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Proc. n.º 815/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Foi, a fls. 1422 e seguintes, proferida decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A., pelos seguintes fundamentos:
“6. Como se realça no respectivo despacho de admissão (supra, 5.), o presente recurso não poderia ter sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pois esta norma pressupõe que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a questão da inconstitucionalidade da norma aplicada na decisão recorrida. Ora, durante o processo, o recorrente não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, tendo-se limitado a imputar inconstitucionalidades a decisões judiciais, em si mesmas consideradas (supra,
3). Aliás, no próprio requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, bem como na resposta ao despacho de aperfeiçoamento proferido no tribunal a quo, invocou o recorrente a inconstitucionalidade do próprio acórdão recorrido, e não de qualquer norma nele aplicada (supra, 5.). No que diz respeito à alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a outra alínea indicada pelo recorrente na resposta ao despacho de aperfeiçoamento (supra, 5.) –, é também patente não estarem, no presente caso, preenchidos os pressupostos processuais do recurso nela contemplado. Com efeito, a decisão recorrida (supra, 4.) não aplicou norma cuja ilegalidade tivesse sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e) do mesmo artigo 70º (ou seja, com fundamento em ilegalidade por violação de lei com valor reforçado ou em ilegalidade por violação do estatuto de uma região autónoma ou de lei geral da República).
7. Afastada que está a possibilidade de preenchimento dos pressupostos processuais dos recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do citado artigo
70º, resta apenas considerar a hipótese da interposição do presente recurso ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do mesmo preceito.
De acordo com esta alínea g), cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional (ou ilegal) pelo próprio Tribunal Constitucional.
Tendo o recorrente referenciado, na resposta ao despacho de aperfeiçoamento (supra, 5.), o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 498/98, e, bem assim, o artigo 409º do Código de Processo Penal, impõe-se a conclusão – aliás já extraída pelo relator no Supremo (supra, 5.) – que o recorrente interpôs o presente recurso ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por entender que o tribunal recorrido aplicara uma norma – o artigo 409º do Código de Processo Penal – já julgada inconstitucional.
Todavia, também os pressupostos processuais do recurso previsto nesta alínea g) não se encontram, no presente caso, preenchidos. É que no mencionado Acórdão n.º 498/98, de 2 de Julho (inédito) julgou-se
«inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º s 1 e 5, da Constituição, a norma do artigo 409º, n.º 1 do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a proibição da reformatio in pejus não abrange a revogação pelo tribunal [de recurso] do perdão de pena concedido pela 1ª instância».
Ora, como é evidente, a decisão ora recorrida não aplicou a norma do artigo 409º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação acabada de referir. Desde logo porque o tribunal de recurso [que é agora o tribunal recorrido] não revogou qualquer perdão de pena que houvesse sido anteriormente concedido.
Não estando preenchidos os pressupostos processuais do recurso previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – tal como, na sequência do que já se explanou, os dos recursos previstos nas alíneas b) e f) do mesmo preceito –, é forçoso concluir que este Tribunal não pode conhecer do objecto do presente recurso.”
2. Notificado desta decisão, A. veio reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei deste Tribunal (requerimento de fls. 1444 e seguintes), invocando, em síntese:
“1º [...] foi apresentado recurso para o Tribunal Constitucional
[...] interposto ao abrigo das alíneas b), f) e g) do artigo 70º da Lei n.º
28/82 de 15 de Novembro.
2º E, na motivação apresentada perante o Tribunal da Relação de Coimbra, o arguido invocou as inconstitucionalidades existentes na decisão sob recurso.
[...]
9º No acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça assistiu-se a uma «reformatio in pejus» a qual é manifestamente proibida pela nossa Lei Processual Penal (cfr. art. 409º do CPP).
10º Decidindo de acordo com uma interpretação inconstitucional, de acordo com o que já foi decidido no Acórdão proferido pela 1ª Secção do Tribunal Constitucional – Ac. 498/98 – Proc. n.º 336/97.
[...]
12º Verifica-se assim que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal traduz-se numa «reformatio in pejus» em prejuízo do arguido.
13º Decisão essa que é ilegal, inconstitucional e por isso inaceitável no nosso ordenamento jurídico, por violação dos princípios da plenitude das garantias de defesa, da garantia da estrutura acusatória do processo e do direito ao recurso consagrados no artigo 32º, n.º 1 e 5 da CRP.
14º No entanto, a decisão reclamada não efectuou uma correcta interpretação sobre as normas jurídicas aplicáveis ao caso em concreto.
15º Isto porque a partir do momento em que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu condenar o arguido de forma mais gravosa por um crime cuja pena tinha sido aplicada de forma menos gravosa nas decisões das instâncias anteriores sob recurso.
16º E daí, as inconstitucionalidades invocadas por parte do arguido.
17º Inconstitucionalidades essas que se verificam e que por isso deveriam ser decididas.
[...].”
3. Notificado para se pronunciar sobre a reclamação apresentada, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional disse que
“a presente reclamação é manifestamente improcedente, por não se verificarem os pressupostos do recurso interposto pelo arguido” (fls. 1462).
Notificado também para se pronunciar sobre a reclamação, o recorrido Patrício André Costa não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Resulta com clareza dos autos que, apesar de o recorrente ter invocado como seu fundamento o disposto nas alíneas b), f) e g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso não poderia ter sido interposto ao abrigo das citadas alíneas b) e f).
Tal conclusão, já expressa no despacho de admissão do recurso proferido no tribunal a quo, foi explicitada no ponto 6. da decisão sumária reclamada.
Na verdade, por um lado, e no que diz respeito à alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o recorrente não suscitou durante o processo qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, tendo-se limitado a imputar inconstitucionalidades a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. E no próprio requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, bem como na resposta ao despacho de aperfeiçoamento proferido no tribunal a quo, invocou o recorrente a inconstitucionalidade do próprio acórdão recorrido, e não de qualquer norma nele aplicada.
Por outro lado, no que diz respeito à alínea f) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, é também patente não estarem, no presente caso, preenchidos os pressupostos processuais do recurso nela contemplado, já que a decisão recorrida não aplicou norma cuja ilegalidade tivesse sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e) do mesmo artigo 70º (ou seja, com fundamento em ilegalidade por violação de lei com valor reforçado ou em ilegalidade por violação do estatuto de uma região autónoma ou de lei geral da República).
5. A decisão de não conhecimento do presente recurso (interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional), constante da decisão sumária agora reclamada, assentou igualmente na falta de preenchimento dos pressupostos processuais do recurso previsto nessa alínea.
Não tendo o acórdão aqui recorrido (o Supremo Tribunal de Justiça) aplicado a norma do artigo 409º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação julgada inconstitucional pelo Acórdão n.º 498/98, invocado pelo recorrente, decidiu-se na decisão sumária reclamada que não podia tomar-se conhecimento do objecto do recurso interposto para o Tribunal Constitucional com fundamento na mencionada alínea g).
6. Na reclamação deduzida, o ora reclamante insiste que, “na motivação apresentada”, “invocou as inconstitucionalidades existentes na decisão sob recurso”.
Todavia, como se afirmou claramente na decisão sumária reclamada, nessa motivação o ora reclamante não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, tendo-se limitado a imputar inconstitucionalidades da decisão judicial então impugnada (cfr., concretamente, conclusão n.º 49, a fls. 1346-1347).
E mesmo no requerimento agora apresentado – que obviamente nunca poderia constituir momento idóneo para considerar suscitada “durante o processo” a questão de inconstitucionalidade – o reclamante continua a alegar que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça é inconstitucional “por violação dos princípios da plenitude das garantias de defesa, da garantia da estrutura acusatória do processo e do direito ao recurso consagrados no artigo
32º, n.º 1 e 5 da CRP” (cfr. n.º 13º, transcrito supra, 2.).
Acresce, e decisivamente, quanto a este ponto, que, face ao despacho proferido a fls. 1419 e v.º pelo relator no tribunal recorrido, o presente recurso não foi admitido com fundamento nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional. Não tendo sido oportunamente impugnado tal despacho, transitou em julgado a decisão quanto à não admissibilidade do recurso com esses fundamentos.
7. Para além disso, o reclamante vem, uma vez mais, afirmar que “a decisão proferida pelo Supremo Tribunal traduz-se numa «reformatio in pejus» em prejuízo do arguido” e que tal decisão contraria “o que já foi decidido no acórdão proferido pela 1ª Secção do Tribunal Constitucional – Ac. 498/98, proc. n.º 336/97”.
Sucede que, como se disse na decisão sumária reclamada, o acórdão aqui recorrido não aplicou a norma do artigo 409º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação que foi julgada inconstitucional no mencionado acórdão. No Acórdão n.º 498/98, repete-se, o Tribunal Constitucional julgou
“inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º s 1 e 5, da Constituição, a norma do artigo 409º, n.º 1 do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a proibição da reformatio in pejus não abrange a revogação pelo tribunal [de recurso] do perdão de pena concedido pela 1ª instância”. Ora, o acórdão aqui recorrido não aplicou a norma do artigo 409º, n.º 1, do Código de Processo Penal, nessa interpretação – desde logo porque o tribunal de recurso
[que é agora o tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça] não revogou qualquer perdão de pena que houvesse sido anteriormente concedido.
8. Conclui-se assim que, com o presente recurso, o ora reclamante pretende afinal que este Tribunal se pronuncie sobre a questão de saber se, no caso dos autos, foi ou não violada a proibição da reformatio in pejus e submeter ao julgamento do Tribunal Constitucional a decisão proferida no processo.
Indiscutível é, porém, que tal pretensão excede a competência deste Tribunal.
Como o Tribunal Constitucional tem afirmado reiteradamente, o controlo de constitucionalidade que, nos recursos das decisões dos outros tribunais, a Constituição e a lei cometem ao Tribunal Constitucional é um controlo normativo, que apenas pode incidir, consoante os casos, sobre as normas jurídicas que tais decisões tenham aplicado, não obstante a acusação que lhes foi feita de desconformidade com a Constituição, ou sobre as normas jurídicas cuja aplicação tenha sido recusada com fundamento em inconstitucionalidade.
As decisões judiciais, consideradas em si mesmas, não podem, no sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade, ser objecto de tal controlo.
9. É assim manifesto que a reclamação apresentada não invoca qualquer razão susceptível de pôr em causa os fundamentos da decisão sumária reclamada.
Nada mais resta, pois, do que confirmar o decidido.
III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 18 de Fevereiro de 2004
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos