Imprimir acórdão
Processo n.º 358/04
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O recorrente A. vem, ao abrigo do disposto no artigo
78.º-A, n.º 3, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), reclamar para a conferência da decisão sumária, de 18 de Março de 2004, que decidiu, ao abrigo do n.º 1 desse artigo 78.º-A, não conhecer do objecto do presente recurso.
1.1. Essa decisão sumária é do seguinte teor:
“1. A. foi condenado, por acórdão de 14 de Fevereiro de 2003 do Tribunal Judicial de Oeiras, pela prática de um crime de associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 299.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão, e pela prática de um crime de auxílio à imigração ilegal, previsto e punido pelo artigo 134.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, na pena de 3 anos de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 anos de prisão. Dessa decisão recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa esse arguido, defendendo a sua absolvição, e o Ministério Público, propugnando a aplicação da pena acessória de expulsão do território nacional.
Por acórdão de 2 de Dezembro de 2003, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso do arguido, mantendo o acórdão recorrido na parte por ele impugnada, mas concedeu provimento ao recurso do Ministério Público, condenando o mesmo arguido também na pena acessória de expulsão do território nacional, pelo período de 10 anos.
O recorrente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sustentando logo a sua admissibilidade, ao abrigo do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, por as penas de prisão aplicáveis aos crimes de associação criminosa e de auxílio à imigração ilegal, em que foi condenado, excederem os 8 anos.
O recurso não foi admitido por despacho do Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10 de Fevereiro de 2004, por não ser admissível, nos termos dos artigos 432.º, alínea h), e 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal.
O recorrente reclamou deste despacho para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, aduzindo:
«1 – O recorrente foi condenado em 4 (sic) anos de prisão pela prática de:
– 1 crime de associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 299.º, n.º 2, do Código Penal;
– 1 crime de auxílio à imigração ilegal, previsto e punido pelo artigo 134.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 244/98.
2 – As penas aplicáveis excedem os 8 anos.
3 – O artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal só permite a admissão de recurso para este Alto Tribunal de processos cuja moldura penal ultrapasse os 8 anos .... neste sentido Colendos Acórdãos deste Alto Tribunal, de 30 de Janeiro de 2003, Relator: Conselheiro Simas Santos – Proc. 03P160 publicado em http/dgsi.pt/jstj.nsf/954 e que cita o Acórdão de 2 de Maio de
2002, Proc. 220/02-3, Relator: Conselheiro Lourenço Martins. Daí a admissibilidade do caso sub judice, sob pena de violação dos artigos 20.º e 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental. Termos em que deve ser admitido o recurso interposto para este Alto Tribunal.»
A reclamação foi indeferida por despacho do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Março de 2004, com a seguinte fundamentação:
«No caso em apreço, está em causa um acórdão condenatório proferido pelo Tribunal da Relação em processo respeitante a um concurso de infracções. Com efeito, o referido acórdão confirmou a decisão da 1.ª instância na parte em que esta condenara o arguido pela prática dos seguintes crimes: um crime de associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 299.°, n.º 2, do Código Penal, e um crime de auxílio à imigração ilegal, previsto e punido pelo artigo
134.°, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, na pena única de
5 anos de prisão. Foi o arguido ainda condenado, na procedência do recurso interposto pelo Ministério Público, na pena acessória de expulsão do território nacional por um período de 10 anos. Cabe, assim, a situação dos autos na previsão da alínea f) do n.º 1 do artigo
400.° do Código de Processo Penal, por haver uma dupla condenatória conforme no que concerne à pena de prisão, na circunstância respeitante a crimes que, considerados isoladamente, não são puníveis com pena superior a 8 anos e onde o cúmulo jurídico não podia ultrapassar essa mesma duração, dado o disposto no artigo 77.°, n.º 2, do Código Penal.
É assim insusceptível de recurso a decisão ora impugnada. Quanto à alegada inconstitucionalidade, cabe dizer o seguinte: após a revisão levada a efeito pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, na sequência da jurisprudência do Tribunal Constitucional, o direito ao recurso foi expressamente referenciado como uma garantia de defesa do processo criminal, no n.º 1 do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa. Todavia, como o Tribunal Constitucional também tem sustentado, a Constituição não impõe que, em processo penal, tenha de haver recurso de todos os actos do juiz, como também não exige que se garanta um triplo grau de jurisdição (cf., por todos, os Acórdãos do Tribunal Constitucional, de 19 de Junho de 1990, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 398, pág. 152, e de 19 de Novembro de
1996, Diário da República, II Série, de 14 de Março de 1997). Ora, a admitir-se recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, estar-se-ia a garantir um triplo grau de jurisdição, o que a Constituição não impõe, por se bastar, em processo penal, com um segundo grau, já concretizado aquando do julgamento pela Relação, independentemente de esta manter ou alterar o decidido na 1.ª instância. Diversamente do sustentado pelo reclamante, não se verifica a violação do artigo
20.º da Constituição da República Portuguesa, porquanto o direito de acesso aos tribunais encontra-se bem documentado nos autos, através do duplo grau de jurisdição.»
É desta decisão que vem interposto, pelo recorrente, o presente recurso, visando «apreciar da inconstitucionalidade dos artigos 432.º e 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal»” porquanto esses preceitos, «na interpretação expendida pelo STJ, que não admite o recurso para o STJ sem atender à pena aplicável em abstracto e sem permitir recurso da medida de expulsão aplicada em sede de 1.º recurso – assim o decidiu a Veneranda Relação
– viola os artigos 20.º e 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental e é inconstitucional, lesiva dos direitos do arguido recorrente alvo de decisão-surpresa – expulsão – da qual agora não viu admitido recurso para o STJ».
O presente recurso foi admitido pelo autor do despacho recorrido, decisão que não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro – LTC), e, de facto, entende-se que, no caso, o recurso era inadmissível, o que possibilita a prolação de decisão sumária de não conhecimento, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC. Por outro lado, radicando a inadmissibilidade do recurso em falta insuprível dos seus requisitos, e não em irregularidades do requerimento da sua interposição, não se justifica a formulação de convite para aperfeiçoamento deste requerimento, apesar de nele faltar a menção da alínea do n.º 1 do artigo 70.º da LTC ao abrigo da qual o recurso é interposto e a indicação da peça processual onde a questão de inconstitucionalidade terá sido suscitada.
2. O único fundamento possível de interposição do presente recurso é o referido na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o que torna a sua admissibilidade dependente da verificação do requisito de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC).
No presente caso, na reclamação do despacho de não admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (única peça processual em que a questão de inconstitucionalidade podia – e devia – ser suscitada), o recorrente não suscita, de forma clara, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, limitando-se a referir que esse recurso devia ser admitido, «sob pena de violação dos artigos 20.º e 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental». O recorrente sustenta a admissibilidade do recurso na afirmação de que as penas abstractamente aplicáveis aos crimes por que foi condenado excedem os 8 anos de prisão, o que é manifestamente errado, dado que a pena aplicável ao crime do artigo 299.º, n.º 2, do Código Penal é de 1 a 5 anos de prisão e a pena aplicável ao crime do artigo 134.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 244/98 é de 1 a 4 anos de prisão e a pena aplicável em cúmulo jurídico (a admitir-se que seja relevante para este efeito – entendimento que, como é sabido, não tem sido seguido pelo Supremo Tribunal de Justiça, sem com isso incorrer em inconstitucionalidade, como o Tribunal Constitucional tem sistematicamente entendido) tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal), ou seja, no caso, 7 anos de prisão.
Nessa reclamação, o recorrente nenhuma referência fez ao facto de a Relação ter aditado a pena acessória de expulsão do território nacional, quando o podia e devia ter feito se entendesse que tal era relevante para uma hipotética questão de inconstitucionalidade, pelo que não há que atender à referência a essa circunstância feita no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, nunca podendo ser considerada decisão-surpresa uma decisão da Relação dando acolhimento a pretensão deduzida em recurso para ela interposto pelo Ministério Público, a que o recorrente teve oportunidade de responder.
Conclui-se, assim, pela inadmissibilidade do presente recurso, que, aliás, sempre seria de considerar manifestamente infundado, atenta a uniforme e pacífica jurisprudência do Tribunal Constitucional quanto à não inconstitucionalidade da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal (cf. Acórdãos n.ºs 189/01, 369/01, 435/01, 490/03 e 451/03 e Decisões Sumárias n.ºs 134/03 e 152/03) .”
1.2. A reclamação apresentada desenvolve a seguinte argumentação:
“1 – A Colenda Decisão Sumária limita o direito ao recurso.
2 – O recorrente alegou a inconstitucionalidade das transcrições e da idoneidade dos tradutores recorreu para este Colendo Tribunal Constitucional, recurso que ainda não subiu – fls. 8459.
3 – E recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça de:
a) medida da pena;
b) das escutas telefónicas;
c) da nulidade dos tradutores;
d) da imigração ilegal;
e) da associação criminosa;
f) da inconstitucionalidade do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º
244/98;
g) da expulsão.
4 – Numa vã tentativa de limitar por todos os meios o direito ao recurso e a sua apreciação na mais Alta Instância ... vem agora a Decisão Sumária, de forma crua, atirar todos os argumentos para a rua do arquivo geral
...
5 – Refere-se um triplo grau de recurso quando nem sequer duplo grau de jurisdição de facto funcionou e quando questões técnicas essenciais – escutas telefónicas nulas e traduções inidóneas – foram apreciadas de modo exaustivo.
6 – O signatário já tinha apurado que para ser preso em Portugal basta estar solto ... não sabia é que o direito do recurso vem a ser uma mera ficção.
7 – A Decisão Sumária restringe o direito ao recurso, pois:
– impede a apreciação do recurso pelo Supremo Tribunal de Justiça;
– por mera questão formal rejeita liminarmente questões essenciais;
– pelo facto de a pena ser inferior a 8 anos ... rejeita apreciar as restantes questões;
– impede a apreciação por Tribunal Superior da expulsão ...
– viola as mais elementares garantias de defesa.
Daí a reclamação para a Conferência, devendo o recurso ser admitido.”
1.3. Notificado desta reclamação, o representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional apresentou resposta, propugnando o seu indeferimento, já que a mesma “carece ostensivamente de qualquer fundamento sério”, “não pondo obviamente em causa a evidente inverificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Na presente reclamação de decisão sumária de não conhecimento do recurso, apenas pode estar em causa a correcção dessa decisão, e não questões estranhas a esse objecto, eventualmente tratadas em outros recursos, interpostos para o Tribunal Constitucional ou para o Supremo Tribunal de Justiça, pelo que surge como irrelevante o aduzido nos n.ºs 1 e 2 da reclamação.
A decisão sumária considerou inadmissível o recurso por o recorrente não ter suscitado – podendo e devendo tê-lo feito –, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa (designadamente quanto às interpretações das normas dos artigos 432.º e 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal que, nos termos do requerimento da interposição do recurso, pretendia ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional), antes de proferida a decisão recorrida, de modo processualmente adequado a que o autor desta decisão ficasse constituído na obrigação de dela conhecer, ao que acrescia que sempre seria de considerar manifestamente infundada a questão de inconstitucionalidade suscitada a respeito da norma do citado artigo 400.º, n.º 1, alínea f).
Na presente reclamação, o recorrente nada aduz para tentar demonstrar a incorrecção dos apontados fundamentos da decisão sumária.
Merecendo acolhimento esses fundamentos, conclui-se, sem necessidade de considerações suplementares, pelo indeferimento da reclamação.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta. Lisboa, 31 de Março de 2004. Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos