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Processo n.º 788/03
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Em 7 de Janeiro de 2003 foi proferida nos presentes autos decisão sumária de não conhecimento do recurso interposto por A., melhor identificado nos autos. Tal decisão sumária teve o seguinte teor:
«1. Por sentença de 4 de Outubro de 2001, foi liquidada em execução de sentença, na acção intentada por A. contra companhia de seguros B. com fundamento em responsabilidade civil por acidente de viação, “para além do que já se mostra liquidado na douta sentença dos autos de acção declarativa, (...) a quantia exequenda no montante global de 528.346$00 (quinhentos e vinte e oito mil trezentos e quarenta e seis escudos), acrescidos de juros de mora vencidos desde
20 de Junho de 1996, até integral pagamento vencidos pela forma discriminada na douta sentença da acção declarativa”.
2. Exequente e executada interpuseram recurso de apelação desta decisão, para o Tribunal da Relação de Évora, aquele visando a alteração do julgamento da matéria de facto e esta a da data da sua constituição em mora. Por acórdão datado de 20 de Junho de 2002, o Tribunal da Relação de Évora julgou improcedentes os recursos de apelação interpostos e confirmou a decisão recorrida. O exequente veio, então, nos termos do artigo 670.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, requerer a aclaração deste acórdão, e, por acórdão datado de 7 de Novembro de 2002, o Tribunal da Relação de Évora indeferiu o pedido do apelado.
3. Inconformado, o exequente interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo apresentado conclusões com o seguinte teor:
“1.º – O art.º 564.º do Cód. Civil estipula que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo, como o benefício que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, requere-se, mui respeitosamente, ao Supremo Tribunal de Justiça que altere o Douto Acórdão da Relação de Évora, ordenando a alteração da Douta Sentença de Liquidação de Execução de Sentença da 1ª Instância, na parte em que se deve considerar que a remuneração complementar, em face da sua periodicidade e regularidade, nos valores médios mensais, liquidados e apurados em 1ª Instância (Ajudas de Custo, média mensal em Esc: 93.534$00, € 466,55, subsídio de transportes, média mensal, em Esc: 49,534$00, € 247,07) o que perfaz a média mensal total das prestações complementares em Esc: 143.068$00, € 713,62, no período temporal já referido (de Setembro de 1994 a Dezembro de 1995), ou seja
16 meses, é uma retribuição e um benefício que deixou de ter o Exequente-recorrente, entendendo-se como lucro cessante, devendo acrescer à indemnização a atribuir ao Exequente no valor (€ 713,62 x 16 Meses = €
11.417,92). – Assim para além dos Esc: 528.346$00, em € 2635,38 que a Douta Sentença de 1ª Instância liquidou e apurou a favor do exequente, deverá acrescer o montante de € 11.417,92, dando o valor total a receber pelo exequente Esc: 2
817.434$00, em € 14.053,30 (Catorze Mil e Cinquenta e Três Euros e Trinta Cêntimos) acrescidos de juros de Mora desde 20/6/96.
2.º – O Douto Acórdão de 8 de Maio de 1996, Secção Social, Recurso 442, Col. Jur. Tomo II, Ano de 1996, pág. 251 a 253, refere nomeadamente o seguinte (salvo erro de transcrição): ‘Assim, a atribuição de carácter retributivo a certa prestação da entidade patronal exige uma certa periodicidade ou regularidade no seu pagamento, embora possa ser diversa de umas prestações para outras. Nesta característica se apoia a presunção da existência de uma vinculação prévia, quando se encontra, expressamente consignada e assinalada, a medida das expectativas de ganho do trabalhador, conferindo relevância o nexo existente entre a retribuição e as necessidades pessoais e familiares do trabalhador.’ cfr Ac. STJ de 22/9/93, Col. Jur. Acs. STJ, Ano I, Tomo III, pág. 269. [sic]
3.º – ‘O Subsídio de Refeição é elemento integrante da retribuição», Ac. STJ de
13/1/93, Col. Jur. Ano 1993, Tomo I, pág. 225 a 227, salvo erro de transcrição, o art. 87.º da LCT, prevê uma excepção, quando essas importâncias tenham sido previstas no contrato ou se devam considerar pelos usos, elemento integrante da remuneração ao trabalhador’ (cfr. Ac. Relação de Lisboa de 24/3/93, Col. Jur., pág. 163-166).
4.º – No humilde entendimento do recorrente é decisivo o teor do presente Ac. STJ, de 29/11/89 – AJ 3ª-/89, pág. 17, ‘O conceito de retribuição abrange hoje todos os benefícios outorgados pela entidade patronal, que se destinem a integrar o orçamento normal do trabalhador, conferindo-lhe a justa expectativa do seu recebimento dada a sua regularidade e continuidade periódica’. ‘Quando se refere que existe subsídio de refeição, entende-se que é um subsídio independente de ser tomado ou trazido de casa, por ex.: no local de trabalho. Coisa diferente é o regime de Prestação de pagamento de refeição, porque a despesa é efectivamente efectuada’, salvo erro de transcrição.
5.º – E foi na análise dos pressupostos da qualificação das prestações como remuneração ou retribuição, que [a decisão d]o ilustre Tribunal da 1ª Instância e o Douto Acórdão da Relação de Évora que não a alterou como deveria, [...] não interpretaram e aplicaram, correctamente os art. 82.º e art. 87.º da LCT e arts.
562.º, 563.º do Cód. Civil, (com todo o respeito e salvo erro de entendimento), precisamente ao não verificarem que, independentemente da variação mensal dos valores dos subsídios e ajudas de custos, o que interessava era a periodicidade e a regularidade, conferindo justa expectativa de recebimento futuro a incluir no seu orçamento familiar por parte do trabalhador, prevista contratualmente, mediante critério concreto e estável e não dependiam as mesmas da apresentação de recibos ou despesas, que isso foi provado (salvo erro de interpretação) com ofício da entidade patronal – C. – para fazer face às despesas impostas pelas deslocações, situação prevista na Cláusula 24.ª do Contrato Colectivo para a Indústria da Construção Civil e Obras Públicas no Boletim de Emprego – 1ª-série, n.º 15 de 22 de Abril de 2000, recebia mensalmente ajudas de custos e subsídios de transporte cujos os valores dependiam da localização das obras.
6.º – O ora recorrente considera que na 1ª Instância foram provados todos os pressupostos de que faziam depender a qualificação das prestações, ajudas de custos e subsídio de transportes como fazendo parte da retribuição, porém, caso não se venha a entender nesse sentido, submete-se à Douta apreciação do Venerando Supremo Tribunal de Justiça, subsidiariamente, o reconhecimento da existência da inversão do ónus da prova a favor do recorrente, previsto no n.° 3 do art. 82.º da LCT ‘ ‘até prova em contrário’, presume-se constituir retribuição toda e qualquer prestação da entidade patronal pelo que o trabalhador não tem de provar os referidos pressupostos’, alegando-se a não aplicação correcta da Lei substantiva por parte da Douta Sentença da 1ª Instância e Douto Acórdão da Relação, alterando-se o Douto Acórdão e por inerência a Douta Sentença da 1ª Instância, com todo o respeito e salvo erro de entendimento, no que respeita ao disposto no art. 82.º, n.º 3, da LCT e art.
344.º, n.º 1, do Cód. Civil, sendo de atribuir da mesma forma, o valor de indemnização acrescida ao exequente de € 11.417,92, o que daria conjuntamente com o valor já atribuído em 1ª Instância em € 2635,38, o valor total de indemnização a atribuir ao exequente em €14.053,30 (Catorze Mil e Cinquenta e Três Euros e Trinta Cêntimos) e juros de mora desde 20/6/96 até integral pagamento ao exequente.” Por acórdão datado de 3 de Junho de 2003, o Supremo Tribunal de Justiça negou a revista, com a seguinte fundamentação:
“(...)
5. 2. – Num crescendo constante, o Recorrente vem, entretanto, de recurso em recurso, alegando o que, em sede de matéria de facto, omitiu completamente nos articulados. Com efeito, sem que na petição de liquidação tivesse feito qualquer alusão à natureza ou identificação das verbas que integravam os valores cujas diferenças conclusivamente reclamou, o Recorrente, certamente alertado pelo conteúdo da resposta ao quesito 1.º e pela interpretação que dele se fez na sentença, começou por ver insuficiências em matéria de facto que ia já bem além do que ele tinha alegado, para, de seguida, sobretudo neste recurso de revista, vir alegar o concurso de elementos de facto que eram pressuposto de atribuição das prestações e inerentes às suas características de regularidade e periodicidade e, em especial, de inclusão na previsão do art. 87.º da LCT (DL 49 408, de
24/11/69) – n.ºs 7.º a 14.º das alegações. Segundo este preceito, para que as ajudas de custo e despesas de transporte devam considerar-se retribuição, necessário é que tais deslocações sejam frequentes e que essas importâncias, na parte em que excedam as respectivas despesas normais, tenham sido previstas no contrato de trabalho ou se devam considerar pelos usos como elemento integrante da remuneração do trabalhador, sendo que o referido art. 24.º do CCT prevê o pagamento de ajudas de custo e subsídios de transportes, dependentes da localização das obras.
5. 3. – Ora, como dito, e se reafirma, só em sede de recurso vêm alegados factos relativos ao preenchimento dos elementos de caracterização das prestações. Impunha-se-lhe, porém, fazê-lo na petição inicial, cumprindo o ónus de alegação que o princípio dispositivo consagra, fazendo recair sobre as partes o dever de levar ao tribunal as afirmações de facto correspondentes ao reconhecimento do direito que reclamam, proporcionando ao julgador a base factual da decisão, não sendo lícito a este fundá-la senão nesses factos, nos factos notórios e em eventuais factos instrumentais resultantes da instrução da causa – arts. 3.º,
467.º-1-c), 664.º e 264.º, todos do CPC. Como já fez notar a Relação, o Recorrente limitou-se a juntar documentos comprovativos de vencimento referentes a cinco meses, ignorando-se, desde logo, a duração do contrato de trabalho, tal como se ignora se, como só agora alega, trabalhava habitual ou regularmente fora do local em que estava sediado, se percebia as prestações independentemente da entrega de justificativos, se a variação estava apenas relacionada com a localização das obras, etc.. Numa palavra, como também já se acentuou no acórdão recorrido, a pretensão do Recorrente soçobra porque no momento processual adequado não articulou os factos pertinentes à qualificação das remunerações complementares como retribuição – nem à sua existência, acrescentamos –, fazendo-o agora à revelia das regras processuais.
5.4. – Pelas mesmas razões, isto é, por absoluta omissão de alegação nos articulados, se entende não haver fundamento para a invocação da presunção de que as prestações em causa constituíam remuneração – n.º 3 do art. 82.º da LCT. Trata-se de uma presunção juris tantum (até prova em contrário), relativamente a factos que a parte contrária não teve sequer a faculdade de contradizer – pela
óbvia razão de que tudo era alheio ao processo antes da decisão final –, e, consequentemente, de oferecer e produzir prova de elisão da presunção. Admitir posição diferente seria aceitar a mais grosseira violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes – arts. 3.º e 3.º-A do CPC. As presunções legais conduzem a que se julgue assente um determinado facto, quando se verifique um outro e se não prove o contrário – art. 344.º do C. Civil. Em qualquer caso, é necessário que se tenha por verificado, isto é, que se tenha alegado (ou seja notório) o facto de que a lei faz derivar o facto ou situação presumida. E, assim sendo, insiste-se, falhando os factos que seriam susceptíveis de integrar as qualificações de ajudas de custo e de despesas de transporte, à luz do critério estabelecido no art. 87.º, falha necessariamente a presunção de essas concretas prestações constituírem retribuição.” O demandante veio pedir a aclaração e reforma deste acórdão, concluindo, no que ora importa:
“(...) E) A Reforma do Douto Acórdão de Revista na interpretação que efectuou dos arts.
264.º do Cód. Processo Civil, arts. 87.º e 82.º, n.º 3 da LCT, devendo considerar que a indagação oficiosa, art.º 807.º, n.º 3, do Cód. Processo Civil e art.º 90.º da LCT conjugada com o art.º 265.º, n.º 3, do Cód. Processo Civil, constituem excepção ao princípio dispositivo e preclude [sic] qualquer alegada omissão de alegação, e que provada a periodicidade e regularidade faz presumir que no espírito do trabalhador criou-se a convicção de que as ajudas de custos e subsídio de transporte faziam parte integrante do salário, veja-se a Acta de
15/2/2001, o Tribunal da 1ª Instância ordena a notificação da C. para informar sobre as ajudas de custo e o subsídio de Transporte e os montantes atribuídos a título de deslocação à Família que o Autor auferia mensalmente, se eram pagas desde o início do contrato; se o pagamento dessas ajudas de custo e restantes subsídios eram uso da empresa para este tipo de trabalhadores e se tais ajudas e subsídios se encontravam previstas no contrato, a periodicidade e regularidade são questões que foram do conhecimento oficioso do Tribunal de 1ª Instância, e cuja a discordância [sic] foi suscitada pelo recorrente na sua interpretação Jurídica, ou seja na Matéria de Direito, sob pena de não se respeitar o Princípio Constitucional da Função Jurisdicional, art. 202.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, com todo o respeito e salvo erro de entendimento.” Por acórdão datado de 30 de Setembro de 2003, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu o pedido de aclaração, porquanto
“(...)
2. 1. – No caso presente, apesar de a tal aludir, o Requerente não coloca quaisquer dúvidas de interpretação de que pretenda ser esclarecido. Não se trata, pois, de aclaração, sendo que também não se vê que algo haja a aclarar.
2. 2. – Fica o pedido de reforma.
(...) Ora, é bom de ver que a pretensão do Requerente não se funda na invocação de qualquer lapso dos julgadores, manifesto ou não, lapso que, de qualquer modo, também se não detecta e, por isso, se não reconhece. Tanto bastaria para o imediato indeferimento do pedido, ao abrigo do mencionado princípio geral.»
4. O demandante veio então interpor o presente recurso para o Tribunal Constitucional, “ao abrigo do disposto no art. 70.º, n.º 1, alínea b), e no art.
75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional”, dizendo, quanto ao objecto do recurso:
“(...)
7.º Considera o recorrente, com todo o respeito e salvo erro de entendimento, existir Inconstitucionalidade do Douto Acórdão de Revista na interpretação que efectuou do art. 264.º do Cód. Processo Civil, arts. 87.º e 82.º, n.° 3, da LCT, devendo considerar que a indagação oficiosa, art.º 807.º, n.º 3, do Cód. Processo Civil e art.º 90.º da LCT, conjugada com o art.º 265.º, n.º 3, do Cód
.Processo Civil, constituem excepção ao princípio dispositivo e preclude [sic] qualquer alegada omissão de alegação, senão o Tribunal de 1ª instância não podia fazer a inquisição de factos que não estavam alegados pelas partes, segundo rege o princípio dispositivo, a própria indagação oficiosa do Tribunal da 1ª Instância, nomeadamente ao abrigo do disposto no art. 90.º da LCT, que provada a perio[di]cidade e regularidade faz presumir que no espírito do trabalhador a convicção de que as ajudas de custos e subsídio de transporte faziam parte integrante do salário [sic], veja-se a Acta de 15/2/2001, o Tribunal da 1ª Instância ordena a notificação da C. para informar sobre as ajudas de custo e o subsídio de Transporte e os montantes atribuídos a título de deslocação à Família que o Autor auferia mensalmente, a saber: – se eram pagas desde o início do contrato; se o pagamento dessas ajudas de custo e restantes subsídios eram uso da empresa para este tipo de trabalhadores e se tais ajudas e subsídios se encontravam previstas no contrato,
8° Vigora o principio inquisitório que se contrapõe ao principio dispositivo, nomeadamente a “Disponibilidade do Objecto do processo, havendo a fazer uma distinção entre disponibilidade do pedido e disponibilidade das questões e factos necessários à decisão deste” salvo erro de transcrição, Direito Processual Civil, I Vol., Professor Doutor João Castro Mendes . Estabelece o art.º 664° do Cód. Processo Civil “O Juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes salvo o disposto no art.º 264° do Cód. Processo Civil.” Ao abrigo do disposto no art.º 265 “Incumbe ao Juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é licito conhecer”, no entendimento do recorrente estamos no domínio da possibilidade da investigação de factos não alegados pelas partes, prevalência da justiça material sobra a justiça meramente formal.
9° Mostrando-se violado o Princípio Constitucional da Função Jurisdicional, na interpretação, conjugada, dos arts. 264.º, 265.º, n.° 3, do Cód. Processo Civil e arts. 82.º, 87.º, n.º 3, e art.º 90.º da LCT, por parte do Douto Acórdão do STJ de Justiça, com todo o respeito e salvo erro de entendimento, ao considerar que não houve excepção ao Princípio dispositivo, quando o Tribunal da 1ª Instancia indagou oficiosamente ao abrigo do disposto no art.º 867.º, n.º 3, do Cód. Processo Civil e art. 90.º da LCT os requisitos de que faziam depender o reconhecimento das remunerações complementares como fazendo parte da retribuição, consagrado no art.º 202.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, com todo o respeito e salvo erro de entendimento.» Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
5. O presente recurso foi admitido – em decisão que, como se sabe (artigo 76.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional), não vincula o Tribunal Constitucional
–, mas, analisados os autos, verifica-se que é de proferir decisão sumária, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, por este Tribunal não poder tomar conhecimento do recurso.
6. Na verdade, o recurso vem intentado ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º
1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Ora, para se poder conhecer de tal recurso, torna-se necessário, a mais do esgotamento dos recursos ordinários e de que a norma impugnada tenha sido aplicada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido, que a inconstitucionalidade desta tenha sido suscitada durante o processo. No presente caso, porém, verifica-se desde logo que nem sequer no requerimento de recurso, o recorrente identificou, com a precisão necessária, a questão de constitucionalidade normativa que pretendia ver apreciada – e recorde-se que no direito constitucional português vigente, apenas as normas são objecto de fiscalização de constitucionalidade concentrada em via de recurso (cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/96, publicado no Diário da República [DR], II Série, de 15 de Maio de 1996, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 1998, p.
821), com exclusão dos actos de outra natureza, designadamente, das decisões judiciais em si mesmas. Na verdade, no requerimento de recurso, o recorrente, num discurso pouco claro, refere apenas existir “Inconstitucionalidade do Douto Acórdão de Revista na interpretação que efectuou do art. 264.º do Cód. Processo Civil, arts. 87.º e
82.º, n.° 3, da LCT , devendo considerar que a indagação oficiosa, art.º 807.º, n.º 3, do Cód. Processo Civil e art.º 90.º da LCT, conjugada com o art.º 265.º, n.º 3, do Cód .Processo Civil, constituem excepção ao principio dispositivo e preclude [sic] qualquer alegada omissão de alegação”, sem, porém, enunciar claramente a dimensão ou interpretação normativa que pretendia ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
É certo que, mais à frente, o recorrente considera ter sido violado o “Princípio Constitucional da Função Jurisdicional” pela “interpretação, conjugada, dos arts. 264.º, 265.º, n.° 3, do Cód. Processo Civil e arts. 82.º, 87.º, n.º 3, e art. 90.º da LCT, por parte do Douto Acórdão do STJ de Justiça, com todo o respeito e salvo erro de entendimento, ao considerar que não houve excepção ao Princípio dispositivo, quando o Tribunal da 1ª Instancia indagou oficiosamente ao abrigo do disposto no art.º 867.º, n.º 3, do Cód. Processo Civil e art. 90.º da LCT os requisitos de que faziam depender o reconhecimento das remunerações complementares com fazendo parte da retribuição”. E é certo que a eventual insuficiência de identificação, no requerimento de recurso, da norma a apreciar seria, ainda, eventualmente ultrapassável através de um convite ao recorrente para aperfeiçoar o seu requerimento de recurso, nos termos do artigo 75.º-A, n.ºs 5 e 6, da Lei do Tribunal Constitucional.
7. Acontece, porém, que no presente caso tal convite se revela totalmente inútil, por se não verificar igualmente o requisito da suscitação, perante o tribunal recorrido, de qualquer questão de constitucionalidade normativa. Na verdade, consultando as alegações do recorrente perante o tribunal a quo
(fls. 173 e segs. dos autos), verifica-se que também aí não foi enunciada a interpretação normativa cuja constitucionalidade impugnava, ou se invocou sequer qualquer desconformidade constitucional – seja da decisão (que não bastaria), seja de qualquer norma. E isto, nem nas conclusões (supra transcritas), nem no próprio texto das alegações. Apenas depois de proferido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Outubro de 2003, o recorrente veio, no pedido de “aclaração e reforma” deste aresto, suscitar “a questão da observância ou não do princípio da função jurisdicional, previsto no art. 202.º da Constituição da República” (ponto 32.º e conclusão E), a fls. 220 e 222 dos autos). Também aqui, porém, o recorrente não identificou, com um mínimo indispensável de precisão, a dimensão ou interpretação normativa que impugnava por inconstitucionalidade. Ora, o recorrente deve suscitar, durante o processo, uma questão de inconstitucionalidade normativa, devidamente identificada – o que também requer, pelo menos, que se enuncie tal interpretação, quanto a norma que se pretende ver apreciada corresponde apenas a uma dimensão interpretativa de um ou mais preceitos. Como este Tribunal afirmou, por exemplo, no Acórdão n.º
178/95 (DR, II série, de 21 de Junho de 1995), impunha-se que o recorrente tivesse
“(...) indicado – o que não [fez] – o segmento de cada norma, a dimensão normativa de cada preceito – o sentido ou interpretação, em suma – que [tem] por violador da Constituição. De facto, tendo a questão da constitucionalidade de ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 269/94, in Diário da República,
2ª Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a lei fundamental.” E, de todo o modo, o incidente pós-decisório em questão – um pedido de aclaração e de reforma da decisão – não era já momento adequado para se poder considerar suscitada a questão de inconstitucionalidade durante o processo. Na verdade, a inconstitucionalidade deve ter sido suscitada durante o processo, sendo tal requisito de entender – como se decidiu, v. g., no Acórdão n.º 352/94
(DR, II série, de 6 de Setembro de 1994) e se tem depois repetido em jurisprudência constante –, “não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas
“num sentido funcional”, de tal modo “que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão”,
“antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita”. É, com efeito, este o sentido que é exigido pelo facto de a intervenção do Tribunal Constitucional se efectuar em via de recurso, para reapreciação ou reexame, portanto, de uma questão que o tribunal a quo pudesse e devesse ter apreciado (ver, por exemplo, o Acórdão n.º
560/94, DR, II, de 10 de Janeiro de 1995, e ainda o Acórdão n.º 155/95, in DR, II, de 20 de Junho de 1995). O requerimento do recurso de constitucionalidade não é já, pois, como este Tribunal repetidamente tem afirmado, momento idóneo para pela primeira vez suscitar uma questão de constitucionalidade normativa – v. também, além dos Acórdãos citados, por exemplo o Acórdão n.º 166/92, DR, II, de 18 de Setembro de
1992. Antes o recorrente tem o ónus de suscitar a inconstitucionalidade normativa perante o tribunal a quo, para este se pronunciar sobre ela. E também os pedidos de aclaração e reforma de uma decisão, ou a arguição da sua nulidade, enquanto incidentes pós-decisórios, não são já momentos adequados para, atempadamente, suscitar uma questão de constitucionalidade normativa, em termos de ela poder vir a ser decidida pelo tribunal a quo, e de provocar a intervenção do Tribunal Constitucional para reapreciação, em recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional. Como se salientou no citado Acórdão n.º 352/94, “porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença, e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura e ambígua, há-de entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade” (v. também já, por exemplo, o Acórdão n.º 62/85, DR, II série, de 31 de Maio de 1985) – sofrendo esta orientação, como também se referiu no referido Acórdão n.º 352/94, restrições apenas em situações excepcionais, anómalas, nas quais o interessado não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão final, ou não era exigível que o fizesse, por o tribunal a quo ter efectuado uma aplicação de todo insólita e imprevisível da norma impugnada. Ora, manifestamente não é um destes casos o dos autos – em que a questão era já discutida, como o próprio recorrente admite, desde o recurso para o Tribunal da Relação –, pelo que não pode considerar-se preenchido o requisito da suscitação, durante o processo, da questão de inconstitucionalidade.
8. Não só, portanto, pela deficiência do requerimento de recurso, mas também, pois, por o recorrente não ter cumprido o ónus – indispensável para poder fazer uso do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei do Tribunal Constitucional – de suscitar devidamente uma questão de constitucionalidade normativa durante o processo (cfr. o artigo 72.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional), não pode o Tribunal Constitucional tomar agora conhecimento do presente recurso.»
2.Inconformado, o recorrente vem reclamar desta decisão, nos termos do n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, tendo formulado as seguintes conclusões:
“A) Submete-se à Douta Consideração do Tribunal Constitucional: se a oportunidade processual de invocar a inconstitucionalidade, no humilde entendimento do recorrente, verifica-se apenas na Aclaração ao Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, já que a questão concreta que a fundamenta diz respeito ao Douto Acórdão, devido à incompletude do Douto Acórdão da Relação de
Évora; foi suscitada em sede de recurso de Revista, o julgamento em matéria de Direito Substantivo (sem analisar pedidos de modificação ou ampliação à matéria fixada na base instrutória fixada na 1ª Instância), o reconhecimento da remuneração complementar como Retribuição, suscitando o reconhecimento de uma qualificação jurídica, e o facto do Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ter julgado improcedente o recurso, invocando que o recorrente não alegou os factos conducentes ao pedido, elementos que caracterizam a retribuição, quando, no humilde entendimento do Recorrente, os mesmos foram indagados e provados pelo Juiz da 1ª Instância, vigorando o princípio inquisitório, art. 265° do Cód. Processo Civil, e art. 90.º da LCT, motivou a invocação da inconstitucionalidade; B) Submete-se à Douta Consideração do Tribunal Constitucional: se o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ao não decidir, em Matéria de Direito Substantivo, conforme estipula o disposto no art. 664° do Cód. Processo Civil – a saber, em face da Matéria de Facto provada na 1ª Instância, estamos perante uma remuneração complementar que tinha a natureza jurídica de retribuição, ou subsidiariamente, a presunção de retribuição, art. 82.º, n.º 3 da LCT; acabou por não existir uma decisão objectiva sobre estes pedidos, salvo erro de análise
(de dirimir o conflito e assegurar a defesa dos direitos) ao invocar que não houve matéria de facto alegada na Petição Inicial para decidir os mesmos pedidos, a interpretação que o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça fez do art. 264.º, n.° 2 do Cód. Processo Civil, não tendo em consideração que o art. 90.º LCT (Fixação Judicial da Retribuição), constitui uma excepção ao princípio dispositivo (vide art. 265.º, n.º 3, do Cód. Processo Civil), no entendimento do Recorrente, salvo erro de entendimento e com todo o respeito, viola o Princípio Constitucional da Função Jurisdicional, previsto no art.
202.º, n.º 2 , da Constituição da República Portuguesa. C) Caso considerem necessário o aperfeiçoamento do requerimento do Recurso ao não identificar com precisão a dimensão ou interpretação que impugnava como inconstitucional, requer-se a V. Ex.ªs (caso não considerem a mesma aperfeiçoada) que determinem a notificação do recorrente para aperfeiçoar o seu requerimento, nesse sentido, considerando útil para esse efeito, já que quanto ao momento para arguir a inconstitucionalidade, o recorrente considera que apenas a poderia invocar na Peça Processual Aclaração, pois a alegada inconstitucionalidade diz respeito a Douta Decisão, específica, do Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, com todo o respeito e salvo erro de entendimento.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.A presente reclamação não logra abalar os fundamentos da decisão sumária de não conhecimento do recurso. Na verdade, consultando o teor da reclamação, verifica-se que o recorrente reconhece não ter suscitado qualquer questão de inconstitucionalidade anteriormente à prolação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Junho de 2003, que negou a revista, afirmando, porém, que apenas o fez no requerimento de aclaração do “Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, já que a questão concreta que a fundamenta diz respeito ao Douto Acórdão, devido à incompletude do Douto Acórdão da Relação de Évora”. Como o próprio recorrente também admite, a questão da caracterização das prestações recebidas pelo recorrente, e da suficiência dos factos para a qualificação por este pretendida, era já discutida desde o recurso para o Tribunal da Relação – pelo que o recorrente tinha o ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidade, identificando a dimensão normativa em causa, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo. Não podia, pois, considerar-se preenchido este requisito, consistente na suscitação, durante o processo, da questão de inconstitucionalidade da norma que se impugna, que é indispensável para se poder tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Tornava-se, assim, inútil – como inútil é também agora – qualquer convite para aperfeiçoamento do requerimento de recurso, conforme pedido pelo ora reclamante, pois tal aperfeiçoamento não poderia suprir a falta de verificação do apontado requisito, que conduziu também a que o tribunal a quo se não pronunciasse sobre qualquer questão de constitucionalidade normativa – aliás, identificada de forma pouco clara, sem indicação da dimensão normativa em causa, mesmo no requerimento de aclaração do acórdão recorrido do Supremo Tribunal de Justiça. A decisão reclamada, de não conhecimento do recurso, merece, pois, ser confirmada. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se desatender a presente reclamação, confirmar a decisão sumária de não conhecimento do recurso e condenar o recorrente em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 3 de Março de 2004
Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos