportamentos que violem deveres funcionais por qualquer modo não especificado nos artigos 17º a 22º. E mais: a entidade com competência para aplicar as penas disciplinares tem de escolher uma de entre o arsenal de sanções possíveis, dizendo-lhe o legislador tão-somente que, nessa escolha, deve agir com sentido de medida, ponderando a
«gravidade» do comportamento e o «dano» por ele causado. A norma sub iudicio não define, pois, minimamente que seja, as infracções disciplinares que cabem no seu âmbito, nem as sanções a aplicar por cada uma delas. Será isto constitucionalmente admissível?
[...]
8. A regra da tipicidade das infracções, corolário do princípio da legalidade, consagrado no nº 1 do artigo 29º da Constituição (nullum crimen, nulla poena, sine lege), só vale, qua tale, no domínio do direito penal, pois que, nos demais ramos do direito público sancionatório (maxime, no domínio do direito disciplinar), as exigências da tipicidade fazem-se sentir em menor grau: as infracções não têm, aí, que ser inteiramente tipificadas. Simplesmente, num Estado de Direito, nunca os cidadãos (cidadãos-funcionários incluídos) podem ficar à mercê de puros actos de poder. Por isso, quando se trate de prever penas disciplinares expulsivas – penas, cuja aplicação vai afectar o direito ao exercício de uma profissão ou de um cargo público
(garantidos pelo artigo 47º, nºs 1 e 2) ou a segurança no emprego (protegida pelo artigo 53º) –, as normas legais têm que conter um mínimo de determinabilidade. Ou seja: hão-de revestir um grau de precisão tal que permita identificar o tipo de comportamentos capazes de induzir a inflicção dessa espécie de penas – o que se torna evidente, se se ponderar que, por força dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, elas só deverão aplicar-se às condutas cuja gravidade o justifique (cf. artigo 18º, nº 2, da Constituição). No Estado de Direito, as normas punitivas de direito disciplinar que prevejam penas expulsivas, atenta a gravidade destas, têm de cumprir uma função de garantia. Têm, por isso, que ser normas delimitadoras.
É que, a segurança dos cidadãos (e a correspondente confiança deles na ordem jurídica) é um valor essencial no Estado de Direito, que gira em torno da dignidade da pessoa humana – pessoa que é o princípio e o fim do Poder e das instituições (cf. artigos 2º e 266º, nºs 1 e 2, da Constituição).
9. Da norma sub iudicio resulta que «todo o acto ou omissão contrário aos deveres profissionais do funcionário, e designadamente a prática de actos de manifesta hostilidade contra a República ou ofensivos da sua Constituição, a inobservância das disposições legais e das ordens a que estiver sujeito o serviço público respectivo [...]» (assim define infracção disciplinar o artigo
5º do Regulamento), que não estiverem especificados nos artigos 17º a 22º, são puníveis com alguma das penas enumeradas no artigo 6º (maxime, com a pena de demissão). A escolha da pena a aplicar comete-a a norma aqui sob exame à entidade com competência disciplinar, sem lhe fornecer outro critério (designadamente, para o efeito de ela se decidir pela aplicação da pena de demissão), que não seja o de que deve observar uma regra de proporcionalidade, ponderando a «gravidade» do comportamento e o «dano» por ele causado. Dizendo de outro modo: a norma sub iudicio – a mais que o apelo para o conceito de infracção disciplinar, fornecido pelo artigo 5º do Regulamento – não contém uma caracterização minimamente precisa dos comportamentos a que se aplica. E, com vista à escolha da sanção a aplicar (ainda que esta seja a pena de demissão), não fornece senão o critério geral que se acabou de apontar. Assim sendo, a norma em causa não fornece à entidade com competência disciplinar um critério de decisão que lhe permita agir com segurança no momento de avaliar este ou aquele comportamento desviante. Do mesmo passo, não possibilita, em termos razoáveis, o controlo judicial das decisões assim tomadas – o que tudo significa que ela não defende os seus destinatários contra o arbítrio. Ou seja: não contendo um mínimo de delimitação, não cumpre, como devia, a função de garantia. A norma do artigo 23º do Regulamento Disciplinar, aprovado pelo Decreto de 22 de Fevereiro de 1913, viola, pois, o princípio – que se extrai das disposições conjugadas dos artigos 2º, 18º, nº 2, 29º, nº 1, 47º, nºs 1 e 2, 53º, e 266º, nºs 1 e 2, da Constituição – segundo o qual as normas de direito disciplinar que prevejam medidas expulsivas (maxime, a pena de demissão) têm que conter um grau de precisão tal que permita identificar o tipo de comportamentos a que elas podem aplicar-se.
[...].”
Da leitura do trecho transcrito resulta, com toda a evidência
(apesar de o recorrente afirmar o contrário: cfr. fls. 189), que nenhuma analogia existe entre a norma apreciada no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 666/94, de 14 de Dezembro, e as normas que constituem o objecto do presente recurso.
Enquanto o artigo 23º do mencionado Regulamento Disciplinar de 1913 não continha uma caracterização minimamente precisa dos comportamentos a que se aplicava, as normas que constituem o objecto do presente recurso fornecem critérios de apreciação das condutas susceptíveis de constituírem infracção disciplinar. Assim, o artigo 82º do Estatuto dos Magistrados Judiciais só considera relevantes os actos e omissões da vida pública ou que se repercutam na vida pública do magistrado (de fora ficando, portanto, tudo o que não extravase a vida privada do magistrado) e que, ao mesmo tempo, afectem a imagem digna que a magistratura deve ter.
Certamente que o preceito em causa apela a conceitos indeterminados. Mas isso não significa ausência de critérios de decisão ou insindicabilidade judicial desses critérios. Significa apenas que a lei confere ao aplicador do direito uma certa margem de manobra no preenchimento desses critérios, precisamente porque reconhece que é impossível elencar exaustivamente os comportamentos públicos susceptíveis de afrontar a dignidade da magistratura.
Uma situação completamente diferente, portanto, daquela sobre a qual versou o citado Acórdão n.º 666/94. Como tal, a doutrina deste acórdão pode ser aplicada ao presente caso, sem que daí decorra qualquer juízo de inconstitucionalidade.
9.2. Relativamente ao segundo acórdão do Tribunal Constitucional apontado pelo recorrente (o Acórdão n.º 91/01, de 13 de Março) – que “julgou inconstitucionais, por violação do princípio que se extrai dos artigos 2º, 18º, n.º 2, 29º, n.º 1, 47º, 53º e 266º da Constituição, a norma constante do artigo
94º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de Junho [...], e a que consta do artigo 75º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho, [...]”, nele se disse, para o que aqui releva, o seguinte:
“[...] A dispensa do serviço implica, assim, que o militar, a quem tal medida for aplicada, tem que deixar a Guarda Nacional Republicana, que o mesmo é dizer o
«exercício efectivo de cargos e funções próprias do posto nos casos e condições previstos»; perde os direitos de militar da Guarda (salvo o direito à pensão de reforma); e é abatido aos quadros. Tal medida é aplicada, com observância de todas as garantias de defesa, em processo próprio de dispensa do serviço ou em processo disciplinar, aos militares da Guarda cujo comportamento «indicie notórios desvios dos requisitos morais, éticos, técnico-profissionais ou militares que lhe são exigidos pela sua qualidade e função», ou seja, que revelem não possuir «bom comportamento militar e cívico, espírito militar ou aptidão técnico-profissional».
[...] Há-de convir-se, no entanto, que, ao mandar aplicar a medida de dispensa de serviço a «factos que levam à invocação da falta» de «bom comportamento moral e cívico», de «espírito militar» ou de «aptidão técnico-profissional» (cf. os nºs
1 e 2, do citado artigo 75º) – é dizer: que levam à conclusão de que «o comportamento do militar» indicia «notórios desvios dos requisitos morais,
éticos, técnico-profissionais ou militares que lhe são exigidos pela sua qualidade e função» (cf. o nº 2 do mencionado artigo 94º) –, as normas sub iudicio não cumprem aquele mínimo de determinabilidade que é de exigir a normas legais que prevejam a aplicação de penas disciplinares expulsivas. E, desse modo, tais normas violam o princípio que se extrai das disposições conjugadas dos artigos 2º, 18º, nº 2, 29º, nº 1, 47º, 53º e 266º da Constituição [...].
[...] As normas sub iudicio, mandando aplicar a medida de dispensa de serviço a comportamentos que indiciem «notórios desvios dos requisitos morais, éticos, técnico-profissionais ou militares que lhe são exigidos pela sua qualidade e função» (artigo 94º, nº 2) – é dizer: a factos que levem «à invocação de falta» de «bom comportamento militar e cívico», de «espírito militar» ou de «aptidão técnico-profissional» – não fornecem, pois, à entidade com competência para aplicar tal medida «um critério de decisão que lhe permita agir com segurança no momento de avaliar este ou aquele comportamento desviante», do mesmo modo que
«não possibilitam, em termos razoáveis, o controlo judicial das decisões assim tomadas – o que tudo significa que não defendem os seus destinatários contra o arbítrio» [...]. Não cumprindo tais normas, em termos razoáveis, a função de garantia, elas são inconstitucionais, por violação do princípio que atrás se indicou.
[...].”
As normas sobre as quais recaiu o acórdão acabado de transcrever apresentam certamente mais afinidades com as que constituem o objecto do presente recurso do que aquelas a que se referia o acima mencionado Acórdão n.º
666/94, de 14 de Dezembro.
No entanto, continua a não existir analogia entre elas. Enquanto em relação às normas dos artigos 94º da Lei Orgânica da GNR e 75º do Estatuto dos Militares da GNR ainda podia questionar-se se conteriam ou não critérios de decisão precisos (em suma, o seu carácter determinado ou indeterminado), relativamente às normas cuja apreciação o ora recorrente pretende é evidente que elas restringem o tipo de factos susceptíveis de constituírem infracção disciplinar. Trata-se apenas de factos relacionados com a vida pública do magistrado e que colidem com a imagem de dignidade associada à magistratura: é o que resulta da letra do artigo 82º do Estatuto dos Magistrados Judiciais e do espírito do artigo 95º, n.º 1, alínea b) (uma vez que este preceito deve, por razões sistemáticas, articular-se com aqueloutro).
Nesta medida, existem claros parâmetros a respeitar aquando da aplicação de uma pena disciplinar e é notória a sua objectividade. Ainda que, como se disse, seja necessário preencher conceitos indeterminados como “vida pública” ou “dignidade indispensável ao exercício da função de magistrado”, a verdade é que são esses e não outros quaisquer conceitos indeterminados a preencher.
Não tem, pois, razão o recorrente quando afirma que, face às normas sub judice, “qualquer acto ou omissão poderá ser considerado incompatível com a dignidade indispensável ao exercício de funções de magistrado, e qualquer facto
é susceptível de ser entendido como imoral ou desonroso”.
E como a doutrina constante dos acórdãos citados não exige, quanto ao ilícito disciplinar, a discriminação, na lei, dos relevantes comportamentos da vida pública ou dos aspectos nos quais se concretiza a imagem de dignidade da magistratura, antes considerando suficiente a existência de critérios de decisão para a aplicação da sanção, a conclusão quanto às questões ora em apreço só pode ser a da respectiva improcedência, não tendo qualquer razão o recorrente quando invoca tal doutrina em abono da sua tese.
De todo o modo, a decisão de inconstitucionalidade constante do citado acórdão n.º 91/01 nunca poderia servir como argumento a favor da tese do recorrente. E isto porque o plenário do Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º
481/01, de 20 de Novembro (publicado no Diário da República, II Série, n.º 21, de 25 de Janeiro de 2002, p. 1613), “não julgou inconstitucionais as normas dos artigos 94º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de Junho [...] e 75º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho [...], assim afastando a orientação acolhida em secção no acórdão n.º
91/01 e, portanto, a orientação que alegadamente favoreceria o ora recorrente.
No Acórdão nº 481/01, tirado em plenário, em recurso por oposição de julgados, disse o Tribunal Constitucional:
“[...] Não falta, pois, às normas em causa aquele mínimo de determinabilidade que as faria incorrer em violação do princípio invocado no acórdão recorrido [trata-se do Acórdão n.º 91/01], sendo certo que a caracterização do ilícito disciplinar, de modo a desejavelmente poder abranger uma multiplicidade de condutas censuráveis, exige, por vezes, o uso de conceitos indeterminados na definição do tipo.
[...].”
Consequentemente, o Tribunal Constitucional não sufragou a tese do Acórdão n.º 91/01 quanto ao juízo de inconstitucionalidade, tendo acolhido o que se decidiu, sobre a mesma matéria, no Acórdão n.º 504/00, que se pronunciara no sentido da não inconstitucionalidade das mesmas normas.
III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 82º, 2ª parte,
85º, n.º 1, alínea f), e 95º, n.º 1, alínea b), do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho;
b) Consequentemente, negar provimento ao presente recurso, confirmando a decisão recorrida no que se refere à questão de constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 15 de Julho de 2003
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício Luís Nunes de Almeida